Dificuldades marcaram contactos entre comissão para estudo dos abusos e hierarquia católica

Agência Lusa , MM
14 fev 2023, 12:13
Religião (Reuters)

Responsáveis de duas dioceses – Beja e Setúbal – nem responderam à comissão, revela relatório

 A constituição da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja foi uma iniciativa do episcopado, mas nem assim o contacto do grupo de trabalho com a hierarquia católica foi fácil, como revela o relatório divulgado segunda-feira.

Os responsáveis de duas dioceses – Beja e Setúbal – nem responderam à comissão.

Criada por decisão da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) em novembro de 2021, a Comissão liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht desde o início entendeu ser “importante ouvir, através de entrevistas, os atuais líderes da Igreja Católica portuguesa”.

“É certo que o impulso dado pelo Papa Francisco constituiu uma forte pressão externa para a tomada de iniciativa por parte dos bispos portugueses; mas a decisão final de criar uma Comissão Independente foi da própria CEP e esse protagonismo, coletivo e individual, era um objeto a merecer atenção”, reconhece o relatório da comissão.

No documento, o grupo liderado por Pedro Strecht não esconde algumas dificuldades sentidas no relacionamento com a hierarquia católica, desde logo ao revelar que, ao contrário das vítimas, que se dirigiram à comissão, “o esforço para aceder a esta franja da Igreja Católica partiu da Comissão”.

“Aliás, esse é um dado curioso que vale a pena registar: com uma exceção (o Serviço de Escuta dos Jesuítas em Portugal, que imediatamente após a sua criação nos enviou um email de incentivo e disponibilidade total para participar no Estudo), a Comissão não recebeu de qualquer outro membro ou estrutura da Igreja Católica um contacto espontâneo mostrando vontade ou interesse em colaborar”, avança o relatório.

Segundo a equipa de Strecht, nos meses iniciais os membros da hierarquia da Igreja “pareciam remeter-se a uma mera posição de espera, exterioridade e distância”, o que levou a que, em fevereiro de 2022, a comissão lançasse aos 18 bispos portugueses titulares de dioceses e aos três administradores diocesanos das dioceses em sede vacante, por correio eletrónico, um convite “para uma reunião (por 'Zoom', sendo mais prático) com o objetivo de aprofundar diversos temas como: o percurso como homem de fé; as características da diocese que coordena; o seu entendimento da relevância do problema dos abusos sexuais na Igreja portuguesa; a organização dos arquivos históricos da diocese e o processo de acesso ao espólio que contêm (para os anos 1950-presente)”.

E aqui começaram a revelar-se as dificuldades: “Quatro deles responderam nas primeiras 36 horas, mostrando-se inteiramente disponíveis e sugerindo datas para a reunião. Outros quatro, certamente apreensivos com o tópico relativo ao acesso aos arquivos históricos, responderam que reservariam a sua resposta sobre esse ponto para depois de uma reunião do Conselho Permanente da CEP dali a cerca de três semanas ‘com alguém dessa Comissão’”.

“Chegou-nos, ainda, ‘feedback’ negativo pelo modo informal como o convite fora feito aos bispos: contacto direto com cada um deles, por email, assinado por um coletivo (Comissão Independente) e propondo um contacto via Zoom”, refere o relatório.

Segundo o documento, “os restantes cinco responderam ao longo das duas semanas seguintes. Ao todo, e à primeira chamada, responderam doze bispos e um administrador diocesano. Seguiu uma segunda a 17 de março de 2022 (dois dias após a realização da referida reunião em Fátima). Todos os restantes bispos, com exceção de um, responderam ao email e aceitaram o convite para a reunião. As entrevistas decorreram entre 03 de março e 19 de maio de 2022”.

A comissão dá ainda conta de que “o administrador diocesano de Bragança-Miranda (em sede vacante) delegou a entrevista no presidente da Comissão Diocesana de Proteção de Menores e Pessoas Vulneráveis e que um bispo (Beja) e um administrador diocesano (Setúbal) nunca responderam às chamadas da Comissão”.

Quanto à forma como decorreram as entrevistas, a comissão sentiu “tensão” em três situações: ora por ser via ‘Zoom’ (‘estas conversas não são para se ter em Zoom’); ora porque consideravam ‘disparatado’ fazer perguntas sobre a sua infância e vida pessoal; ora porque havia pressa de terminar a entrevista, pois havia ‘pessoas à espera’ para serem recebidas”.

Segundo o documento, foi também alvo de censura a realização de uma conferência de imprensa no dia 12 de abril (na data dos três meses de funcionamento da Comissão Independente), em plena Semana Santa. Um dos bispos comentou, com severidade: ‘Todos os anos, na quarta-feira santa, há notícias contra a Igreja. Estão sempre a acusar os bispos’”.

Já quanto aos superiores e superioras gerais de congregações religiosas, o ambiente nos contactos foi diferente, com 13 dos 16 contactados a darem resposta positiva à comissão.

Quanto aos que responderam afirmativamente, “a adesão ao convite foi (…) mais imediata e incondicional”.

“Com todos, sem exceção, o ambiente criado durante a entrevista foi excelente. Ao contrário dos bispos, apesar de tudo mais formais e racionais no trato e no uso da linguagem, os superiores e as superioras gerais deixaram mais frequentemente soltar as suas emoções e dúvidas, o seu humor e, sobretudo, a sua perspetiva crítica face ao conservadorismo da hierarquia da Igreja portuguesa, na sua linguagem, na atitude de certos bispos”, acrescenta o relatório.

A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja Católica em Portugal iniciou a recolha de testemunhos de vítimas em 11 de janeiro de 2022, tendo validado 512 denúncias das 564 recebidas, o que permitiu a extrapolação para a existência de um número mínimo de 4.815 vítimas nos últimos 72 anos.

A Conferência Episcopal Portuguesa vai tomar posição sobre o relatório, de quase 500 páginas, numa Assembleia Plenária agendada para 03 de março, em Fátima.

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