ENTREVISTA || Nuno Ventinhas, do Instituto de Conservação da Natureza e Floresta, diz que "os animais selvagens estão a ficar mais urbanos". Revela que em apenas dois anos foram entregues ou resgatados 3.900 animais. Entre eles um dos maiores problemas são as gaivotas, mas também há casos raros de quem pague 10 mil euros por um ovo para o ter em exposição
Gaivotas em terra, tempestade no mar. Quem nunca ouviu este ditado popular? Nos dias que correm parece mais: gaivotas em terra, problemas em terra. A população destas aves aumentou e está a fazer ninho dentro das cidades. “Os animais selvagens estão a ficar mais urbanos”, afirma em entrevista à CNN Portugal Nuno Ventinhas, que trabalha no Instituto de Conservação da Natureza e Floresta (ICNF). Entre 2022 e 2023 foram entregues ou resgatados pelo ICNF cerca de 3.900 animais. Um dado adiantado em exclusivo à CNN Portugal.
Para Nuno Ventinhas, não é errado dizer que os portugueses estão a ficar mais amigos dos animais. “Começam a ter uma perceção cada vez maior de que podemos perfeitamente coexistir com eles”, afirma. Números exclusivos a que a CNN Portugal teve acesso revelam-nos que, entre 2022 e 2023, foram entregues ou resgatados pelo ICNF cerca de 3.900 animais. Um número surpreendente e um dos motivos pode ser que “os animais selvagens estão a ficar mais urbanos”, explica este especialista. Um dos maiores “problemas agora” são as gaivotas em algumas zonas do país.
De norte a sul, as aves são a espécie mais recolhida, entregue ou resgatada. E isso é igual nas cidades e no campo, o que difere é o tipo de ave. E o que é certo é que os portugueses estão mais atentos e “começa a ser cada vez mais habitual” entregarem animais ou darem alerta para os que estão feridos. “As pessoas estão mais expeditas” e “a Internet facilita tudo”, admite Nuno Ventinhas.
As gaivotas estão a tornar-se um problema e são muito “territoriais”. “Se tiver o azar de alguma lhe fazer ninho na varanda, garanto que enquanto ela lá estiver, não vai à varanda”, garante. Nem o Hospital D. Estefânia, em Lisboa, escapa aos seus ninhos.
Nuno Ventinhas, é técnico do ICNF desde 2016 a exercer funções na Divisão de Conservação e Monitorização e atualmente também a coordenar a Central Nacional de Anilhagem entidade do ICNF responsável pela atividade em Portugal. Desde 1994 que está ligado à ornitologia através de várias organizações participando em projetos com diversas espécies, envolve-se na questão dos Centros de Recuperação de Fauna Selvagem fundando em 1997 o atual LxCRAS, pertencente à Câmara Municipal de Lisboa e onde trabalhou durante 20 anos. Alguém com uma larga experiência na área.
Na entrevista com Nuno Ventinhas também descobrimos qual a espécie em maior perigo de extinção em Portugal e falámos sobre o tráfico de animais. Um problema mundial, a que o nosso país não é imune. Nem que seja como local de passagem.
É invulgar serem contactados por cidadãos para vos entregarem animais?
Não, não é de todo invulgar. E começa a ser cada vez mais habitual.
As pessoas estão mais atentas?
Sim. Também há mais informação. Principalmente desde que foi criado o Serviço de Proteção. As pessoas podem fazer denúncias relativamente a questões ambientais ou dar informação de animais encontrados feridos. E isso permitiu que o número de animais aumentasse imenso. Dou o exemplo do LxCRAS (em Lisboa). Quando apareceu em 1996, a média do número de animais andava nos 150 e hoje está nos 2000 por ano.
Há épocas com mais situações?
Sim, depois depende da região. Em Lisboa, por exemplo, estamos nessa fase em que as aves estão a sair dos ninhos e, portanto, há sempre uma probabilidade de caírem e encontrarem crias. Em Lisboa são os andorinhões, as andorinhas, os melros, essencialmente as aves pequenas. Começa também a acontecer muito com gaivotas devido ao aumento exponencial da população. O que também é o caso do Algarve, onde também há mais gaivotas.
As pessoas estão são mais expeditas. A internet também ajuda e as pessoas rapidamente conseguem obter um contato, conseguem rapidamente perceber onde é que devem entregar e com quem é que devem contactar.
E que tipo de animais vos são entregues nas cidades, por exemplo?
