opinião
Coordenador de Grande Reportagem e editor de Religião e Cidadania TVI/CNN Portugal

Abusos e situação de Lisboa: contextos, presente e futuro

16 set 2022, 21:55

Quem conhece o percurso de Manuel Clemente não imagina que possa ser alguém que tenha atuado com dolo nos casos de abusos que têm sido divulgados. O padre – académico, historiador e antigo escuteiro –, depois bispo e atual cardeal-patriarca, está convicto de que agiu de forma adequada. A dimensão da polémica, focada no prelado de Lisboa, exige uma leitura enquadrando algumas circunstâncias.

O drama dos abusos sexuais de menores é vasto – família, escola, vizinhança… –, carece de uma resposta transversal da sociedade. A Igreja católica, pelo princípio da reafirmada “tolerância zero”, é das instituições que mais tem trabalhado na prevenção e combate ao flagelo, mas é também das mais escrutinadas. E bem. Foi o escrutínio mediático que forçou a mudança, até porque, na Igreja, o problema converteu-se numa questão sistémica com o encobrimento como prática estabelecida.

1. As circunstâncias.

Entre estudiosos da Bíblia, uma expressão alemã sintetiza a complexidade de um texto: sitz im leben – que pode traduzir-se como ler no devido contexto, ou seja, nas circunstâncias que deram vida ao texto. Há que fazer a exegese da narrativa, sem a qual não conseguiríamos hoje entender a Bíblia. Temos as circunstâncias – históricas, sociais, culturais, políticas e religiosas – e a minúcia do contexto para descodificar o ontem distante e torná-lo hoje compreensível.

O princípio aplica-se a toda a experiência narrada, na longa e, até, na curta memória da factualidade. A leitura que fazemos de um acontecimento passado exige a localização no tempo e no espaço – um sitz im leben, abusando da expressão – sob risco de construirmos perceções parciais ou não verdadeiras. É neste exercício que ganhamos legitimidade para escrutinar o passado. Pesando as circunstâncias e delas extraindo o que é válido para um juízo presente, tal como num texto bíblico há que fazer a exegese e o enquadramento para (des)construir uma hermenêutica.

2. A “falsa reputação”.

O presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz em Portugal enquadra os casos de abusos sexuais na Igreja. Pedro Vaz Patto, juiz desembargador de profissão, lembra que “durante muito tempo se procurou ocultar pecados e crimes como os que só agora se revelam (alguns de há décadas) precisamente para evitar o escândalo e a degradação da imagem da Igreja com as consequências que isso poderia provocar até no afastamento de muitos da prática religiosa católica”. Assim, “colocou-se a defesa dessa falsa reputação acima da proteção das vítimas” e, “ao escândalo desses pecados e crimes veio juntar-se o do seu encobrimento”. Acrescenta Vaz Patto “que nada se ganha com uma imagem que não corresponda à verdade” (site No barco de Cristo, 23.08.2022).

Já foi mais determinante do que é hoje, mas prevalece ainda um corporativismo clerical, uma estrutura eclesial verticalizada. Há que lembrar a forma como se exercia – e, em muitos casos, ainda se exerce – a autoridade eclesial nos anos em que se verificaram os casos de abusos vindos agora a público na sequência do trabalho da Comissão Independente.

A resolução de problemas nas comunidades e instituições católicas – fosse a ignomínia de uma suspeita de abuso sexual ou uma qualquer discórdia entre um padre e um(a) leigo(a) – pendia para a defesa da instituição e respetivos ministros. Leigo(a) que assumisse posição discordante face a um clérigo arriscava ser ostracizado(a) pela hierarquia e até pelas comunidades, onde o padre era visto como sacra figura.

Fosse a razão do(a) leigo(a), a dor excruciante de uma vítima de abusos ou a palavra do(a) denunciante numa situação menos clara e reprovável, estes(as) eram tendencialmente o elo mais fraco. Um modus operandi para evitar o escândalo, proteger a imagem da instituição, garantir a ordem e salvaguardar a hierarquia, que é, afinal, quem segura a Igreja sacramental.

Digo «tendencialmente» porque havia e há homens e mulheres de e da Igreja, que, no exercício das suas responsabilidades ordenadas ou comprometidas, promovem dinâmicas comunitárias de consulta e corresponsabilidade, não impõem, nem se impõem. Com essa atitude, ajudam a construir comunidades empenhadas em discernir melhor, para a melhor e mais participada ação.

3. O clericalismo.

A Igreja auto-referencial, fechada e de fachada, que o papa Francisco tanto tem denunciado, era – em muitas situações ainda é… – um modo de ser e de estar, porcelana fraturada com os «gatos» do clericalismo à vista. Só não é um pecado mortal porque a fé cristã prevalece nos leigos(as), ordenados e consagrados(as), tantos(as) anónimos(as) discretamente atuantes nos altares ou nas estradas sinuosas dos maiores dramas humanos, envergonhados(as) pelo desvio de alguns e algumas ou pela hesitação de lideranças.

