Arsenal-ManUtd: a rivalidade que «fez» a Premier League, entre batalhas campais, botas e pizza a voar

19 jan 2023, 09:16
Manchester United-Arsenal, 2-0, Outubro 2004 (Foto AP)

Histórias de um duelo que alimentou durante anos a grande rivalidade do campeonato inglês, intenso e conflituoso. E doutro tempo que podia ter mudado a história. Como seria se Alex Ferguson tivesse aceitado treinar o Arsenal?

Escolhemos um dos encontros do fim de semana e partimos em busca de histórias. O Maisfutebol traz-lhe a História de Um Jogo.

O Arsenal está na frente da Premier League, em vantagem para chegar a um título que lhe foge há 19 anos. O Manchester United, a única equipa que derrotou os «Gunners» esta época no campeonato, alimenta a esperança de recuperar a estabilidade que perdeu na última década, depois da saída de Alex Ferguson. Este domingo reencontram-se, um novo episódio de um duelo que construiu uma era. Houve um tempo – antes da ascensão de Chelsea ou Manchester City e do ressurgimento do Liverpool - em que Arsenal contra Manchester United era a grande rivalidade do campeonato inglês, um confronto recheado de estrelas, intenso e conflituoso, que decidiu títulos e durante quase uma década deu enredo e personalidade à Premier League. Também houve outro tempo, ainda antes, que podia ter mudado a história do jogo: em 1986, Alex Ferguson esteve perto de treinar o… Arsenal.

Esta história tem mais de 200 jogos para contar e começa no século XIX, quando o United ainda era o Newton Heath, fundado por trabalhadores ferroviários, e o Arsenal se chamava Woolwich, nome da zona de Londres onde operários da indústria de munições criaram um clube. O empate a três golos em outubro de 1894, a contar para a então Second Division, marca o início de uma história para lá de centenária.

Na primeira metade do século XX os dois clubes cresceram, em fases diferentes, impulsionados por duas referências eternas nos bancos. O Arsenal do visionário Herbert Chapman tornou-se a grande potência do futebol inglês na década de 1930, cinco vezes campeão entre 1931 e 1938. Depois da II Grande Guerra, com Matt Busby no banco, era a vez de o Manchester United começar a construir a sua lenda.

O último jogo dos Busby Babes e a final dos cinco minutos

Desse tempo ficam jogos marcantes. Ao fim de três campeonatos a terminar em segundo lugar – um deles perdido para o Arsenal, em 1947/48 -, o United chegou em 1952 ao primeiro título de campeão em mais de quatro décadas, com uma vitória por 6-1 sobre o Arsenal na última jornada. Crescia a equipa a que chamariam Busby Babes, que venceu mais dois títulos em 1956 e 1957. O Arsenal foi o seu último adversário. A 1 de fevereiro de 1958, o United foi a Highbury vencer os Gunners por 5-4. Cinco dos jogadores que estiveram em campo morreram quatro dias mais tarde no desastre de Munique que vitimou 23 pessoas, entre eles oito jogadores do United.

Durante muitos anos esta não foi uma das maiores rivalidades do futebol britânico. Elas centravam-se mais em duelos alimentados pela proximidade, como os dérbis de Londres ou Liverpool, ou por diferenças sociais e históricas, como acontecia com Manchester United e Liverpool. Mas mesmo nessa altura teve os seus momentos.

Acima de todos a final da Taça de Inglaterra de 1979, uma das mais memoráveis de sempre. Chamaram-lhe «a final dos cinco minutos». Aos 86 minutos o Arsenal vencia por 2-0, quando o United foi buscar um último fôlego e marcou dois golos em dois minutos. Mas Alan Sunderland respondeu de imediato e fez o 3-2 final para o Arsenal.

Quando Ferguson esteve perto de treinar o Arsenal

Foi a partir de 1986 que esta história começou a mudar. E como podia ter sido diferente. Em maio desse ano, o Arsenal procurava treinador e incluiu na lista de favoritos um então jovem técnico escocês que se destacava no Aberdeen. Mas naquela primavera Alex Ferguson estava ocupado a levar a seleção da Escócia ao Mundial – tinha assumido o cargo depois da morte súbita de Jock Stein – e hesitou. «Eles queriam uma resposta rápida, mas eu não podia dá-la porque ia ao Mundial do México com a Escócia. Então as coisas com o Arsenal ficaram em águas de bacalhau», contou Ferguson em 2011.