Temos aqui diversos tipos de espécies. Temos as autóctones, as nossas espécies selvagens, digamos assim, até às domésticas, onde está incluído o pombo, neste caso o pombo da cidade, porque há outros selvagens. E também já começa a ocorrer bastante em Lisboa, que é o pombo-turcado. E depois, ainda há parte das espécies exóticas. Desde a tartaruga, que a pessoa compra na loja e, entretanto, farta-se dela e vai deixar nos lagos da cidade. Até às aves exóticas. Lisboa já tem uma população de periquitos verdes. Há ainda outros verdes com uma cauda muito comprida, que é o periquito polar. E a população cada vez está a aumentar mais. Eles vão se adaptando. E adaptam-se melhor porque em termos de alterações climáticas já não há estações. Portanto para eles é o paraíso.
Em termos de recolha, o ICNF acaba por recolher e receber tudo. Depois o encaminhamento é que é diferente. Para os centros que pertencem à Rede Nacional de Centros de Recuperação, de fauna vão só as espécies selvagens. Os exóticos normalmente são encaminhados para outros centros ou para entidades com quem possamos ter protocolos. Os domésticos é que são às vezes uma dor de cabeça.
Qual a espécie mais entregue ou recolhida?
A espécie que mais recebemos a nível nacional são as aves. No caso das crias que caem, como não conseguem voar são facilmente detetáveis. Ou se for uma ave que está ferida, ou porque bateu contra uma janela ou num cabo e fraturou uma asa, ela não vai sair dali.
Depois temos os mamíferos, já que têm hábitos muito mais noturnos do que diurnos. Uma raposa, um texugo, uma marta, acabam por ter o instinto de se refugiarem no meio do mato. Se forem atropelados, por exemplo. Até pode haver animais feridos, mas como se escondem não é possível detetá-los. Um exemplo, é a quantidade de linces que já tivemos vítimas de atropelamentos. Acho que só tivemos um caso em que ainda se conseguiu chegar ao animal e ele estivesse vivo.
Disse que a população de gaivotas aumentou. Há algum motivo para isso?
Há queixas porque elas começaram a ficar mais urbanas, digamos assim. Os animais selvagens estão a ficar mais urbanos. Em Lisboa sempre tivemos queixas, principalmente na zona da Costa de Caparica, Algés. Onde elas já criam. Vão fazer o ninho no telhado, nas varandas das pessoas. E são extremamente territoriais. Se tiver um azar de alguma lhe fazer ninho na sua varanda garanto que enquanto ela lá estiver, não vai à varanda.
O que é que acontece na Costa da Caparica? Por vezes quando chegam os barcos à doca, ou às vezes ainda em mar, mas próximo da costa, se eles apanham uma certa quantidade de peixe que sabem que não vai sair, mandam fora. Ora isto é estar a fornecer alimento às gaivotas. E é estar a fomentar a sua concentração toda naquele sítio.
Há mais de quatro anos, que todos os anos, nos ligam do Hospital de Dona Estefânia. Num dos edifícios do hospital umas gaivotas decidiram criar ninho. Por azar é num edifício onde estão uma série de aparelhos onde eles mensalmente têm de ir fazer recolhas de pólen, porque é dali que saem os valores indicativos dos níveis para o país todo. Claro que cada vez que lá iam não conseguiam.
Se alguém encontrar uma ave ferida e a recolher para entregar o que pode dar de comer?
A melhor resposta é não dar nada. Normalmente as pessoas, muitas das vezes, não sabem que ave é que têm nas mãos. Portanto não vão saber o que é que lhe podem dar. Por exemplo, os andorinhões que caem nos ninhos. É uma ave insetívora. Mas as pessoas pensam, pelas patas com unhas fortes, que são aves de rapina e as aves de rapina normalmente caçam e comem aves e vão dar-lhe carne. A coisa não vai correr bem.
Água também não é aconselhado porque as aves têm, logo a seguir à língua, na parte de trás, dois canais: a parte que vai para o estômago e depois tem outro canal, a nossa epiglote, que vai para os pulmões e sacos aéreos. Se não for uma pessoa que tenha experiência a dar água, o que vai acontecer é que vai inserir água para o lado dos sacos aéreos.
Então, o ideal é não dar nada?
O ideal é a pessoa que encontra o animal, colocá-lo dentro de uma caixa de cartão de tamanho adequado. Nem pequena, nem grande. Se for uma ave ferida a caixa deve ser a mais adequada para fazer com que ela não se mexa muito e de imediato contactar o ICNF ou o Centro de Recuperação. Se não conseguir, pelo menos ligar para que se possa aconselhar no que é que há de fazer e combinar a recolha do animal. Digamos que a rede de recolha é relativamente boa. Portanto, o ideal é fazer chegar à ave, mais depressa possível, um centro de recuperação.
