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Coordenador e editor de Religião e Cidadania TVI/CNN Portugal

“Deus está orgulhoso de ti.” A monstruosidade doentia do poder

14 fev 2023, 18:48

A vivência comunitária cristã baseia-se na fé, na criação de relações em corresponsabilidade – desenvolvendo o paradigma do amor e da caridade – e na confiança que alimenta a esperança. Nascido no caldo do abuso de poder, o abuso sexual de menores em ambiente eclesial é uma traição a esta matriz.

O estudo sobre abusos sexuais de menores na Igreja em Portugal revela a “monstruosidade” doentia do poder, com o aproveitamento da fragilidade dos mais vulneráveis, em impunidade, falhas difíceis de aceitar numa organização religiosa que, no topo hierárquico, ocultou, levou à ocultação e hesitou em desocultar.

Os relatos dão conta de abusos em ambiente de confiança. Na igreja, na escola, na família… o abusador gozava da confiança da vítima e até de quem era mais próximo da vítima, como os próprios progenitores. É uma dupla traição.

A generalização é agora avassaladora, lançando o anátema sobre um grupo alargado de pessoas. O reconhecimento de que a generalização é injusta e irracional não diminui a consciência do drama, da justiça por praticar e da urgência na mudança.   

A prioridade é a vítima, mas, até há poucos anos – começou a mudar, definitivamente, com o papa Francisco, depois dos primeiros alicerces legais preparados pelo antecessor – parecia que a vítima era a instituição, como se a hierarquia não soubesse ou não entendesse o drama.

Fazem eco as palavras da socióloga Ana Nunes Almeida num comentário às entrevistas feitas aos bispos titulares. Falando num “contraste”, realçou o “desconhecimento e alheamento” destes face à realidade testemunhada pelas vítimas de abusos.

Em reação, José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal (CEP), negou sentir-se alheado desta realidade, mas reconheceu e lamentou não ter sido devidamente informado. As falhas não ocorreram só nas situações graves de ocultação.

São 512 situações validadas pelos especialistas da Comissão Independente (CI), calculando-se, a partir dos testemunhos, que estamos perante 4815 casos de abuso sexual de menores, no mínimo, em cerca de 70 anos.

São quase cinco mil “meteoritos” sobre a Igreja católica em Portugal. A desvalorização do drama, pela voz de alguns bispos, era e é incompreensível. O episcopado português demorou tempo demais a entender a urgência da clarificação. Neste tempo comunicacional, a ocultação é um dos mais graves fatores na descredibilização das instituições.

A Igreja católica em Portugal tem agora de recuperar as bases de confiança social. Não se trata de defender a imagem, como disse, e bem, o presidente da conferência episcopal, mas de mostrar, em atos concretos, que estas situações não representam a comunidade católica, embora a comprometa. 

Nas bases, no terreno social e de formação espiritual, a Igreja é muito mais além disto. A hierarquia, a quem são apontados os holofotes mediáticos e os olhares dos crentes, tem agora de fazer silêncio, não o silêncio hipócrita de quem quer fugir à responsabilidade de falar e responder a perguntas, mas o silêncio proactivo, do discernimento. Um silêncio que dê espaço e tempo à maioria de vozes silenciosas dos católicos que procuram a coerência entre a viva vivida e a palavra que os guia.

A CEP convocou uma assembleia plenária extraordinária para o início de março com este tema exclusivo na agenda. São 18 dias para discernir e preparar caminhos. Têm nas recomendações da CI, um bom documento de trabalho para reparar, a começar pelo afastamento preventivo, sem demora, de clérigos sob suspeita, como previsto nos procedimentos canónicos, para decidir apoios concretos às vítimas, para rever processos de acompanhamento, reposicionar relações comunitárias, desclericalizar estruturas, reequacionar espaços de ação, capacitar e corresponsabilizar clero e leigos(as), valorizar o papel da mulher, aproximar as comunidades paroquiais das instituições sociais, criar uma plataforma que dê sequência ao trabalho da CI, reformular objetivos, meios e composição das comissões diocesanas para a proteção de menores, articular com as comissões locais de proteção de crianças e jovens em risco, edificar “uma cultura que privilegie, no interior da Igreja e em todos os degraus da hierarquia, o conhecimento aprofundado e o respeito pelos direitos humanos em geral e pelos direitos da criança em particular, enquanto direitos das pessoas.”

Reafirmando, os testemunhos tornados públicos revelam a traição à matriz cristã. “Quantas vezes chorei em igrejas vazias”, conta-se, “a fé foi abalada para toda a vida”. Para José Ornelas, é “uma dura e trágica realidade”, que “dói e envergonha”.

Terá dito um clérigo abusador a uma criança: “Estiveste bem, Deus está orgulhoso de ti.” Perante a blasfémia, impõe-se a pergunta de outra vítima: “E vós, que pensais fazer de agora em diante, pois que sobre este passado, nada mais?”

Diríamos nós, agora, que estamos orgulhosos e nos curvamos diante da coragem dos que foram a voz que quebrou o silêncio.

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