Como o Estado recebeu 300 imóveis por falta de herdeiros - e como o Estado às vezes tem de ficar com os imóveis mesmo que não os queira

3 abr 2022, 18:00
Interior de Portugal (Horacio Villalobos/Getty Images)

A explicação da lei, das suas consequências e de como todo o processo é demorado

O Estado português tornou-se dono de 300 imóveis na última década por não terem existido herdeiros que os reclamassem após a morte dos proprietários. Os números foram apurados pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, a pedido da CNN Portugal. Em causa estão 277 prédios e 23 frações que “no período de 2012 a 2021 reverteram para o Estado português por motivo de herança”.

Um dos anos decisivos para este balanço é o de 2015, representando 98 prédios e três frações. Desde então, o número tem vindo a cair – embora com uma ligeira inversão no ano passado. Em média, na última década, o Estado herdou 30 imóveis por ano.

Fonte: Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça

Os dados foram cedidos pelo Ministério da Justiça, todavia este organismo não concretizou o valor dos imóveis em causa. A única explicação que acompanha a resposta é a seguinte: “Estão em causa bens imóveis, prédios e frações de prédios que nos termos do artigo 939.º do Código de Processo Civil integram heranças declaradas vagas para o Estado porque ninguém apareceu a habilitar-se ou porque decaíram todos os que se apresentem como sucessores”.

A lei define que o Estado pode vender judicialmente os bens para cobrir dívidas que tenham sido deixadas no âmbito da mesma herança.

Estado não pode negar os imóveis

Os dados cedidos à CNN Portugal são relativos apenas a imóveis porque o Estado pode receber outro tipo de patrimónios sempre que exista uma herança sem herdeiros. “Se no momento em que alguém falece, se na sua herança existir um imóvel, um automóvel, uma conta bancária, um direito de crédito sobre outro, tudo isto integra a herança se não houver herdeiros legais nem testamento”, concretiza Marta Costa, sócia da Abreu Advogados, especialista em Direito Privado.

O Estado é a única pessoa que não pode repudiar uma herança, tendo de a aceitar, mesmo quando entende que não é benéfica. Mas, para chegar a este ponto, é preciso um longo caminho para garantir que não há nenhum potencial beneficiário a acabar prejudicado.

Se não existirem cônjuge, descendentes (filhos, netos) ou ascendentes (pais, avós), passa-se para outros familiares menos próximos. “Por norma, só há efeitos de sucessão até ao quarto grau da linha colateral de parentesco”, explica a especialista. Assim, um primo pode reclamar uma herança – se não houver ninguém mais direto na árvore genealógica.

“Sempre que haja um desses herdeiros, não é o Estado que vai herdar, a menos que todos estes repudiem”, aponta Marta Costa. Mas este cenário de repúdio coletivo, diz, é muito residual.

Um processo demorado

Mas mesmo quando todos os fatores se alinham para que seja o Estado a ficar com a herança, a entrada da herança na esfera pública pode arrastar-se. “Pode demorar muitos, muitos anos até o Estado se aperceber. Às vezes é possível que só se aperceba porque há dívidas dessa herança”, adianta Marta Costa. Depois, a própria lei dá um período de 10 anos, a contar do conhecimento da existência da herança, para que ela seja reclamada por potenciais herdeiros. Ou seja, mesmo que o Estado identifique este património, o processo poderá sempre voltar à estaca zero.

Veja-se então um caso concreto: Marta Costa teve uma cliente, familiar em quinto grau colateral, que quis perceber se tinha direito à herança – imóveis e contas bancárias – de alguém que tinha falecido. Ao aperceber-se que não tinha direito, não avançou com qualquer procedimento. “Esta herança estará abandonada”, explica a advogada. Isto porque devem ser os beneficiários a comunicar o óbito, primeiro à conservatória, depois às Finanças. Mas sem herdeiros que iniciem esse processo, a iniciativa teria de partir do próprio Estado.

A CNN Portugal contactou o Ministério da Justiça para perceber se existe um procedimento interno que permitisse a comunicação direta entre as conservatórias e as Finanças, de modo a perceber como identifica o Estado estas potenciais heranças a seu favor. Contudo, não foi dado nenhum esclarecimento até à publicação deste artigo.

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