A síndrome do poder, da defesa do interesse corporativo acima da ética e da moral, é uma doença comum nas instituições, qualquer que seja a sua matriz ou alicerces. Por isso, é também o maior dos desafios de quem se entrega à causa pública ou ao bem comum através das respetivas redes institucionais. Não sendo uma doença exclusiva de estruturas religiosas, nestas, como acontece nalgumas organizações políticas, é agravada pelo que se entende ser uma legitimação divina.

Foi este o caldo gerador de uma cultura comportamental difícil de mudar, “de abuso de autoridade, de abuso de poder, de abuso sexual”, como diz o papa Francisco (TVI/CNNPortugal, 04.09.2022).

Este é um quadro de interpretação, para o sitz im leben, mas não de justificação, pois não serve de desculpa para (in)ações hoje consideradas inadequadas. Na preocupação de salvaguardar a imagem da instituição, os métodos não eram prudentes, não defendiam justamente as vítimas, beneficiavam o prevaricador. Atitudes incompatíveis com a fonte inspiradora: o evangelho.

São legítimos os comunicados de conselheiros próximos do patriarca, que vieram a público em seu apoio, mas há o risco de serem encarados também como reação corporativa. Num desses comunicados, critica-se a “dinâmica mediática” por incidir na pessoa de Manuel Clemente e transformar “tudo em mais um ‘caso’ (…), em vez de possibilitar uma maior tomada de consciência acerca do problema dos abusos sexuais na Igreja e de conduzir a um debate sério sobre o clericalismo”. Embora compreensível, é importante evitar equívocos na solidariedade manifestada. O mensageiro – os jornalistas – não inventou a mensagem…

4. No tempo do lead.

Byung-Chul Han associa-se aos mais pessimistas entre os conhecidos pensadores do fenómeno mediático e aprofunda as dinâmicas da comunicação (“Infocracia”, Relógio d’Água, 2022). O filósofo diz que a “mediacracia” tem uma “arquitetura particular” e, fazendo a analogia com um “anfiteatro”, descreve os “destinatários” dos media e da informação como espetadores “condenados à passividade”, que consomem de forma parcial e acrítica.

Não é preciso ir tão longe, nem ser tão pessimista, para perceber que a opinião pública é condicionada por uma dinâmica comunicacional que não facilita a leitura enquadrada dos factos.  Perceciona-se o tempo com pouca ou nenhuma retaguarda.

Os(as) jornalistas investigam o ontem e o hoje com ferramentas implacáveis: os factos, o respetivo cruzamento e contextualização. Mas a voracidade mediática impõe a linguagem da síntese, da supremacia da ideia resumida em frase curta. A contextualização é habitualmente remetida para o plano secundário de um corpo noticioso. Realça-se a anormalidade, o caso, numa espiral – sobretudo televisiva e digital – alimentada pelo escândalo e pela emotividade.

Neste processo, o público absorve uma “verdade” narrada em velocidade, limitada, circunscrita ao lead, com opiniões que se confundem com a notícia, suscetíveis de gerar equívocos de interpretação. A factualidade, próxima ou distante, é assimilada no momento, pelo filtro da curta memória, pelo caso específico que se generaliza. Como resultado, é grande o risco de termos uma leitura sem o discernimento e a análise de circunstância, sem o… sitz im leben. Nunca a literacia mediática foi tão importante como o próprio exercício jornalístico, livre e transparente.

5. “Um caso basta”.

Os casos dos abusos sexuais de menores são lidos a partir dos padrões de um hoje que, definitivamente, acentua a caráter hediondo do crime, pior ainda quando cometido por pessoas escudadas numa instituição da qual se espera, porque a proclama, uma coerência moral e de defesa da dignidade humana.

Não é de estranhar o foco mediático nos desvios de agentes da Igreja. Um caso basta para ser um escândalo – uma “monstruosidade”, palavra usada e repetida pelo Papa (TVI/CNN Portugal, 04.09.2022).

Neste ambiente, de que serve uma comunicação de crise com o argumento de permissivas leis canónicas ou civis em vigência no passado? A (des)obrigação legal estava ferida, como a própria Igreja reconhece, e não pode nem deve ser comunicada como argumento de justificação. Quanto mais não seja, dá-nos apenas o quadro circunstancial para entendermos porque terá acontecido de uma maneira e não de outra, mas aconteceu e não podia ter acontecido.

6. Um pedido de perdão.

Em defesa do patriarca de Lisboa, há quem defenda que ele fez o que era exigido ou que outras diligências “não eram exigíveis” (Patriarca disposto a sair, decisão nas mãos do Papa, António Marujo, jornal 7Margens, 15,08.2022).

O que a opinião pública avalia hoje não é o que se exigia, legal ou canonicamente, mas o que podia e devia ter sido feito além disso, a partir do atual quadro de entendimento. Podemos reconhecer que a omissão ou negligência imputada ao patriarca de Lisboa não é comparável à gravidade objetiva de situações de dolosa e evidente ocultação de abusos por parte de prelados da Igreja, mas também há bispos que, aparentemente por menos, resignaram.

