O miúdo que aos cinco anos guardava cabras tornou-se o melhor do mundo

24 set 2018, 23:52
Modric

Luka Modric ultrapassou tudo, o som das bombas, a morte do avô, a vida de refugiado, ultrapassou até um rotundo não do clube do coração quando era apenas adolescente. Esta segunda-feira colocou um ponto final no duopólio de Messi e Ronaldo. Fez história, portanto.

Esta é a história de um sobrevivente da guerra que se tornou no melhor do mundo.

Luka Modric cresceu na rural Modrici, uma pequena aldeia nas encostas das montanhas Velebit, perto da fronteira com a Bósnia. Os pais, Stipe e Radjoka, trabalhavam de sol a sol numa fábrica de malhas e tecidos, pelo que Modric passava a maior parte do tempo com o avô paterno, em homenagem a quem recebera o nome de Luka, aliás.

O avô era pastor, um homem humilde mas respeitado, e Modric criou com ele laços muito fortes. O que era natural, até porque estava quase sempre em casa dele.

Muitas vezes Modric ia para as montanhas ajudar o avô e na altura foi até filmado a guardar cabras, daquela vez na companhia do pai, durante um documentário sobre lobos do realizador Pavle Balenovic, que se tornara por essa altura amigo da família.

 

 

Até que deflagrou a guerra civil da Jugoslávia: um violento conflito que começou em 1991, durou dez anos e matou mais cem mil pessoas, sobretudo bósnios e croatas.

Uma das vítimas da guerra foi precisamente o avô de Modric. Num dia de manhã saiu bem cedo para alimentar o gado numa colina próxima e nunca mais voltou. Foi capturado pelas milícias sérvias, levado para a cidade costeira de Jesenice e executado a sangue frio com mais seis idosos.

A casa do avô foi incendiada, deixando reduzidas a cinzas todas as memórias de Modric. Por isso o jovem Luka, então com seis anos, teve de abandonar a aldeia: fugiu com a família e todos os pertences que puderam meter em meia dúzia de sacos para a cidade de Zadar, a cerca de 50 quilómetros de distância, onde encontraram um quarto no Hotel Kolovare: uma unidade hoteleira que tinha sido transformada em refúgio de famílias fugidas da guerra.

A guerra continuou a bater-lhe à porta frequentemente, até porque a cidade esteve cercada dois anos, tornando-se palco de violentos confrontos entre milícias sérvias e croatas.

Luka Modric aprendeu a jogar futebol no parque de estacionamento do hotel, que muitas vezes acordava com crateras depois de mais uma noite de combate. Mas os pais do jovem sempre o incentivaram a sair para a rua, a conhecer outras crianças e a viver plenamente a infância.

Foi aliás a paixão por jogar futebol que o levou a cruzar-se com Marko Ostric, outra criança croata que vivia como refugiada no Hotel Kolovare. A partir de então tornaram-se inseparáveis. Ainda hoje em dia são melhores amigos, aliás, sendo comum vê-los, por exemplo, passar férias juntos.

Os dois jogavam futebol no hall, nos corredores ou no parque de estacionamento. Até ao dia em que um empregado do hotel se encantou com Modric e telefonou a Josip Bajlo, o diretor-geral do NZ Zadar, entusiasmado com o miúdo. Josip Bajlo deslocou-se ao parque de estacionamento e ficou também ele maravilhado com o controlo de bola daquela criança.

Tinha de o levar para o clube.

Tratou de mudar a família para um hotel de refugiados mais perto do clube, matriculou o miúdo numa escola primária próxima e inscreveu-o no clube.

No NZ Zadar, Modric deu asas ao sonho de ser jogador de futebol ao som de bombas e tiros. O treinador criou até um prémio para distinguir o jovem mais rápido a fugir para o refúgio quando se começava a ouvir o som das bombas: uma forma de incentivar as crianças a fugir do perigo.

A carreira do melhor do mundo começou debaixo destas circunstâncias.

«Para mim era evidente que ele estava destinado a ser um dos grandes», disse mais tarde o seu treinador de então, Miodrag Paunovic.

«Ele era jogador da bola. No entanto, não havia muitos a acreditar nele, porque era demasiado pequenino, baixinho e parecia delicado com uma folha. Nessa altura nos Balcãs havia a ideia feita que era preciso ser-se fisicamente forte para se ter sucesso no futebol.»

