Ex-ministro Aguiar-Branco impôs advogado para terminar negócio milionário na Defesa. A meio contratou-o para advogado pessoal

27 set, 23:47

Compra de dez helicópteros para o Exército foi um dos negócios mais ruinosos das Forças Armadas. Ao todo, Portugal gastou cerca de 120 milhões de euros e não recebeu nem uma hélice. Documentos a que o Exclusivo da TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal) teve acesso revelam que apoio jurídico externo escolhido pelo Ministério para cancelar negócio teve vários percalços

Nas muitas pastas e dossiers que compõem o processo arquivado no cofre do Ministério da Defesa sobre a compra abortada de dez helicópteros NH90 há uma que se destaca: uma pasta com um post-it que a identifica como o "caso da prof.ª Fernanda Paula".

Este é talvez um episódio caricato do apoio jurídico externo contratado entre 2012 e 2014 para ajudar a Direção-Geral de Armamento e Infraestruturas de Defesa a terminar com um negócio ruinoso para as Forças Armadas que se arrastava há demasiado tempo, numa altura em que o Estado, com falta de dinheiro, sofria com a intervenção da troika.

A meio de 2012 o então ministro da Defesa, Aguiar-Branco - hoje presidente da Assembleia da República - foi ao Parlamento e anunciou a saída do negócio e do consórcio europeu onde o país já tinha gasto cerca de 90 milhões de euros.

Agora, nas respostas por escrito enviadas ao Exclusivo da TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal), Aguiar-Branco recorda que "existiam dois fatores que justificavam a saída: o mais importante é que não existia cabimento orçamental para os encargos previstos em 2012, superiores a 50 milhões de euros. E não era expectável que o país tivesse condições para cumprir os pagamentos nos anos seguintes".

Por outro lado, o NH90 estava atrasadíssimo: "NH90 significa NATO Helicopter 1990. Estávamos em 2012 e ainda não havia helicóptero. O contrato, como muitos outros dossiers problemáticos, foi revisto e, neste caso, resolvido", refere Aguiar-Branco.

O resultado final foi "5-0"

Para sair do negócio, ao fim de mais de dois anos de negociações, Portugal pagou mais 37 milhões de indemnização e o ex-ministro sublinha que foi um excelente resultado pois a indústria pedia muito mais (200 milhões). "O país poupou 500 milhões de euros em encargos futuros num programa que levantava as maiores dúvidas", acrescenta, referindo-se a alguns países que entretanto receberam NH90 e já anunciaram a sua 'aposentação' devido a vários problemas.

Que se saiba, porém, nenhum gastou tanto dinheiro e no final não recebeu nada, além das despesas com pilotos, engenheiros e mecânicos que se arrastaram durante anos e anos.

Um antigo general do Exército, num artigo de análise publicado em 2014 na Revista Militar, fazia o resumo: "O resultado final de todo o processo de aquisição dos helicópteros NH90 é de 5-0. Despenderam-se verbas correspondentes à aquisição de cinco aeronaves e ficámos com zero".

Pagar ou pedir uma indemnização milionária?

As opiniões sobre o fim do negócio dos NH90 não são unânimes, apesar de todas as fontes contactadas pelo Exclusivo da TVI defenderem que o negócio tinha problemas de base e seria sempre ruinoso para Portugal - as despesas futuras seriam incomportáveis para o orçamento de um Exército como o português.

Porém, algumas dessas fontes que estavam na altura no Ministério da Defesa acreditam que a saída podia ter sido negociada de forma diferente, poupando dinheiro ao Estado, pelo menos na indemnização de 37 milhões, algo que o ex-ministro contesta.

Além das respostas de Aguiar-Branco por escrito, ninguém aceitou ser entrevistado sobre aquilo que presenciou e se discutiu entre o anúncio da saída do programa de compra dos helicópteros, em 2012, e o acordo final de 2014 que terminou com uma compra decidida, inicialmente, em 2001.

Para esclarecer dúvidas, a TVI pediu acesso a todos os documentos arquivados no Ministério da Defesa sobre o caso. Ao fim de um mês o pedido foi aprovado e durante as visitas foi possível ler inúmeros dossiers, mas várias pastas tinham a classificação de confidencial e não puderam ser abertas.  