David Dein, naquela altura vice-presidente do Arsenal, conta uma versão ligeiramente diferente, mas na essência confirma a história. Dein diz que os dois candidatos finais eram Alex Ferguson e George Graham e que ele até queria levar os dois, com Ferguson como número 1. Mas a direção do clube optou por Graham. «A combinação dos dois podia ser um bilhete de sonho, os dois escoceses que combinavam uma série de qualidades com o potencial de sermos ainda mais ambiciosos», escreveu Dein no livro que publicou no ano passado, numa citação do Daily Mail: «Eu conhecia o Alex e conhecia o presidente do Aberdeen. Sondei-o delicadamente para saber se o Alex estaria interessado. No fim, concordei com a decisão de nomear o George.»

Em novembro desse ano, Alex Ferguson assinou pelo Manchester United. E o resto é mesmo história.

Foi ainda com George Graham no banco do Arsenal que começou a crescer uma rivalidade intensa e bastante física entre os dois clubes. Logo em janeiro de 1987 uma vitória do United por 2-0, com muitas entradas duras em campo, redundou em confusão no final. Mas foi o duelo de outubro de 1990 que fixou um padrão. O Arsenal venceu com um golo de Limpar em que a bola passou a linha no limite, mas foi na segunda parte, numa disputa de bola, que as coisas aqueceram, com empurrões e uma briga que envolveu 21 dos jogadores em campo – só o guarda-redes David Seaman ficou de fora. A coisa acabou com os dois clubes a perderem pontos na secretaria.

Ferguson e Wenger, embirração épica

A chegada de Arséne Wenger em 1996 levou tudo a outra dimensão. O francês fez crescer o Arsenal e levou à então recente Premier League novas ideias e uma aura de conhecimento e distanciamento, vista por muitos, entre eles Alex Ferguson, como sobranceria. Por exemplo, nunca alinhou na tradição de se juntar ao treinador adversário para beber um copo de vinho no fim dos jogos. Tinha o condão de despertar os piores instintos de Ferguson.

O escocês não escondia o despeito quando ouvia elogios aos conhecimentos do rival. «Dizem que ele é inteligente? Fala cinco línguas? Tenho um miúdo de 15 anos da Costa do Marfim que fala cinco línguas», atirou um dia. Logo em 1997, quando Wenger criticou as alterações dos jogos motivadas pelo calendário do Manchester United, Ferguson atirou: «Ele é um caloiro e devia cingir-se a opiniões sobre o futebol japonês.»

A relação entre os dois treinadores, os últimos a levarem os dois clubes ao título da Premier League, deu origem a um documentário, «The Feud», que está disponível no Youtube

Claro que a embirração entre ambos e a crescente rivalidade estava intimamente ligada ao que acontecia em campo. Excluindo o título solitário do Blackburn Rovers em 1995, o United de Ferguson dominava a Premier League, com quatro troféus de campeão em cinco anos. Depois, o Arsenal começou a ameaçar esse domínio.

Em março de 1998, um golo de Overmars garantiu uma vitória do Arsenal em Old Trafford que seria decisiva para a conquista do título pelos «Gunners», que terminaram esse campeonato com um ponto de vantagem sobre o United. Pouco mais de um ano mais tarde, outro jogo para a lenda. A repetição da meia-final da Taça de Inglaterra de 1999 teve tudo: Roy Keane expulso, Schmeichel a defender um penálti e por fim um enorme golo a solo de Ryan Giggs no prolongamento, que deu a vitória ao United, por 3-2.

Em maio de 2002, foi em Old Trafford que o Arsenal festejou o título a uma jornada do fim, numa vitória decidida num golo de Wiltord e que impediu o tetracampeonato do United. No fim, Ferguson disparava sobre os rivais: «São arruaceiros que assentam na beligerância. Nós somos a melhor equipa.» Wenger respondia: «Toda a gente acha que tem a mulher mais bonita em casa.»

Na época seguinte, foi depois de uma derrota com o Arsenal para a Taça de Inglaterra que Alex Ferguson abriu o sobrolho a David Beckham, no meio de um ataque de fúria no balneário. Na sua biografia, Ferguson recordou assim o incidente, que selou a rutura entre o treinador e a estrela do United: «Ele estava a 3,5 metros de mim. Entre nós no chão estava uma fila de botas. O David praguejou. Dirigi-me a ele, e ao aproximar-me pontapeei uma bota. Acertou-lhe mesmo por cima do olho. Ele levantou-se para se atirar a mim e os outros jogadores impediram-no.»

