Exclusivo: tribunais obrigam crianças a longos internamentos no hospital sem necessidade médica 

13 jun, 21:00

Médicos do Hospital Dona Estefânia denunciam uma prática que consideram ilegal e lesiva: crianças e adolescentes saudáveis mantidos internados durante meses por ordem dos tribunais, sem qualquer necessidade médica. Há menores hospitalizados há mais de um ano

Sete crianças, na sua maioria já adolescentes, estão a viver internadas na ala de Pedopsiquiatria do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, sem qualquer indicação clínica para isso. A situação, denunciada por 19 médicos pedopsiquiatras da Unidade Local de Saúde (ULS) de São José, resulta de decisões judiciais que determinam o acolhimento residencial em ambiente hospitalar. Há crianças internadas há mais de um ano.   

Esta prática, adotada por vários tribunais, tem vindo a agravar-se nos últimos meses. “Há crianças que estão meses. Não estamos a falar de três dias ou de uma semana. Mas de meses e, às vezes, mais de um ano”, alertou Margarida Marques, responsável pela Pedopsiquiatria da ULS de São José. “Isto é uma situação que é lesiva para todos, mas sobretudo para as próprias crianças”, afirmou. 

Perante a denúncia dos 19 médicos, Rosa Valente, presidente do Conselho de Administração da ULS de São José, enviou cartas, sem sucesso, a várias entidades — incluindo, a Procuradoria-Geral da República (PGR), os ministérios da Saúde e da Justiça, o Conselho Superior da Magistratura (CSM), a Ordem dos Advogados e a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens. 

Na missiva, Rosa Valente denuncia aquilo que considera ser “uma violação da Lei da Saúde Mental (Lei n.º 35/2023)”. “O acolhimento residencial em instituição hospitalar mais não é que um internamento hospitalar coercivo, imposto sem a validação técnica de um médico”, lê-se na carta, que acrescenta que “tal medida prejudica não só os jovens que são internados compulsivamente à margem do regime do tratamento involuntário, como também todos aqueles outros jovens que, efetivamente, apresentando critério clínico para ser internados, não podem ser assistidos por falta de vaga.”

Os próprios médicos alertam para os riscos físicos e emocionais de manter crianças em ambiente hospitalar sem necessidade clínica. “Muitas vezes isto configura uma situação de maus-tratos para as crianças. Viverem aqui encerradas, num ambiente que é disfuncional para elas”, afirmou Margarida Marques acrescentando: “Estão privadas dos seus direitos básicos, por exemplo, atividade física. Aqui não é possível.” 

Melanie Tavares, psicóloga clínica e coordenadora no Instituto de Apoio à Criança (IAC), reforça os danos causados por este tipo de medida: “As medidas de acolhimento têm sempre um efeito nocivo para a saúde mental da criança. No hospital temos a certeza que não é o local indicado. Pode ter efeitos até no desenvolvimento físico e, obviamente, no desenvolvimento emocional da criança.” 

A advogada Isabel Malheiro, contactada pela Ordem dos Advogados, ainda no mandato da anterior bastonária Fernanda Pinheiro, para acompanhar o caso, considera que estas decisões judiciais são ilegais: “Um hospital não é nem pode ser nunca um local de acolhimento residencial. Essa decisão de os colocar num hospital parece-me manifestamente ilegal e atentatória dos direitos das crianças.” 

Já a procuradora Elsa Castelo, do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) explicou que, “pontualmente há situações de crianças a jovens têm alta clínica, mas não têm alta social e que, efetivamente, aguardam algum tempo nos hospitais”. 

“São situações que se prendem com falta de recursos, com a falta de vaga e depois também depende da especificidade da situação”, frisou. 

Porém, sublinhou que, “a lei determina que o acolhimento residencial é feito em casas de acolhimento, e os hospitais não são casas de acolhimento”. Segundo a procuradora pode acontecer “a intervenção de um hospital no quadro de um acolhimento residencial”, mas a lei é muito especifica. 

“A Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP) diz que, excecionalmente, e em casos devidamente fundamentados, e por tempo especificamente determinado, crianças e jovens que apresentem problemas específicos designadamente, não só doenças crónicas, deficiência, como também alguma perturbação de natureza psiquiátrica, podem ser integradas em instituições que desenvolvam respostas residenciais nestas áreas”. 

Questionada pelo Exclusivo, a PGR que respondeu que “o Gabinete da Família, da Criança e contra a Violência Doméstica (GFCVD) tomou conhecimento do teor da comunicação da ULS de São José, a qual, de forma genérica, fazia referência a internamentos em pedopsiquiatria sem indicação clínica”. 

 A PGR sublinhou que, “na ausência de identificação de situações concretas, o GFCVD solicitou a todas as Procuradorias-Gerais Regionais que informassem se tinham conhecimento de casos semelhantes — tendo as respostas sido negativas”. 

