O portista que sonha com Portugal e quer travar o FC Porto

9 mar 2022, 09:09

Damien da Silva, central do Lyon, é adepto dos dragões por influência do pai e foi do fundo do futebol francês à Liga dos Campeões... com uma formação em Literatura pelo meio

«O FC Porto é um clube muito especial para mim. O meu pai é um grande adepto portista e tenho família numa pequena vila a 25 minutos do Porto. Vai ser um jogo especial, claro. Eu também era adepto do clube quando era mais jovem… bem, ainda sou, mas agora um pouco menos.»

Há dias na vida dos futebolistas em que o coração tem de ficar do lado de fora das quatro linhas.

E nesta quarta-feira, o coração de Damien da Silva, defesa de 33 anos do Lyon, terá de ficar ali pela bancada do Estádio do Dragão.

Mas pelo menos terá companhia.

O coração portista de Damien pode ficar ao lado da família que, certamente, fará a curta viagem entre Oliveira Santa Maria, freguesia do concelho de Vila Nova de Famalicão, para apoiar o jogador que este ano reforçou o adversário do FC Porto nos oitavos de final da Liga Europa.

É possível que o pai do jogador de 33 anos esteja por lá meio dividido. Mas Damien acredita que os laços de sangue terão pelo menos um bocadinho mais força.

«Nestes jogos, acho que o meu pai me vai apoiar a mim. Não lhe perguntei, mas acredito que sim», respondeu sorridente, há dias, numa entrevista feita pelo Lyon, acreditando mais no apoio de outros familiares.

«Tenho um tio do Benfica e outro do Sporting. E os filhos seguiram os clubes dos pais. Por isso, os meus tios e primos que são do Sporting e do Benfica vão apoiar o Lyon de certeza. Também porque eu jogo no clube», acrescentou.

Ora, mas quem é afinal este portista nascido em Talance, perto de Bordéus, que chegou esta época ao Lyon e que ainda sonha com a seleção portuguesa?

Da formação com Adrien no Bordéus à queda na quinta divisão

Apesar de ter feito quase toda a formação no Bordéus, clube no qual se iniciou com cinco anos e no qual chegou a ser colega de Adrien Silva antes de o internacional luso voltar a Portugal, a carreira de Damien da Silva não começou pelo topo.

Bem longe disso.

Depois de se ter destacado nos escalões mais jovens, no último ano da formação, Damien achou que o sonho do profissionalismo iria morrer cedo.

«Quando fui dispensado, disse a mim mesmo que o meu sonho de ser futebolista estava acabado. Os dirigentes do Bordéus disseram-me abertamente que eu não tinha nível para jogar na Ligue 1 – o que acho um absurdo de dizer a um adolescente. Caí de muito alto», assumiu em entrevista à Sofoot.com, em 2020.

A desilusão, porém, rapidamente desapareceu. Porque o prazer de jogar futebol falou mais alto.

É verdade que as internacionalizações sub-17 e sub-19 pela seleção francesa lhe valeram de pouco na chegada ao futebol adulto. Mas mostravam que havia potencial.

O percurso sénior do luso-descendente, filho de pai português e mãe francesa, começou no modesto Chamois Niortais, do terceiro escalão gaulês, o clube em que concluiu a formação. E no qual foi verdadeiramente feliz.

«Éramos um bando de amigos que jogavam futebol e ganhavam uns jogos. O que se pode pedir mais?», questionaria, anos mais tarde, já profissional e a jogar na Ligue 1, numa entrevista ao site do clube da cidade de Niort.

«Era uma verdadeira aventura humana. As minhas melhores recordações do futebol são desse tempo. Jogávamos para ganhar, mas nunca esquecíamos o prazer de jogar. E de jogar bem. E isso pode perder-se, por vezes, no futebol profissional», acrescentava.

Damien da Silva nos tempos do Chamois Niortais

Após quatro épocas no clube, Damien foi contratado pelo Châteauroux, da segunda divisão, mas viveu ali os momentos mais duros da carreira e pensou deixar o futebol, como admitiu na entrevista à Sofoot.

«Sentia-me transparente no grupo, aquilo fazia-me mal e quis deixar o futebol de alto nível. Fui emprestado para uma equipa da 5.ª divisão, a jogar com miúdos de 17 anos, quando tinha 23 e achei que aquilo não era para mim, por isso teria de fazer outra coisa da minha vida».

Findo esse empréstimo, a época seguinte, porém, surgiu novo convite para a terceira divisão. O Rouen abriu as portas ao luso-descendente que viveu ali três épocas de regularidade para voltar à segunda divisão francesa, pelo Clermont.

De repente, a Ligue1, a Champions… e a Literatura pelo meio

Aos 26 anos, apesar de ter construído uma carreira em crescendo, Damien da Silva já não se imaginava a voar no futebol.

Aprendera a viver «um dia de cada vez». E o clichê, passo a passo, levou-o ao topo.

