Pouco dinheiro, muito tempo para construir, dúvidas em relação às casas devolutas. Como os especialistas veem o plano do Governo para a habitação

17 fev 2023, 18:14
Habitação (Manuel de Almeida/Lusa)

Especialistas abordam as medidas apresentadas ontem por António Costa e quais os efeitos que poderão vir a ter (ou não)

Foi apresentada como uma das grandes reformas do Governo de António Costa, mas há ainda muitos vazios por preencher no pacote que quer revolucionar a habitação em Portugal, respondendo a um problema crescente que se agudizou com a inflação. Os especialistas ouvidos pela CNN Portugal reconhecem que há várias medidas que, na teoria, são úteis para resolver o problema, mas criticam a ausência de mais informação e questionam a aplicabilidade de muitos dos pontos apresentados.

Dinheiro pode não chegar para as medidas

É um pacote com cinco eixos de atuação, no qual o Estado prevê gastar 900 milhões de euros. Um cálculo que não foi explicado, até porque não se sabe quantos imóveis pretende arrendar o Estado ou quantas construções estão previstas. Sabe-se, para já, que esses arrendamentos serão feitos ao preço de mercado.

João Pereira dos Santos afirma que os 900 milhões de euros anunciados são "muito pouco para pagar casas a preço de mercado", admitindo que há uma dificuldade na parte da construção. "O Estado pode construir, mas demora muito tempo, e tem de ter medidas imediatas. Percebo as restrições, mas parece pouco dinheiro para a dimensão do problema", diz.

Para isso é preciso perceber ao certo quais as intenções do Estado: quantas casas pensa ou quer arrendar para subarrendar e quantas pensa conseguir comprar nos próximos dois ou três anos.

Outro problema, que é paralelo, é o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que aloca mais de 2.700 milhões de euros para investimento na habitação, num valor que ficou acordado bem antes da subida da inflação ou do galopar dos preços dos materiais de construção. João Pereira dos Santos destaca que isso pode ter um efeito nocivo, uma vez que o mesmo valor acordado anteriormente, e que serviria para construir 26 mil casas até 2026, pode não servir para construir as mesmas 26 mil casas agora.

"É possível que o PRR possa ser negociado, agora é difícil e importante termos uma noção transparente e atualizada dos números. Não basta saber quanto foi executado, mas quanto em cada projeto e quais os objetivos e metas a atingir", refere, alertando que, caso não sejam realocados mais fundos, é inevitável que o dinheiro não chegue para as tais 26 mil casas. A alternativa, avisa, também não é boa: "Se não forem reafetados [fundos] não chegamos lá, ou então os materiais são piores".

Vera Gouveia Barros diz à CNN Portugal que esta era uma situação que devia ter sido acautelada, até porque os contratos de execução pública demoram muito tempo a concretizar. A investigadora na área da habitação lembra que os custos já aumentavam antes da inflação, não apenas com os materiais, mas também com a mão-de-obra. Este é um problema que para a especialista "vai ser um empecilho" na execução do programa.

"Não só porque o custo médio de cada casa aumenta, e matematicamente percebemos que não dá para construir tanto com o mesmo dinheiro, como pode ter impacto no atraso e ajustamento das condições", sublinha.

Neste ponto, refira-se, o Banco Europeu de Investimento já admitiu que pode vir a libertar novos fundos para a concretização de projetos que tenham sido afetados pela inflação.

Casas devolutas, quem as tem?

O Governo diz que são 700 mil, o Instituto Nacional de Estatística (INE) não refere ao certo, enquanto em 2021 foram cobrados impostos a apenas 4.100 casas devolutas, um dos grandes objetos do pacote.

A ausência de números concretos é uma das grandes críticas de João Pereira dos Santos, que queria ter uma “noção atualizada” dos projetos existentes em Portugal.

“Sabemos muito pouco sobre estas casas vagas, se estão devolutas, se estão em partilhas judiciais”, atira, referindo-se às 700 mil habitações apontadas por António Costa, dentro das quais cabem as casas devolutas, sendo que nem todas estarão elegíveis para o programa do Governo, que passa por reabilitar estas casas e colocá-las em regime de arrendamento acessível, pagando ao senhorio um preço do mercado, ao qual será descontado o valor das obras, para depois subarrendar a habitação.