Porém, a PGR afirmou que, “posteriormente, chegou ao conhecimento do GFCVD um caso concreto referente a um processo de promoção e proteção a favor de um jovem, atualmente já maior, em que foi aplicada uma medida de acolhimento residencial (não hospitalar), a executar em instituição especializada, adequada à sua problemática de saúde mental grave”. 

Segundo a PGR, “por falta de vaga, o jovem continua internado numa unidade hospitalar e o GFCVD tem acompanhado a situação e procurado obter informações atualizadas”. 

A PGR acrescentou ainda “que os processos de promoção e proteção têm natureza judicial, sendo a decisão de aplicação de medidas da competência de um juiz, e não do Ministério Público”. 

O Exclusivo tentou ouvir a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), mas não foi possível obter um comentário a esta situação. 

O CSM, por sua vez, confirmou que também recebeu a comunicação da ULS de São José, sobre o decretamento de medidas cautelares de acolhimento residencial em instituição hospitalar. “Na sequência dessa comunicação, o CSM procedeu à articulação com os gabinetes governamentais competentes, tendo em vista um eventual enquadramento interinstitucional mais alargado sobre a matéria”, sublinhou, acrescentando que “o acolhimento de crianças e jovens em contexto hospitalar, sobretudo quando não se verifica indicação clínica, suscita questões que ultrapassam a intervenção estrita dos tribunais e exigem respostas estruturadas de diferentes áreas da administração pública, com especial destaque para os setores da saúde e da segurança social”. 

Apesar das cartas da presidente da ULS de São José terem sido enviadas no final do ano passado, mais de seis meses depois, a situação mantém-se. 

 Quando estávamos a fazer esta reportagem chegou mais uma criança nas mesmas condições. A juíza que enviou a criança dizia mesmo que era para ficar no hospital, quer tivesse ou não indicação clínica para tal. “A adolescente é conduzida ao serviço de Pedopsiquiatria do Hospital Dona Estefânia onde deverá ser observada e, ainda que não reúna critérios para internamento, deverá ali permanecer, até que resulte viável a sua institucionalização numa casa de acolhimento especializada”, lê-se no despacho judicial. 

 A ULS de São José já interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, relativamente a uma das medidas decretadas a uma das crianças, mas reconhece que os tempos da justiça não acompanham a urgência da situação. Enquanto isso, crianças e adolescentes continuam a viver num ambiente “hospitalar inadequado, privados de liberdade, educação e apoio emocional”. 

Contactamos várias unidades de saúde de todo o país para saber se tinham situações semelhantes. Foram também relatados casos de acolhimento residencial, por dificuldades sociais em colocar as crianças em instituições, sobretudo na zona de Lisboa, mas nenhuma das situações implicou meses ou anos de internamento. 

A Unidade Local de Saúde Santa Maria (ULSSM) reportou uma situação relativa à última semana de maio, referente “ao internamento de uma adolescente, por despacho judicial, no âmbito do qual foi solicitada a retenção social da jovem no Hospital de Santa Maria até existência de vaga de emergência em acolhimento residencial”, tendo ficado internada apenas três dias. 

A ULSSM informou ainda “que este tipo de situação é frequente, mas habitualmente o tempo médio de resposta das instituições para existência de vaga é breve”. “No entanto, se estiverem em causa jovens de idade superior a 15 anos ou crianças/jovens com necessidade de acolhimento residencial em Lar de Infância e Juventude Especializado, a existência de vagas no exterior é menor, aumentando os tempos de resposta e de internamento no hospital”, sublinhou a mesma fonte hospitalar que deu um exemplo de um caso que ocorreu em 2023. 

Tratou-se de uma jovem com mais de 15 anos que ficou 40 dias internada no hospital “com uma medida de acolhimento residencial aplicada, mas não executada, por inexistência de vagas em instituição”. “À data, o então Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte foi notificado para que o jovem permanecesse internado até existência de resposta institucional, o que nunca se veio a verificar, tendo sido encontrada uma alternativa em meio natural de vida”, acrescentou. 

Já a ULS Amadora/Sintra referiu que “ocasionalmente tem casos de recém-nascidos que ficam retidos a aguardar decisão do tribunal, mas o tempo de resposta para estes casos é variável, mas não costuma ser muito demorado”. 

Além disso, a mesma unidade de saúde, relatou que “em 2024 houve uma situação em que o Tribunal Judicial da Comarca de lisboa Oeste aplicou a uma criança a medida de apoio acolhimento residencial, aos cuidados do Hospital Fernando da Fonseca, até ao encaminhamento subsequente após conclusão das diligências em curso". 

Segundo o hospital, “esta medida foi decretada a 22 de novembro de 2024, tendo sido alterada a 8 de janeiro de 2025, com a aplicação da medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, na pessoa da mãe – a executar no centro educativo”.  

Também a ULS do Oeste confirmou que tem tido situações semelhantes, mas não deu mais informação.

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