Porém, um dos documentos sem classificação disponível para consulta faz contas completamente diferentes daquelas que foram o resultado final deste negócio: por causa dos muitos atrasos na fabricação do NH90, o documento defende que o país devia pedir à indústria uma indemnização de 735 milhões de euros.

"Portugal sai derrotado e sem helicópteros"

O documento não tem data, nem assinatura ou cabeçalho, mas é detalhado o suficiente, com inúmeros pormenores dos custos, contratos e leis aplicáveis, para se perceber que deu bastante trabalho a quem o fez.

A indemnização milionária a pedir teria origem não apenas nas despesas já feitas sem qualquer retorno, mas também no dano reputacional para Portugal devido aos muitos atrasos na construção dos helicópteros.

"As imagens do Exército e do Governo português ficam afetadas. Dez anos depois, Portugal sai derrotado e sem helicópteros, de mãos vazias do maior consórcio das indústrias europeias de aviação", pode ler-se no documento.  

Surpreendido, Aguiar-Branco responde agora que "o papel aceita tudo o que lá escrevermos" e que "um ex-ministro não consegue comentar uma opinião que desconhece, pela qual ninguém se quis ou quer responsabilizar", num "valor tão absurdo, que ninguém se lembrou de pedir nas diferentes negociações de recalendarização do programa (aceites pelo Estado português) anteriores a 2011".

O valor apurado a pedir de indemnização é difícil de compreender, de facto, para quem não conhece os detalhes do negócio e do acordo com os restantes países envolvidos na parceria da NATO, mas a TVI apurou que o documento foi feito pela Divisão de Projetos, Indústria e Investigação e Desenvolvimento da Direção-Geral de Armamento, apesar de segundo a resposta de Aguiar-Branco nunca lhe ter chegado às mãos.

Ex-ministro justifica contratação de advogado

A vasta documentação consultada pelo Exclusivo permitiu ainda perceber que o apoio jurídico externo imposto pelo então ministro da Defesa não foi pacífico na Direção-Geral de Armamento. 

Para assessorar esta direção-geral na saída dos NH90, Aguiar-Branco levou os serviços a contratarem Castanheira Neves, um experiente advogado de Coimbra, com 40 anos de profissão, mas que fontes na altura envolvidas no processo dizem à TVI que não era um especialista nesta área do Direito.

O ex-ministro responde e justifica a escolha, dizendo que "Castanheira Neves é autor de várias publicações e comunicações, tem um escritório com o seu nome e uma equipa de advogados e era, à data, membro do Conselho Superior do Ministério Público", tendo sido "contratado para prestar assessoria jurídica a uma negociação com várias valências".

"Acresce outra dificuldade que justifica a escolha", acrescenta Aguiar-Branco: "Do consórcio NH90 faziam parte países parceiros e aliados de Portugal dos quais também dependíamos financeiramente. Como Alemanha, França, Holanda ou Itália. Garantir a aprovação destes países exigia experiência, tato e tempo."

Faturas devolvidas por não existir contrato

A relação de Castanheira Neves com a Direção-Geral de Armamento foi tendo dificuldades. Os documentos consultados revelam que por duas vezes, em 2012 e 2014, houve faturas mensais apresentadas pelo seu escritório devolvidas por ainda não existir contrato assinado.

Em 2014, por exemplo, o apoio jurídico estava em curso desde janeiro, na continuação do trabalho dos anos anteriores, mas o contrato só seria assinado em novembro, com o adjunto do ministro a insistir por e-mail com os serviços, em maio, que deviam trabalhar com Castanheira Neves.

"Reforço que se torna absolutamente indispensável, à boa consideração do senhor ministro, a apreciação do dr. Castanheira Neves aos documentos apresentados", diz o adjunto, Gonçalo Sampaio, que acrescentava: "Por diversas vezes e em distintos momentos, solicitou este gabinete que fosse solicitado esse contributo".

Aguiar-Branco, nas respostas à TVI, reitera que, "tendo em conta a impopularidade da decisão nas chefias do Exército, o objetivo foi, assumidamente, trazer alguém com uma vasta experiência em negociações, mas que não tivesse ligações a instituições e ou empresas na área da defesa".