“Aceito que este caso e outros (…) no passado não correspondem aos padrões que todos queremos ver implementados”, reconhecia Manuel Clemente em carta-aberta divulgada a 29 de julho, três dias depois da publicação das primeiras investigações jornalísticas. “Podemos e devemos fazer melhor”, acrescentava o patriarca, lamentando “o sofrimento” das vítimas. Faltava, nesta missiva, a afirmação de que a prioridade deve ser a busca da verdade, a ênfase na autocrítica admitindo que os padrões do passado não estavam adequados à vivência da fé cristã, e que, por isso, a Igreja deve um pedido de perdão às vítimas e à sociedade.

O pedido de perdão “institucional e convicto a quem foi vitimado” surgiu a 1 de setembro, mais de um mês depois da polémica se instalar, em missiva para os fiéis da diocese. Clemente garante “tudo fazer para que tais casos não se repitam”. A propósito, recordemos as palavras do papa Francisco à TVI e CNN Portugal: “um sacerdote não pode continuar a ser sacerdote se for um abusador”.

Compreende-se o estado de alma do patriarca, que, segundo relatos de pessoas próximas, está desgastado. Como devemos compreender ainda mais as vítimas que falaram à Comissão Independente e à comunicação social, sob anonimato, e sentem que lhes foram destruídos os sonhos e aspirações de criança.

Pelos relatos diretos ou pela voz do presidente da Comissão Independente, intuímos que, na dor e com o tempo, as vítimas fizeram a sua catarse e, na maioria, é gente com fé. Sabem que a história não muda nem se emenda, precisa de ser devidamente enquadrada – sitz im leben, lá está… –, e a experiência do sofrimento acumulado, silenciado ao longo de anos, leva-as a, mais do que sugerir o afastamento deste ou daquele bispo, exigir o que não pode deixar de exigido: que, pedindo perdão às vítimas, famílias e sociedade, a Igreja assuma todas as responsabilidades e tudo faça para que não volte a acontecer.

Ao tempo do clericalismo devia suceder o tempo dos batizados. Isto faz-se com sinais concretos, em experiências comunitárias de sinodalidade discernida e assumida.

7. O constrangimento previsível.

A manutenção de Manuel Clemente nas funções de patriarca de Lisboa depende só do próprio e do Papa. Na reunião com Francisco, Clemente esclareceu a sua versão dos factos e terá projetado os meses seguintes, na expectativa do trabalho da Comissão Independente. Mas há que contar também com os impactos mediáticos.

Este é um ano de trabalho muito duro na diocese de Lisboa, que culminará com a Jornada Mundial da Juventude e a visita do Papa. As comunidades mobilizam-se para o encontro, em agosto de 2023. Na preparação e no decorrer dos trabalhos, nem todas as notícias serão positivas para o evento. Há toda uma movimentação pastoral e de gestão diocesana que carece de um bispo em pleno exercício.

Se os projetores mediáticos continuarem a apontar para Manuel Clemente, o ano pastoral vai ser problemático em Lisboa. O mesmo acontece com outros bispos. Quando, em janeiro, a Comissão Independente – cuja criação teve a resistência de parte do episcopado português – divulgar o relatório final da investigação, não deverão faltar relatos de vítimas, na primeira pessoa, e as respetivas dioceses vão estar sob fogo.

O bispo titular de uma diocese tem visitas pastorais a fazer, precisa de percorrer as comunidades, estar em contacto com pessoas, instituições religiosas civis e políticas, assumir a administração da diocese, a sempre complexa gestão do clero, dialogando para indicar caminhos na mediação de sensibilidades e diferentes carismas. Os casos de abusos sexuais poderão ser um constrangimento para um prelado – por mais solidária que seja toda a estrutura e clero que lhe dê apoio – quando estiver diante de jornalistas ou com os fiéis, podendo ser confrontado com silêncios comprometedores ou sucessivas palavras de desagravo, desfocando agendas e consumindo tempos de ação. É expectável que assim seja.

A Jornada em Lisboa tem o envolvimento entusiástico de Manuel Clemente. Afastá-lo a meses do evento seria uma decisão difícil. Para ele e para quem decide.

Já começaram as movimentações para a escolha do novo patriarca de Lisboa, que, pela tradição, tem a inerência do cardinalato, mas isso é válido para qualquer das possibilidades: uma sucessão antecipada ou no verão de 2023, como está previsto.

Nos bastidores, desenham-se perfis de candidatos, entre pré-anúncios e ações mais ou menos visíveis, com aparentes tentativas de influenciar a escolha. Tendo em conta o relatório sinodal publicado pela CEP, faltará, mais uma vez, como pedem católicos de base, ouvir as comunidades – o «espírito santo» também fala por elas… – e envolve-las em tão importante decisão.

Nota:

Fala-se do patriarcado de Lisboa quando Portugal tem, há meses, três dioceses sem bispo titular: Setúbal e as periféricas Bragança e Angra.

Há padres a recusar a elevação ao episcopado e bispos auxiliares que não querem deixar as dioceses onde se encontram para assumirem uma responsabilidade maior noutra. A que se deve a pouca disponibilidade?

Comentadores

Mais Comentadores

Patrocinados