"Sei perfeitamente como é que isto vai terminar: não vai acontecer nada a ninguém" - o que Tony Carreira disse sobre o caso de Sara e o que dizem os números da Justiça portuguesa

23 abr 2023, 22:00
Sala de audiências

Ivo Lucas, Cristina Branco e Paulo Neves, os três arguidos no processo da morte da cantora Sara Carreira, vão ter de responder em tribunal pelo crime de homicídio por negligência. Fomos ver o que aconteceu em tribunal desde 2013 nos julgamentos de homicídio por negligência relacionados com acidentes de viação

"João" "atuou com inconsideração, imperícia e negligência" no dia em que fez uma manobra errada na estrada, acabando por colidir com um carro, resultando do acidente uma vítima mortal provocada por complicações na sequência dos ferimentos. Acabou acusado de homicídio por negligência depois de o tribunal ter dado como provado que tinha tido responsabilidades no caso, tendo sido condenado pelo Tribunal da Relação do Porto a 16 meses de pena suspensa, ficando ainda obrigado ao pagamento de duas multas num total de mil euros (já tinha cumprido 11 meses sem carta de condução após decisão da primeira instância).

O caso de "João" é um dos 3.522 acusados de homicídio por negligência relacionados com acidentes de viação em Portugal desde 2013. Os dados fornecidos pelo Ministério da Justiça à CNN Portugal mostram uma realidade clara: a esmagadora maioria dos homicídios por negligência ocorrem neste contexto, sendo raros os que acontecem noutras circunstâncias.

Crimes de homicídio por negligência entre 2013 e 2022 (Ministério da Justiça)

Acusação semelhante recai sobre Ivo Lucas, Cristina Branco e Paulo Neves, os três arguidos no processo da morte da cantora Sara Carreira que vão ter de responder em tribunal pelo crime de homicídio por negligência, uma acusação que, estatisticamente, acaba muitas vezes da forma que o pai da vítima, Tony Carreira, previu: “em nada”.

É que, a julgar pelos dados consultados pela CNN Portugal, do total de 3.550 casos de homicídio por negligência desde 2013, grande parte não chega sequer a ir a tribunal, nem mesmo à primeira instância. Com efeito, entre 2013 e 2021 julgaram-se 2.393 casos deste género, dos quais 1.705 acabaram em condenações. Mas que condenações?

Prisão em casos de viação é praticamente impossível

No caso de “João” estamos a falar de alguém com vários antecedentes, que até já tinha, segundo o tribunal, evidenciado um comportamento de “repetida insensibilidade”. Ainda assim, e apesar das penas aplicadas, dificilmente podia ser condenado a uma pena de prisão efetiva, mesmo que se considerasse alguma agravante.

“Quando falamos de direito penal estradal diria que, nesses casos, a esmagadora maioria será pena suspensa”, afirma Paulo Saragoça da Matta, especialista em Direito Penal e que considera as multas e penas acessórias como as medidas mais efetivas nestes casos.

Foi o que aconteceu a “João” e é o que acontece na maioria dos casos. Mesmo que provada a negligência grosseira, crime imputado a Ivo Lucas e Paulo Neves, dificilmente a condenação irá para lá de uma pena suspensa, mesmo que acumulada com o pagamento de uma multa e outras penas acessórias.

Nesse caso, diz Paulo Saragoça da Matta, falamos de cursos ou aulas de condução ou multas em dinheiro, por exemplo, sendo este um campo em que “o legislador tem uma enormíssima imaginação”.

Quando a negligência dá prisão

Se a esmagadora maioria dos homicídios negligentes cometidos em Portugal dizem respeito a acidentes de viação, é sabido que as outras circunstâncias têm uma maior probabilidade de acabar em prisão, mesmo que a pena máxima para este crime sejam os cinco anos.

Paulo Saragoça da Matta lembra que não é a moldura penal que define a efetividade ou suspensão da pena mas antes os requisitos que estão por detrás do processo. Entre eles, explica o advogado, podá estar o facto de a pena ser ou não superior a quatro anos (se for inferior torna-se mais possível a suspensão).

“Uma coisa é a moldura legal, outra são os requisitos para a suspensão”, acrescenta o especialista, elencando que também é necessário perceber se a suspensão da execução da pena permite atingir os fins do Direito e do processo penal, isto é, assegurar o bom funcionamento da sociedade e garantir que da liberdade daquela determinada pessoa não surgem riscos acrescidos para os outros.

Por isso mesmo “pode haver muitos crimes com pena inferior a quatro anos que ainda assim tenham pena efetiva”. Para isso, e sejam crimes associados a negligência ou a outra tipificação, “basta que qualquer outro requisito da suspensão da pena não esteja verificado”.

Por outro lado, e voltando à possibilidade da suspensão, Paulo Saragoça da Matta destaca que há vários fatores a ter em consideração: “Se somarmos o ser um arguido primário [que nunca teve problemas com a justiça], que deve ser levado em consideração, então uma pena até quatro anos tem grande probabilidade de ser suspensa”. Ainda assim, acrescenta o advogado, se o tribunal entender que a efetividade da pena é fundamental para algum dos fins do Direito Penal, seja prevenção geral, seja prevenção especial, ou até a retribuição do mal causado, pode ser aplicada uma pena de prisão efetiva.

De resto, e como explica o Ministério Público, “sempre que ao arguido for aplicada pena de prisão até cinco anos, pode o tribunal determinar o não cumprimento ou execução da pena de prisão”, tendo para isso em consideração a “personalidade do arguido, as condições de vida, a conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias da prática deste”.

Negligência grosseira, o que significa

Para que exista uma condenação a prisão efetiva terá de haver sempre uma ação grosseira ligada ao homicídio por negligência. No caso dos acidentes de viação, e mesmo sabendo que aí existe sempre uma menor probabilidade, há determinados fatores que podem fazer com que o crime seja negligente.

O magistrado que deduziu a acusação no caso da morte de Sara Carreira entende que o facto de Paulo Neves estar embriagado à hora do acidente aumentou exponencialmente o risco de colisão na traseira do seu veículo, como veio a acontecer com a viatura conduzida por Cristina Branco. A condução sob o efeito de álcool é, portanto, um dos fatores em causa, sendo que Paulo Neves apresentava uma taxa de alcoolemia de 1,18 gramas por litro de sangue quatro horas após o acidente.

"A conduta grosseira é quando o comportamento é altamente censurável ou existe uma desatenção ou relaxo por parte de quem praticou o facto", explica Paulo Saragoça da Matta, que dá um outro exemplo no caso dos acidentes de viação: a velocidade. "Imaginemos que o limite é 50 quilómetros por hora mas a pessoa vai a 70, é uma coisa. A negligência será necessariamente grosseira se o agente for a 120", afirma, sublinhando que "ninguém pode achar que a negligência é comum se se vai a 200 numa autoestrada", acrescentando que "é diferente se se tiver tomado um copo de cerveja ou se esteve a noite toda a beber".

"Há sempre uma gradação entre a negligência de censurabilidade ao agente, porque o seu relaxo foi mais censurável", conclui.

Quem também viu agravada a acusação foi Ivo Lucas, namorado de Sara Carreira. O juiz decidiu acrescentar “grosseiro” ao homicídio por negligência. Como Paulo Neves, incorre numa pena de até cinco anos. Circulava a 130 quilómetros por hora na faixa central da A1 e não conseguiu desviar-se do carro de Cristina Branco. A concorrer para a negligência grosseira pode estar o facto de o arguido não ter tido em consideração as condições meteorológicas, uma vez que chovia bastante à altura do acidente.

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