Advogado do Ministério e advogado pessoal do ministro

Por outro lado, quando o processo dos NH90 ainda estava a meio, a TVI apurou, após consulta ao processo que correu no DIAP de Lisboa, que em 2013 o ex-ministro escolheu para seu advogado pessoal o advogado que tinha imposto e continuava a insistir que trabalhasse com a Direção-Geral de Armamento. 

Em causa, nesse processo pessoal do então governante, estava uma queixa que Aguiar-Branco entregou por difamação contra Ana Gomes e que se arrastou durante vários anos.

O ex-ministro não encontra qualquer conflito de interesses entre os dois factos e responde que, "pelo contrário, foram, também, os extraordinários resultados conseguidos pelo dr. Castanheira Neves neste processo que o recomendaram para meu advogado pessoal".

"O caso da professora"

No apoio jurídico externo ao fim do negócio dos NH90, o "caso da prof.ª Fernanda Paula" - como surge identificado numa pasta arquivada no Ministério - é aquele que suscita mais dúvidas legais aos peritos em Direito Administrativo contactados.

Os documentos consultados revelam que no final de 2013 o gabinete do ministro, por sugestão do advogado Castanheira Neves, pediu um parecer a uma professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Fernanda Paula Oliveira. 

O objetivo era perceber se a indemnização a pagar por Portugal para abandonar o contrato dos NH90 podia ser convertida numa compra futura de outras aeronaves.

Em cerca de três ou quatro meses o parecer estava concluído, mas durante muitos meses a seguir a professora teve de insistir com o adjunto de Aguiar-Branco para que o parecer fosse pago - não tinha sido assinado qualquer contrato.

Uma solução ilegal?

Quando analisaram o caso, os serviços da Direção-Geral de Armamento chegaram à conclusão que não havia forma de pagar à professora pois já estava em curso um processo para fazer um contrato de apoio jurídico sobre os NH90, para o ano de 2014, com o advogado Castanheira Neves indicado pelo ministro.

"Os especialistas em contratação pública que contactei", indica uma jurista da direção-geral num e-mail, "são unânimes em referir que é jurídica e materialmente impossível celebrar dois ajustes diretos pela mesma entidade adjudicante com o mesmo objeto".

Depois de um outro parecer interno da direção-geral para encontrar uma solução, a opção foi incluir no futuro contrato de Castanheira Neves o valor a pagar à professora, numa opção que Paulo Veiga e Moura, especialista em Direito Administrativo, diz ser de duvidosa legalidade, apesar de outras fontes dizerem que é comum noutros contratos com escritórios de advogados, sendo que aqui, a grande diferença, é que o parecer tinha sido pedido pelo próprio Ministério junto da professora quase um ano antes.

Alguns especialistas na área dos contratos públicos contactados, que preferem manter o anonimato, têm dúvidas sobre a legalidade desta forma de pagamento, mas Veiga e Moura é mais contundente na análise: "Aquilo que se encontrou foi uma solução ilegal, a meu ver, para pagar aquilo que era devido à professora." 

O advogado defende que, na prática, foi encontrado uma espécie de "testa de ferro" para o Estado poder pagar o parecer, numa solução que permite, em tese, "que se contrate qualquer pessoa que não pode ser contratada", recordando que há uma série de impedimentos previstos no Código dos Contratos Públicos".

Parecer de 20 mil euros custou, afinal, 45 mil

A meio de novembro de 2014, com efeitos retroativos para todo esse ano, Castanheira Neves acabou por assinar um contrato com o Estado para fazer consultadoria neste ano ao processo dos NH90, no valor máximo de quase 80 mil euros, cuja execução e valor final dependeria das horas de facto trabalhadas. 

A seguir, a fatura entregue pelo escritório de Castanheira Neves à Direção-Geral de Armamento para justificar o pagamento do parecer da professora da Faculdade de Direito foi de 45 mil euros, bem acima do valor referido em cinco e-mails e documentos internos lidos pela TVI no Ministério da Defesa, pois durante meses a direção-geral esteve convencida que o parecer iria custar 20 mil euros. 

