Dragões só perderam quatro vezes nas 82 receções à equipa de Guimarães. Nas duas primeiras derrotas, o denominador comum foi Jorge Gonçalves, um extraordinário avançado brasileiro que acabou os seus dias na Cidade-Berço.
A História de Um Jogo é uma rubrica do Maisfutebol. Escolhemos um dos encontros do fim de semana e partimos em busca de histórias e heróis de campeonatos passados. Às quinta-feiras, de 15 em 15 dias.
No dia em que morreu, já poucos se lembravam do génio que foi nos relvados. Dedicara os últimos anos ao negócio no ramo da sucata, afastara-se do futebol, andava por Guimarães num anonimato que só podia ser um absurdo para quem o viu jogar nos anos 70.
Nesse triste 4 de março de 2010, data de falecimento, Jorge Gonçalves mereceu apenas uma pequena menção num jornal regional vimaranense. Curto, sim, mas elucidativo em relação aos predicados do antigo atacante do Vitória Sport Club.
«(…) Considerado ainda hoje como um dos mais brilhantes futebolistas que o clube contratou no Brasil, não seria, contudo, muito feliz na sua vida desportiva, devido a lesões graves que sofreu. (…)», escrevia o Guimarães Digital, num resumo perfeito da passagem do goleador pelo nosso campeonato.
Jorge Gonçalves tinha 61 anos, acabara os dias a viver no humilde Bairro de Nossa Senhora da Conceição e deixara nos mais próximos uma imagem inconfundível: um senhor bigode e o inseparável cigarro.
Nascido em janeiro de 1948 no Recife, estado de Pernambuco, Jorge ‘Portuga’ Gonçalves mudou-se muito cedo com os pais para o Rio de Janeiro e aos 16 anos já era profissional no Flamengo.
Esteve até 1969 (21 anos) no gigante da Gávea e só uma zanga com o truculento Dorival Yustrich – famoso em Portugal pelo trabalho no FC Porto na década de 50 – o levou a sair para a Portuguesa dos Desportos.
O puzzle ganhava forma. Jorge tinha a alcunha de ‘Portugal’ devido à origem do pai, discutira com um homem que fizera história nas Antas e representava a Portuguesa.
Um, mais um, mais um. Conclusão: no verão de 70, desafiado pelo treinador e compatriota Jorge Vieira, Jorge Gonçalves mudou-se de armas e bagagens para Guimarães. Ficaria no Minho até morrer. Demasiado cedo.
«Ouvi os relatos desses FC Porto-Vitória quando estava no Ultramar»
O nome de Jorge Gonçalves destaca-se na pesquisa efetuada sobre o histórico dos jogos entre o FC Porto e o Vitória na Cidade Invicta. Em 82 visitas aos dragões, os minhotos só venceram quatro vezes.
Nas duas primeiras [19 de março de 1972 e 29 de outubro de 1972], o herói é o rapaz pernambucano, chegado pouco mais de dois anos antes a Guimarães.
Os resultados repetem-se: 1-2 na jornada 23 do campeonato de 1971/72 e 1-2 na jornada 8 de 1972/73. Dos quatro golos do Vitória nessas duas partidas, três são da autoria do malogrado avançado.
Nada que surpreenda quem com tantas vezes ele privou. «Lembro-me muitíssimo bem do Jorge. Era um ponta-de-lança diferente, muito forte no choque e nos lances divididos. Jogava fixo na área e era um dos nossos melhores guerreiros.»
A avaliação é feita por José Alberto Torres, histórico futebolista e treinador do Vitória, ao Maisfutebol. O antigo defesa central vestiu a camisola branca de 1964 a 1979, com exceção dos quase três anos passados em Moçambique, no inferno da Guerra do Ultramar.
Eu parti para África no dia 6 de outubro de 1971 e voltei em abril de 1974. Apanhei a fase inicial e a parte final do Jorge no Vitória. Não estive nessas duas vitórias em casa do FC Porto, mas lembro-me de ter ouvido esses relatos na província moçambicana para onde fui destacado.»
As crónicas da época detalham as lesões graves de Jorge Gonçalves: na primeira temporada (70/71) fez só oito jogos e um golo, na segunda forma um ataque demolidor com Tito e Ibraim e alcança os melhores registos em Portugal (25 jogos/15 golos), apesar de ter fraturado a clavícula num jogo contra o Sporting.
Fortemente pretendido pelos leões e pelo FC Porto, Jorge só fica em Guimarães após a direção lhe aumentar o salário e pagar verbas em atraso. Iniciou 72/73 a fazer exibições memoráveis mas, uma vez mais, um problema físico atraiçoa-o.
Na 10ª jornada, o Vitória visita o Farense no São Luís e Jorge rompe os ligamentos internos, externos e cruzados do joelho direito. O mais impressionante é que mesmo nessas condições miseráveis, Jorge Gonçalves participa em mais… seis jogos.
Ele andava a jogar com o joelho desfeito. Foi até ao limite. O Jorge foi das pessoas mais humildes e sinceras que conheci no futebol e merece esta recordação póstuma que vocês lhe estão a fazer, pois há pouca gente que ainda se lembra do craque que foi.»
«Se o Vitória acompanhar a raça do André André…»
23 golos em 53 jogos oficiais não fazem justiça ao real valor de Jorge Gonçalves. José Alberto Torres garante ter sido «um dos melhores» de sempre com a camisola branca do Vitória.
«Nesses tempos tínhamos muitos jogadores da casa. Eu, o Costeado, o Artur, o Abreu, o Alfredo, puxávamos muito por quem vinha de fora. Com o Jorge não foi preciso nada disso e, aliás, ele passou a ser um de nós.»
A época de 1973/1974 foi passada na enfermaria, entre cirurgias e períodos de recuperação. Jorge Gonçalves participa em quatro jogos na temporada seguinte e desiste. O sofrimento levou a melhor sobre o prazer.
«As lesões dele eram sempre graves e as recuperações muito demoradas. Se fosse hoje, acredito que teria sido diferente. Teve várias recaídas e deixou de jogar muito cedo, creio que com 27 anos.»
Jorge Gonçalves construiu família em Guimarães, teve quatro filhos e algumas experiências como treinador (Felgueiras, Caçadores das Taipas e Oliveirense) e acabou por se dedicar posteriormente ao negócio da sucata.
Este homem, quase desconhecido, resolveu por duas vezes o FC Porto-Vitória. Como será na jornada 12 da Liga 2021/22?
«Se a equipa do Vitória acompanhar a raça do André André, o nosso capitão e filho do meu amigo André, teremos argumentos para discutir o resultado.»
FC Porto-Vitória SC, um clássico nortenho. A pensar em Jorge Gonçalves.
FOTOS: blog Glórias do Passado