Quase como uma história saída de um filme. Ou de um livro. De um livro.

Damien da Silva é mais de livros. A escrita é a paixão que concilia com o futebol e nos momentos mais baixos em termos desportivos, até fez um bacharelato em literatura que conciliou com aulas de... português.

E garante: se não tivesse dado futebolista, teria apostado no jornalismo desportivo.

Mas deu futebolista. Após as agruras do início da carreira, a partir dos 26 anos o percurso tem sido sempre a subir.

O defesa ficou apenas um ano em Clermont e, contra as próprias expectativas, chegou à Ligue1 aos 27 anos, pela porta do Caen.

Damien assumiu-se no Caen e tornou-se capitão

«A esperança de um dia chegar à primeira divisão tinha ficado arrumado num canto da minha cabeça, mas não pensava nisso. Passei a encarar a vida passo a passo», assumiria, já como jogador do Lyon, explicando.

«Quando estava no Rouen essa possibilidade não me passava pela cabeça nem por um instante. Se com aquela idade estás no National [teceira divisão], por alguma razão será.»

Alguma razão seria. Mas não a falta de qualidade, como demonstrou no principal escalão francês.

Após quatro épocas como patrão da defesa do Caen, Damien da Silva deu o salto para o Rennes, em 2018, e assumiu-se rapidamente na equipa que nessa época conquistou a Taça de França e chegou aos oitavos de final da Liga Europa.

No ano seguinte, o terceiro lugar na Ligue1 valeu o apuramento histórico para a Liga dos Campeões, prova na qual o luso-descendente surgiu como capitão de equipa.

De resto, as três épocas ao serviço do Rennes convenceram depois o Lyon a recrutar o jogador que, aos 33 anos, chegou por fim a um dos maiores clubes gauleses.

Mas ele não quer ficar por aí. E tem o próprio percurso como inspiração.

«Quando jogo menos bem ou me sinto menos motivado, digo para mim mesmo: ‘Hei, lembra-te do passado e mexe o rabo!», assumiu à Sofoot.

Agora, época de estreia Damien leva14 jogos pelo atual 9.º classificado da Ligue1, com quem assinou até 2023. E nesta quarta, terá a oportunidade de cumprir um sonho: jogar no Estádio do Dragão, frente ao ‘seu’ FC Porto.

«José Fonte chegou tarde à seleção, ainda posso cumprir esse sonho»

O futebol está presente desde sempre na vida de Damien da Silva e é, sobretudo, pelo lado da família do pai.

E o objetivo que ainda tem por cumprir está bem identificado na cabeça do luso-descendente.

«A minha família portuguesa está toda ligada ao futebol. O meu pai é fanático por futebol, a minha tia é treinadora de uma equipa feminina, uma prima minha joga futsal em Portugal, outra já jogou em França, a minha madrasta também já jogou futebol… É uma paixão», descreve na já citada entrevista à Sofoot.

«Todos os anos, no final da época, faço um jogo com a minha família e amigos. A minha mãe organizou o primeiro para me fazer uma surpresa e a tradição ficou. Todos jogam: os meus primos, a minha mãe, toda a gente! E é giro ver a família toda a jogar futebol», confidenciou ainda na mesma entrevista.

Damien da Silva (em baixo, à esquerda) em pose com os familiares

Ora, essa ligação forte ao futebol português, além de ter feito de Damien adepto do FC Porto, como se escreveu no início destas linhas, fez crescer nele a ambição de jogar de quinas ao peito.

«Eu sempre torci pela seleção portuguesa porque vivia mergulhado em referências dela. O meu pai é louco pela seleção e eu cresci a ver os jogos com ele. Por isso, preferia jogar por Portugal do que por França. Sempre fui fã do estilo de jogo português», elogiou numa outra entrevista à France Bleu, em 2016.

E da mesma forma que o sonho de chegar ao topo do futebol francês foi construído passo a passo, o de um dia poder vestir a camisola de Portugal também não foi ainda abandonado, como confessou mais recentemente em conversa com o Luso Jornal, publicação portuguesa em França.

«Se a oportunidade aparecer, eu quero agarrá-la. Nunca escondi essa vontade. Penso de vez em quando nisso, e acho que nunca é tarde. O José Fonte chegou tarde à Seleção, é um exemplo para mim, e acredito que também posso chegar lá. Ele é um grande defesa e muitas pessoas não entendem porque não foi convocado antes e acredito que pode ser igual para mim», desabafou.

A eliminatória diante do FC Porto pode ser, por isso, a montra ideal para Damien da Silva se mostrar a Fernando Santos e ao público português.

Por isso, se calhar, o coração de Damien da Silva não vai ficar de fora do jogo no Dragão.

É que se para o Lyon está em causa o apuramento para os quartos de final, para Damien da Silva pode estar muito mais.

E a carreira dele prova que não há obstáculos capazes de o travar.

Ia agora ser o coração portista a fazê-lo?

 

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