O portal da transparência dos contratos públicos revela, aliás, que todos os pareceres feitos por Fernanda Paula Oliveira para o Estado foram sempre muito mais baratos que 45 mil euros - o mais caro tinha sido, curiosamente, 20 mil euros -, mas a própria explica ao Exclusivo da TVI que "estava em causa uma questão muito complexa que mobilizou muitas horas/meses de trabalho, com a análise de documentação (quase toda em língua estrangeira) e muito técnica". 

"O parecer, embora assinado por mim, foi elaborado com a colaboração de uma colega", como está referido no documento, conta a professora que garante, igualmente, que não percebe de onde surgiu a ideia que este custaria 20 mil euros pois sempre terá indicado 45 mil .

Sobre este caso, Fernanda Paula Oliveira diz que recorda, dez anos mais tarde, acima de tudo, "uma situação que se tornou totalmente desagradável", em que fez o trabalho "que foi solicitado" e depois teve "de 'regatear' o respetivo pagamento".

"Nós temos verdadeiramente trabalho!"

Os e-mails consultados pela TVI no Ministério revelam igualmente o desconforto dos serviços jurídicos da Direção-Geral de Armamento com a contratação do referido parecer para estudar uma possibilidade para o fim do negócio dos NH90. 

Leia-se, nomeadamente, uma mensagem da principal jurista da direção-geral onde esta refere que a professora que fez o parecer "é especialista em Direito do Urbanismo e não em contratação pública".

Uma pesquisa na internet permite confirmar que a grande maioria dos contratos públicos da professora Fernanda Paula Oliveira se centram, de facto, na área do urbanismo. A própria responde ao Exclusivo agradecendo que "a considerem especialista em direito do urbanismo (área de que gosto particularmente)", mas sublinhando que é "professora da Faculdade de Direito desde 1990, tendo desde aí lecionado na área de direito público", avançando como exemplos as cadeiras de direito internacional público e direito administrativo.

Noutro e-mail interno do ministério, em comentário a um e-mail do adjunto do ministro Aguiar-Branco, a jurista da Direção-Geral de Armamento desabafa dizendo que "não me pronuncio sobre os contributos do dr. Castanheira Neves (ou sobre a valia do parecer da professora) ou a falta deles, sobre os quais o dr. Gonçalo Sampaio [adjunto do ministro] tanto fala".

"Lamento o transtorno que nos estão a causar, pois modéstia a parte, em termos muito simples, nós temos verdadeiramente trabalho!", concluía Fátima Diogo, que quando saiu do serviço, ainda em 2014, teve direito a um louvor do diretor-geral de armamento, escrito em Diário da República, pelo seu trabalho, inclusive no processo de saída do programa NH90.

Advogado de Aguiar-Branco no Conselho Superior da Magistratura

O antigo adjunto de Aguiar-Branco, Gonçalo Sampaio, que fez os contactos com a Direção-Geral de Armamento por causa de Castanheira Neves e do pagamento à professora de Direito da Universidade de Coimbra, surgiu na imprensa há poucos meses: o Diário de Notícias contava que enquanto administrador de uma empresa municipal de Lisboa assinou um contrato com o escritório de advogados fundado por Aguiar-Branco. Gonçalo Sampaio é agora chefe de gabinete do ministro da economia, Pedro Reis.

Castanheira Neves, o advogado indicado pelo ex-ministro para tratar da saída dos NH90 entre 2012 e 2014, foi este ano escolhido para vogal do Conselho Superior de Magistratura, o órgão de fiscalização dos juízes, indicado pelo PSD como cabeça da lista votada na Assembleia da República.  

Apesar da insistência, o gabinete do atual ministro da Defesa, Nuno Melo, está há dois meses para responder quanto recebeu ao todo Castanheira Neves em contratos por causa dos NH90. O portal da transparência não tem todos os contratos públicos a envolver este advogado e o processo dos helicópteros, sendo também preciso ter acesso ao total das facturas com o trabalho efetivamente realizado - o valor pago depende das horas de serviço dedicadas ao processo.

Castanheira Neves, ao telefone, recusou fazer qualquer comentário ou busca no seu escritório para obter mais detalhes, dizendo que já passaram dez anos e está, como sempre, de consciência tranquila.

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