No fundo, faltam detalhes. João Pereira dos Santos, um dos autores do estudo “O Mercado Imobiliário em Portugal”, afirma que o próprio Governo “ainda não sabe todos os detalhes” desta medida, faltando o levantamento do número de edifícios concretos ou de quais os sítios que serão reabilitados para residências.

O problema começa por perceber exatamente o que é uma casa devoluta, diz Vera Gouveia Barros, que quer saber quais as caraterísticas destes diferentes edifícios, até porque "as pessoas não querem todas o mesmo tipo de casas".

"É preciso conhecermos estas casas, quem precisa de casa e porque é que necessita", aponta, dando um exemplo: imaginemos que muitos destes fogos são andares sem elevadores, e que a população que precisa de casa são jovens com um bebé e carrinho, para quem o elevador é muito importante. "Não faz sentido, estamos a jogar no escuro. O problema é que muitas vezes definimos medidas sem ter feito o devido estudo sobre o problema", vinca.

Noutro ponto, refere a investigadora, alguns destes imóveis estão de tal forma debilitados que a reabilitação custa muito dinheiro. Caso como edifícios de interesse público e cuja manutenção é dispendiosa. "Se calhar esse dinheiro seria mais bem aplicado noutras alternativas", acrescenta, pedindo uma alternativa para a aplicação desse dinheiro público.

Alojamento local: entre a eficácia e o efeito negativo

O Governo vai também dar benefícios a quem passe as suas casas de um regime de Alojamento Local para arrendamento acessível, ao mesmo tempo que vai congelar novas licenças de Alojamento Local.

Um mecanismo que João Pereira dos Santos entende poder ter alguma utilidade, mas que seria mais aproveitado caso fosse colocada em prática uma medida semelhante à que se pratica nos Estados Unidos, onde um proprietário de uma casa onde mora tem licença para arrendar a habitação como Alojamento Local nos períodos que está de férias. Na prática isso faria com que milhares de casas ficassem disponíveis durante certos períodos, nomeadamente no verão, quando a procura turística aumenta.

“Quando se retira a opção de colocarem uma casa em Alojamento Local nos bairros mais afetados os preços descem”, afirma o também coautor de um estudo sobre as primeiras medidas direcionadas ao Alojamento Local, nomeadamente a possibilidade de os municípios criarem zonas de contenção, o que em Lisboa chegou a motivar quedas de 20% nos preços das casas em bairros como Alfama ou a Mouraria.

Esta nova medida que também suspende novas licenças de Alojamento Local consiste, para o investigador, num “congelamento cego” que pode não trazer grandes mais valias no futuro próximo, até porque há a possibilidade de consequências junto da Economia.

Neste ponto, diz João Pereira dos Santos, há uma dualidade no setor: “Estamos bem com um hotel que ocupa um prédio inteiro, mas contra um Alojamento Local que é parte de um apartamento”.

Para Vera Gouveia Barros não há dúvidas: esta proposta tem um efeito negativo no turismo que é inevitável, até porque há segmentos que procuram o Alojamento Local porque gostam, não concorrendo com a restante hotelaria. "Algumas dessas pessoas são da procura dita sofisticada, que gasta mais dinheiro", acrescenta.

Por outro lado, diz a investigadora, esta pode ser uma medida injusta para alguns dos investidores deste setor que foram obrigados pela lei a alterarem os seus projetos, nomeadamente pela realização de obras para que os mesmos ficassem de acordo com exigido.

Vera Gouveia Barros afirma mesmo que não será por esta medida que se fica mais próximo de resolver o Alojamento Local, deixando uma tirada irónica sobre a consequência nos preços da habitação: "Se conseguirmos dar cabo de uma parte importante do turismo e com isso reduzirmos os crescimento económico, aí somos capazes de baixar os preços da habitação, porque a literatura económica mostra que uma das determinantes dos preços da habitação é o rendimento. Se formos todos um bocadinho mais pobres... isto é um bocado perverso".

Apoios no crédito à habitação sem efeito?

Os bancos vão passar a ter de apresentar aos clientes a modalidade de taxa fixa para a concessão do crédito à habitação. É uma das medidas que se segue à obrigatoriedade de renegociação da dívida das famílias cuja taxa de esforço tenha ultrapassado os 35%, e que tinha sido aprovada há uns meses.