E se levarem a um veterinário?
A maior parte das clínicas têm experiência em animais de estimação. Apesar de haver alguns com experiência em animais exóticos. Mas o papel do veterinário deve ser prestar os primeiros socorros e encaminhar o animal para um centro de recuperação. O que acontece muito é as pessoas dizerem que não têm hipótese de irem entregar. Mas como a rede de recolha é bastante grande, então combina e vai lá uma equipa do SEPNA, da GNR ou uma equipa de vigilantes nossa recolher o animal.
Estamos a ficar mais amigos dos animais?
Sim. As pessoas começam a ter uma perceção cada vez maior de que podemos perfeitamente coexistir com eles.
Vou dar um exemplo: toda a gente sabe, por exemplo, que a relação entre os caçadores e as aves de rapina nunca foi boa. Porque estas aves caçam coelhos, caçam perdizes. No momento em que acabou o regime livre e passou a haver as reservas de caça há uma maior gestão. E as aves de rapina são um controlo sanitário das outras espécies, porque preferem caçar os animais doentes, já que lhes exige menos esforço. E afastam outros predadores.
As pessoas tentam ficar com os animais que encontram?
Isso diminuiu bastante. Antes perguntavam muito ‘não posso ficar com ele?’. Acabavam por pensar que aquilo se podia tornar num pet. Mas aqui entra a questão legal.
E o tráfico animal? Fazem essas investigações?
Temos uma divisão própria que está na CITES (Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies Silvestres Ameaçadas de Extinção), que é o que tem a ver com o comércio e tráfico ilegal de animais. Trabalhamos muito em colaboração com todas as autoridades portuguesas, desde a Polícia Judiciária, até à PSP, a GNR, até porque é algo que infelizmente é uma realidade. Não é só cá em Portugal, é no mundo inteiro.
Em Portugal quais são os animais mais traficados?
Os chamados psitacídeos, que na prática é a família dos papagaios. Normalmente são os papagaios e somos usados como local de passagem dos animais.
Há uns anos também tivemos casos de ovos em Portugal e Espanha. Ovos de abetarda para uns colecionadores na Alemanha. Estamos a falar, se não me engano, 10 mil euros um ovo. É aquela ave estepária que temos. Parece muito um peru, mas de porte grande. É uma das espécies mais ameaçadas que temos neste momento em Portugal. O ovo servia para ficar exposto.
Estas são as espécies mais recolhidas nas diferentes regiões do país
A nível nacional, as aves são a espécie mais recolhida. Seja em entregas ou resgates. No entanto, há diferenças entre as várias regiões do país. A pedido da CNN Portugal o ICNF elaborou uma lista.
Algarve
As recolhas/entregas são mais comuns em espaço urbano. E a espécie mais comum é a gaivota (Larus fuscus).
Alentejo
A maioria do território do Alentejo é rural, sendo maioritariamente nestes locais que é feita a entrega ou recolha de animais feridos ou de crias, à exceção das gaivotas, mais ocorrentes no litoral. As espécies com maior representação nas recolhas desta região são a cegonha-branca, gaivotas e aves de rapina.
Lisboa e Vale do Tejo
O maior número de animais recolhidos provém de áreas periurbanas. As aves são o grupo com maior número de animais recolhidos. Dentro deste grupo, as gaivotas e as aves de rapina são as mais representadas. Dentro do grupo de mamíferos, destacam-se os ouriços-cacheiros e as raposas. Nas espécies exóticas, a generalidade dos animais recolhidos são da espécie tartaruga-de-orelhas-vermelhas.
Centro
No Centro, a maioria das espécies são recolhidas/resgatadas em meio rural. As principais espécies resgatadas são a águia-de-asa-redonda (Buteo búteo), andorinhão (Apus apus), cegonha branca (Ciconia ciconia), coruja das torres (Tyto alba), milhafre preto (Milvus migrans) e mocho Galego (Athene noctua).
Norte
No Centro de Recuperação de Fauna Selvagem do Gerês, as recolhas/entregas acontecem maioritariamente em meio rural, por ser habitat de espécies selvagens protegidas. As espécies com maior número de entradas são aves de rapina, nomeadamente mocho-galego (Athene noctua), coruja-do-mato (Strix aluco) e a águia-de-asa-redonda. Já na Divisão da Vigilância Preventiva e Fiscalização do Norte, os animais recolhidos são provenientes, na maioria, de meio urbano. As espécies com maior número de entradas são aves aquáticas e aves de rapina.