Médico ganhou 51 mil euros num só dia de trabalho no Hospital de Santa Maria. Um dos dias foi usado para retirar lesões benignas aos pais. Presidente da unidade ficou tão surpreendido com a reportagem que ordenou a suspensão imediata do serviço e uma auditoria interna para investigação
Um dermatologista do Hospital de Santa Maria ganhou, num sábado, mais de 51 mil euros. Uma parte do bolo de 400 mil euros auferidos em dez sábados de trabalho adicional no ano passado.
Em causa está o chamado SIGIC, o Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia, um sistema que permite fazer cirurgias fora do horário laboral, de modo a mitigar as longas filas de espera nos hospitais.
Se por um lado aumenta a produtividade e diminui as listas de espera, por outro é um incentivo financeiro para os profissionais de saúde, tendo em conta que recebem dinheiro por isso.
Ora, para os médicos poderem fazer cirurgias ao fim de semana, têm de cumprir uma meta. “Deve existir um limite máximo de SIGIC a não ultrapassar um terço da produção cirúrgica total. Cada um dos interessados em participar no SIGIC em 2024 deverá produzir em cirurgia regular registada como tal em sistema na proporção estimada de 3:1. Ou seja, será necessário realizar 66 cirurgias de ambulatório para poder fazer um dia de SIGIC com 22 doentes. A proporção mínima permitida é 2:1", pode ler-se num e-mail enviado à equipa de dermatologia pelo diretor do serviço, ao qual o Exclusivo do Jornal Nacional da TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal) teve acesso.
O Exclusivo teve também acesso às listas das cirurgias feitas durante a semana. Grande parte dos procedimentos são simples, como retirar quistos e sinais benignos, que demoram, em média, 10 minutos e são a via verde para as cirurgias que pagam fortunas ao fim de semana. E aqui é que está o cerne da questão.
Numa investigação a mais de dois mil documentos, de 2021 até novembro de 2024, houve um dermatologista que se destacou - Miguel Alpalhão. Só no ano passado, num dia de produção adicional, um sábado, ganhou mais de 51 mil euros. Fazendo as contas, este profissional de saúde ganhou mais de 400 mil euros em 10 sábados, em 2024.
Os valores em causa correspondem a qualquer coisa como 40 mil euros por cada dia trabalhado. Para se ter uma ideia de comparação, um médico que trabalhe no regime normal nunca poderá ganhar mais de 5.063,38 euros por mês, o que dá cerca de 170 euros por dia.
Em entrevista ao Exclusivo, Carlos Martins, presidente do Hospital de Santa Maria, garante que, "se existisse alguma situação anormal, ela seria reportada ou seria detetada" nos sistemas de controlo do hospital.
Carlos Martins afirma que, a confirmarem-se os valores auferidos pelo dermatologista nos respetivos sábados de trabalho adicional, eles "não eram admissíveis de todo". "O médico em causa não ganhou 400 mil euros em 10 dias. Isso era impossível. Digo-lhe que todos os sinais de alarme disparavam", garante, acrescentando que há "vários momentos de controlo" num SIGIC.
O problema é que Miguel Alpalhão é o único codificador do serviço de dermatologia, ou seja, era ele que introduzia os dados no sistema para gerar os pagamentos de todos os que participam nas cirurgias adicionais.
Mas há mais. Este médico usou o sistema, ou seja, o dinheiro público, para retirar lesões benignas aos pais, no final de 2023.
Depois desta entrevista, em que o presidente do Hospital de Santa Maria ficou visivelmente surpreendido, Carlos Martins determinou a suspensão, já a partir deste sábado, das cirurgias em programa adicional. Chamou ainda a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) para investigar e determinou a abertura de uma auditoria interna. O Ministério Público já pediu informações ao hospital sobre este caso.
O diretor do serviço, Paulo Filipe, e o dermatologista em questão, Miguel Alpalhão, foram contactados, mas até ao momento não responderam ao Exclusivo.
Das várias instituições contactadas, o Exclusivo recebeu muito poucas respostas ao problema. A Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) diz que o sistema é atualizado de dois em dois anos, garante que não tem competência para fazer auditorias e remete para a Inspeção das Atividades em Saúde e para a Direção-Executiva do SNS, que tutela o SIGIC.
Quer a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde, quer a Direção-Executiva do SNS não responderam às questões do Exclusivo, apesar da insistência.