João Pereira dos Santos vê a questão de um ponto diferente: os bancos já iam apresentar taxas fixas, até porque existe no mercado um risco para ambos, banco e consumidor. “Há um risco dos dois lados, o banco também não quer que o cliente entre em incumprimento”, afirma, assinalando que espera uma queda inevitável no preço da habitação como consequência dos aumentos das taxas de juro.

“Se por si só o aumento das taxas de juro não baixar os preços das casas, então não sei o que fará [baixar]”, acrescenta.

Vera Gouveia Barros vê a questão de uma outra forma, lembrando que alguns bancos já ofereciam taxa fixa, e que mesmo assim havia pessoas a não optarem por essa modalidade. Defende a investigadora que um dos problemas é a literacia financeira, uma vez que as pessoas não percebem a vantagem que pode existir na contratação de uma taxa fixa.

"Se tivermos literacia financeira resolve logo tudo, mas é difícil ter um programa suficientemente abrangente", explica, pedindo que os agentes económicos que intervêm nas decisões de imobiliário também tenham responsabilidade no aconselhamento dos consumidores.

Em paralelo, refere Vera Gouveia Barros, a medida que prevê apoio a quem tem crédito à habitação, e que prevê o pagamento de metade da diferença da taxa de juro para a taxa de stress máximo acordada, poderia ter sido mais ambiciosa. Esta medida visa apenas famílias até ao sexto escalão de IRS que tenham contraído empréstimos até 200 mil euros, deixando fora grande parte das pessoas.

"É uma medida teoricamente boa e que na prática vai servir de alívio para algumas famílias, mas não muitas", termina.

Medidas fiscais positivas

Isenção de IRS para quem transfira casas de Alojamento Local para arrendamento acessível ou isenção de mais-valias na venda de imóveis ao Estado são medidas que fazem parte de um pacote "ambicioso". É assim que João Pereira dos Santos classifica a proposta apresentada pelo Governo em termos fiscais, apelidando de "inteligente" a ideia de isentar de mais-valias as vendas ao Estado.

Mas também neste ponto há uma dúvida que o investigador gostaria de ver respondida: quantos municípios já compram imóveis a privados e a que preços? É que o direito de preferência de municípios sobre privados é uma medida em vigor, dando a possibilidade às autarquias de comprarem casas ao preço de privados, desde que igualando a oferta.

"É preciso saber quantas casas quer o Estado comprar, quais as tipologias e zonas de destino", afirma João Pereira dos Santos.

Já Vera Gouveia Barros espera que as medidas fiscais possam ser melhoradas na fase de consulta pública, que decorre até 16 de março, entendendo que, como está, a fiscalidade está "aquém" do que poderia ser.

Fim dos vistos gold sem perceber as consequências

Já era anunciado, mas o Governo confirmou: os vistos gold vão mesmo acabar, finalizando um regime que garantia cidadania portuguesa a quem comprasse imóveis num valor de pelo menos 500 mil euros. Uma medida que tem um grande impacto no segmento de luxo, mas que João Pereira dos Santos acredita poder ter um efeito, mesmo que pequeno, na construção.

“Houve um efeito de sinalizar um preço e aumentar a saliência, criando expectativas às pessoas que têm casas novas de que vale a pena construir para esse segmento”, refere.

Neste ponto, o professor universitário defende que poderá estar em causa a tomada de uma medida sem ter conhecimento do real impacto, referindo que não foram divulgados os efeitos da anterior restrição de vistos gold, que deixou fora da elegibilidade da medida grande parte do litoral. “Vamos tomar uma medida sem perceber o que aconteceu”, atira.

Vera Gouveia Barros fala numa "fatia pequena que não vai ter grande impacto", explicando que percebe mais a "lógica do princípio" do que propriamente o efeito que isso poderá ter no mercado, seja de arrendamento, seja de compra de casa.

Esperar para ver

No fundo, afirma João Pereira dos Santos, é preciso mais informação para se perceber quais são os objetivos definidos. Quantas casas quer o Estado, a que tipologia e quanto vai pagar aos senhorios.

"É positivo começarmos a discutir. Estávamos a discutir os problemas das soluções, agora estamos a discutir os problemas das soluções, com propostas mais concretas", conclui.

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