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O pacote da Habitação é radical? É. Radicalmente contra o governo

19 fev 2023, 09:38
Casas, habitação, bairro típico, Lisboa. Foto: Tim Graham/Getty Images

Sobre o pacote de medidas para a Habitação há uma dúvida, uma pergunta e uma discussão que servem de bom começo de conversa. A dúvida: quantas medidas do pacote passarão a políticas e políticas a lei? Metade? A pergunta: quantas casas acrescenta a proposta do Governo a um mercado que carece brutalmente de oferta, além do previsto no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para habitação social? De forma garantida, nenhuma. E a discussão: será este realmente um pacote “de esquerda”? Por mais duelos ideológicos que os últimos dias tenham proporcionado, a minha opinião é que não.

Um governo de esquerda diante de uma crise na Habitação não prescindiria de investimento público – de construir, de por as mãos na massa, de criar estrutura – e o plano deste Governo não apresenta uma ideia nesse sentido. A construção, como veremos mais adiante neste texto, ficará na mão dos privados. E não há nada de esquerda nisso.

Mas mais do que ser de esquerda ou de direita, ou do que reproduzirmos automaticamente a roupagem política do Governo sem examinarmos ao perto as suas políticas, há uma consequência incontornável do pacote de medidas apresentado na passada quinta-feira: a descaracterização completa dos pilares da governação de António Costa.

Ir além do óbvio

Compreensivelmente, o arrendamento compulsivo e as dúvidas legais que suscita monopolizaram as reações ao pacote, mas o ataque à propriedade privada mais parece uma cortina de fumo para desviar atenções das restantes medidas do que uma intenção genuína do Governo.

O PS pode vestir a capa do neogonçalvismo, como lhe chamava com graça um senador amigo, que a sua política de habitação é bem mais ecuménica do que gostaria de admitir.

Se analisarmos medida a medida, além da incógnita sobre a sua concretização, o pacote não é apenas uma soma de medida avulsas que Marina Gonçalves encontrou numa gaveta ou numa conversa de WhatsApp. Medida a medida, encontramos um Estado que não reconhece limites a si próprio – é verdade –, mas também um Estado verdadeiramente descuidado nos limites que impõe ou não impõe aos demais.

A descida da taxa liberatória de IRS para todos, de 28% para 25%, premeia indiscriminadamente senhorios que possam ter especulado e subido rendas antes dos limites de resposta à inflação. E o tecto de 5% para novos contratos independentemente do seu valor anterior terá como consequência a degradação dos imóveis a arrendar, na medida em que nenhum proprietário tem interesse em remodelar um apartamento quando não poderá cobrar uma renda que recupere esse investimento.

Olhar de forma simplista, seja para alívios fiscais, seja para fixação de preços, acaba a prejudicar quem não deve e a beneficiar quem não devia.

Mas não só.

Um Governo contra si próprio

Acostumados como estamos a bater palmas a erros de palmatória, nada disto teria relevância caso a restante ação do Governo – além paixões habitacionais – seguisse o seu caminho. Ora, não será assim. À semelhança do sucedido com o pacote de medidas contra a inflação, as medidas para a Habitação têm um potencial ricochete perigoso para o PS.

António Costa, dono de uma intuição política invejável, identificou a Habitação como pasta para a sua reconciliação com o seu eleitorado. As medidas que apresentou, no entanto, divorciam-no do seu Governo.

Se olharmos a fundo, as propostas do Governo abdicam de pilares estruturantes da governação do Partido Socialista. Coesão Territorial. Alterações Climáticas. Descentralização. Modernização Administrativa. Transparência. Cinco bandeiras que até foram ministérios ao longo do costismo são surpreendentemente descartadas pelo próprio.

O agravamento fiscal do Alojamento Local (AL) em todo o território – e não só para as cidades – magoa o contributo que o AL vem dando para dinamizar a economia do interior, fixar populações e combater a desertificação. O turismo rural, intimamente ligado ao modelo do alojamento local, é a última esperança para dezenas de aldeias que não têm mais do que isso para atrair e manter gente. Com este pacote, vêem a sua vida piorar. E a Coesão Territorial menos coesa.

Mas há mais.

A liberalização do licenciamento para construção não poderia ser uma contradição maior da parte do Governo. A ideia de conceder autorizações para construir com base em “termos de responsabilidade dos projetistas” corresponde ao sonho de qualquer empreiteiro, sendo os efeitos lamentavelmente previsíveis.

Teremos projetistas irresponsáveis, teremos investidores que não se importarão de pagar multas e teremos gente decente, bem-intencionada e competente, que esperará anos para obter plantas e planos municipais que garantiriam a projeção responsável da sua obra.

Nenhum dos três ajudará a resolver a crise da Habitação em Portugal. Pelo contrário, será a transparência, a gestão camarária democraticamente eleita e a paisagem nacional que sairão sacrificadas em nome de uma política que pode nem resultar.

Se a isto acrescentarmos os riscos ambientais de emitir licenças de construção sem as devidas diligências, facilmente se adivinham os atentados ao património natural que serão cometidos a reboque do pacote apresentado na quinta-feira.

Que seja o partido com mais autarquias – e mais discursos ambientalistas – a fazê-lo é algo surpreendente. Que se entregue o urbanismo do país às construtoras num inverno de inundações agravadas por falta de planeamento é, no mínimo, chocante.

O que tem isto “de esquerda” ou de remotamente fiel ao programa do Governo?

Nada.

Mas a quem nunca teve uma visão para o país não se pode exigir uma visão de si próprio.

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