Exatamente por isso, aos 12 anos, Luka Modric viveu uma das maiores desilusões da carreira: Tomislav Basic, diretor da academia do NZ Zadar, levou-o a um período de testes no Hadjuk Split. Era um sonho para Modric: o Hadjuk Split era o clube do coração dele e, para além disso, ficava perto de Zadar. No entanto o sonho tornou-se em pesadelo, quando o então adolescente foi rapidamente reprovado por ser demasiado pequeno e fisicamente frágil.

O Zadar tinha vencido o Hadjuk Split num jogo do campeonato local e o clube grande quis colocar em exame dois miúdos: Mario Grgurovic e Luka Modric. O primeiro viajou no início da época seguinte e foi aprovado, o segundo foi chamado seis meses depois e foi reprovado.

A desilusão foi enorme e Modric quis, durante alguns meses, deixar o futebol.

Foi Tomislav Basic - o diretor a quem mais tarde chamou «pai desportivo» e a quem dedicou a primeira Liga dos Campeões que venceu - que o convenceu a continuar a insistir. O dirigente conversou muito com o adolescente, contratou um treinador pessoal para trabalhar com ele o desenvolvimento físico e restaurou-lhe a autoconfiança que o não do Hadjuk Split tinha roubado.

O crescimento do miúdo foi notável e Modric arrancou então para uma carreira de jogador.

Pelo caminho, e ainda ao serviço do NZ Zadar, participou num torneio em Itália que deixou os olheiros do Parma, do Inter e da Juventus bem impressionados. O interesse dos italianos chegou aos ouvidos do Dínamo Zagreb, que rapidamente se colocou em contacto com Tomislav Basic.

O acordo foi alcançado e Modric viajou para a capital croata. Tinha 16 anos e a guerra já terminara, embora os pais e a irmã mais nova continuassem a viver como refugiados num hotel de Zadar.

O jovem cumpriu então um ano e meio no clube, até que completou a formação. No primeiro ano de sénior, com 18 anos, foi emprestado ao Zrinjski Mostar. Era nem mais nem menos do que um clube bósnio, que disputava aquele que era considerado o campeonato mais brutal da Europa: as equipas eram formadas por polícias e seguranças, os jogos eram duríssimos, os adeptos eram implacáveis com estrangeiros, sobretudos de outras etnias da antiga Jugoslávia.

Mais do que físico, o campeonato bósnio era um teste psicológico. Que Modric passou. O miúdo de 18 anos aguentou todas as patadas, todos os insultos, todos os enxovalhos. Foi eleito o melhor jogador da liga e mostrou claramente que estava preparado para outros voos.

Apesar disso, o Dínamo Zagreb optou por voltar a empresta-lo no ano seguinte. Desta vez ao Inter Zapresic, um clube modesto que muitas vezes recebia os excedentários do vizinho da capital.

Aos 19 anos, Modric guiou o Inter Zapresic até ao primeiro (e único até hoje) segundo lugar da liga croata, sendo também chamado à seleção sub-21 por Slaven Bilic. A partir daí a vida mudou em definitivo para o talentoso médio. O Dínamo Zagreb assinou com ele um novo contrato, válido por dez anos, aumentou-lhe o salário e deu-lhe um bom prémio de assinatura.

Com esse dinheiro, Luka comprou um apartamento para a família em Zadar e os pais fizeram por fim check-out: tinham sido 13 anos a viver em hotéis para refugiados.

Modric afirmou-se no Dínamo Zagreb e ao longo de quatro anos fez 30 golos e 29 assistências, vencendo três vezes o título de campeão e outras três vezes a Taça da Croácia. Em 2006 foi chamado pela primeira vez à seleção principal, estreando-se num jogo com a Argentina, de Messi.

A partir daqui a história já é conhecida: Tottenham, Madrid , quatro Ligas dos Campeões, um vice-campeonato mundial pela seleção croata, melhor jogador do Mundial, melhor jogador da UEFA, e melhor jogador do mundo para a FIFA.

Modric chegou ao olimpo do futebol.

Pelo caminho colocou um ponto final no duopólio de Ronaldo e Messi. Pela primeira vez, ao fim de dez anos, não é Messi nem Ronaldo quem vence o prémio de melhor jogador do mundo.

Quem diria que seria um miúdo que aprendeu a jogar no meio da guerra, que ultrapassou o trauma de ver o avô ser assassinado, que cresceu num hotel de refugiados, que foi chumbado por ser demasiado pequeno e frágil, quem diria que seria um miúdo assim a travar a maior disputa da história do futebol?

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