Da batalha de Old Trafford à guerra da pizza

As coisas entre os dois clubes ainda azedaram mais. O duelo de setembro de 2003 tem direito a nome próprio. A Batalha de Old Trafford, já com um jovem Cristiano Ronaldo em campo, terminou 0-0, a fechar um jogo incendiado pela expulsão de Patrick Vieira, que para os «Gunners» foi provocada por Van Nistelrooy. A «vingança» chegou pouco depois, quando o neerlandês falhou um penálti já nos descontos. No final, vários jogadores do Arsenal rodearam Van Nistelrooy. Entre empurrões e ânimos muito quentes, tudo redundou num pedido de desculpas de Wenger, em várias suspensões e em multas recorde para o Arsenal e para uma série de jogadores. Mas no fim de contas aquele nulo, no jogo mais duro da época, embalou o Arsenal para algo ainda não igualado: terminar o campeonato invicto.

Os «Invencíveis» de 2003/04 mantiveram o estatuto pela época seguinte, até chegarem a Old Trafford em outubro de 2004. O Arsenal chegava na frente, com 11 pontos de vantagem sobre um United irregular nessa época, mas que puxou dos galões. Uma vitória por 2-0, selada com um golo de Wayne Rooney, representou a primeira derrota do Arsenal na Liga, ao fim de 49 jogos. Mais tarde, Rooney resumia assim a forma como o United encarou esse jogo: «O Arsenal andou toda a semana a dizer como seria fantástico chegar aos 50 jogos invicto em Old Trafford. Grande erro. Provocaram-nos. Nem pensar. Em nossa casa não.»

Mais uma vez, tudo terminou em confusão. Desta vez foi no túnel, e no meio dos gritos e empurrões Ferguson foi atingido por… uma fatia de pizza. Muito depois daquele dia, Fabregas confessou o «crime». «Ouvi barulho no túnel e pensei ‘O que é que se está a passar?’. Decidi ir ver o que se passava com uma fatia de pizza na mão. De repente, vi o Sol Campbell, Rio Ferdinand, Martin Keown a empurrarem-se mutuamente. Queria envolver-me na situação mas não sabia como. Então decidi atirar a pizza. Quando vi em quem tinha acertado… Bem, não era a minha intenção. Pedi desculpas a Sir Alex Ferguson», contou o espanhol.

O crescimento de outros clubes, à boleia do investimento estrangeiro, de Roman Abramovich e dos petrodólares, trouxe novos equilíbrios de forças à Premier League. O Arsenal foi perdendo terreno e a animosidade entre os dois clubes – e entre os dois treinadores - esbateu-se. Quando se defrontaram em 2008/09 na meia-final da Liga dos Campeões, com duas vitórias do United e um bis de Cristiano Ronaldo na segunda mão, as coisas já eram bem diferentes, e Ferguson até já dizia que respeitava Wenger, o trabalho que ele fez no Arsenal e o que acrescentou à Premier League.

Aqueles nove anos em que Arsenal e United discutiram entre os dois a hegemonia do futebol inglês - os Red Devils somaram seis títulos de campeão e os Gunners venceram três - foram marcantes e decisivos também na afirmação da Premier League. Quem o diz é o próprio Alex Ferguson. «Embora a Premier League tenha começado em 1993, essa rivalidade tornou-se o grande destaque da época», disse o escocês à revista do Manchester United em 2018, antes da última visita de Wenger a Old Trafford: «O jogo com Liverpool é indubitavelmente o maior para o United, por causa da história dos dois clubes. E agora há grandes clubes e uma competição fantástica na Premier League. Mas o United contra o Arsenal foi ótimo para o jogo. Fez a Premier League.»

Também Gary Neville, histórico do Manchester United, defendeu a mesma ideia por essa altura, num comentário na BBC em que lembrava igualmente como as novas ideias de Wenger intrigavam Ferguson. «Era provavelmente a maior rivalidade. Nunca me vou esquecer, quando voltávamos da seleção, o Sir Alex perguntava-nos o que é que os jogadores do Arsenal faziam, se era a nutrição, a dieta, os métodos de treino, o estilo», disse: «Sentíamo-nos como se fossemos para a guerra naqueles jogos e às vezes era mesmo, porque tínhamos muito respeito por eles.»

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