Fiscalistas falam em chantagem e associações pedem uma ASAE para as rendas, apontando o dedo aos sucessivos governos por inação
Maria (nome fictício) vive há dois anos na mesma casa arrendada, na área metropolitana do Porto. Nestes dois anos, a renda já foi aumentada duas vezes, 6% no final do primeiro ano e 2% agora, ambos definidos pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), como lhe disse o proprietário. Mas nada de contrato ou recibo de arrendamento. Sozinha, com dois filhos e desempregada, decidiu pedir a regularização do arrendamento para que tivesse um contrato legal com recibos. E a resposta deixou-a surpreendida: teria de pagar mais 25% para lá do valor da renda. “Contas feitas”, diz-nos, uma renda que começou em “pouco mais de 640 euros mensais” iria, ao fim de dois anos e com esta imposição, “passar os 800 euros”, isto sem contar com o condomínio, que também é Maria quem paga e que é de cerca de 50 euros mensais.
Pagar mais de 800 euros “está completamente fora do meu alcance”, lamenta, dizendo que mesmo que quisesse, não teria capacidade de “arriscar” pagar este valor para recorrer a uma ajuda estatal por ser família monoparental. “Mais de metade do meu subsídio de desemprego é para a renda”, desabafa, apressando-se a dizer que os encargos não se ficam por aí: os dois filhos estão em idade escolar, há ainda as despesas básicas de água, luz, gás e telecomunicações e ainda a alimentação.
“Vou-lhe ser honesta, dava-me muito jeito um contrato, mas eu não encontro no mercado um T2 por menos de 850 euros. Ainda assim, não perco a esperança de encontrar algum senhorio que queira fazer algum arrendamento acessível, mas tenho de ir vendo e pesquisando no mercado”, adianta, ainda incerta se irá ou não ceder para ver a sua situação regularizada.
E foi isso o que Júlia fez até encontrar a sua atual casa. Mas o processo esteve longe de ser tranquilo. Depois de encontrar um T1 na zona metropolitana de Lisboa contactou o proprietário e este disse-lhe que para ter um contrato de arrendamento e os respetivos recibos, teria de pagar mais 28%, valor do imposto sob arrendamento que o senhorio disse que teria de declarar ao Fisco, o que iria implicar um aumento de mais de 290 euros ao final do mês. Júlia teve de declinar, pois o encargo seria acima das suas possibilidades e sem que as despesas de água, luz, gás e internet estivessem incluídas. Ainda assim, conseguiu chegar a acordo com o proprietário da casa para um valor de renda mais adequado às suas possibilidades, mas sem contrato.
Estes não são casos únicos. Nas redes sociais e fóruns há mais relatos semelhantes a denunciar que há senhorios que só passam recibo se o inquilino pagar o respetivo imposto sobre o rendimento resultante da renda, que, com base na lei em vigor, pode ir dos 5% aos 25% dependendo da duração do contrato e isto numa altura em que as rendas, por si só, estão a ficar mais caras.
Os especialistas com quem a CNN Portugal falou mostram-se incrédulos com estes episódios de “chantagem”, dizendo que são o espelho, sobretudo, de um mercado “não regulado” e onde reinam os “contratos clandestinos”, deixando os inquilinos vulneráveis.
Luís Mendes, membro da direção da Associação de Inquilinos Lisbonenses, ainda não recebeu qualquer denúncia, mas não estranha esta nova “realidade”, sobretudo quando “há ausência total na regulação do setor, mais de 60% do arrendamento não está enquadrado fiscalmente, é normal que aconteçam essas situações”. A falta de regularização é também prontamente denunciada por Daniel Borges, da Associação pelo Direito à Habitação Chão das Lutas. “O número dos contratos clandestinos tem aumentado, o que dificulta o acesso a apoios. Vivemos num país em que qualquer senhorio faz um arrendamento e contrato informal e o Estado não tem forma de fiscalizar isso. É preciso mais fiscalização”, vinca.
Do lado fiscal, situações destas podem incorrer em várias ilegalidades e até ilícitos criminais”, como explica Serena Cabrita Neto, fiscalista, coordenadora do departamento fiscal do Cuatrecasas, acrescentando que esta situação é “censurável na ordem jurídica”.
Embora acredite que haja rendas cujo valor da tributação do imposto já está implícito sem que os inquilinos saibam, lamenta o tom de “chantagem” que por vezes é usado para que o arrendamento seja regularizado e legalizado, algo que, diz, protege não apenas o inquilino, como também o senhorio, além de que o valor do imposto pode ser menor se for celebrado um contrato de arrendamento de longa duração, como impõe o novo regime. A título de exemplo, o novo enquadramento fiscal diz que um contrato com duração de cinco a 10 anos tem implícito um imposto de 15%, ao passo que um contrato de duração superior a 20 anos resulta num imposto de 5%.
“Neste momento, os proprietários têm o poder todo do lado deles”, começa por dizer Rita Silva, da plataforma Casa para Viver, que está a organizar uma manifestação para 28 de setembro. “Inquilinos não têm nenhum mecanismo para se defender”, diz, adiantando que não são “não há fiscalização” como “não há um sítio para o inquilino se queixar desse abuso”. “O senhorio diz que tem de pagar o imposto e vai onde? Não há nada que possa fazer”, adverte.
A ativista diz que “não há nada que trave o abuso dos senhorios” e que “este é o problema”, pois “as pessoas sujeitam-se porque não têm mais nada”. “Isto é um problema dos governos. Esta questão também não é nova”, frisa, dizendo que é necessária uma “reflexão mais de fundo” sobre toda a questão da habitação em Portugal. Embora não coloque “os proprietários todos no mesmo saco”, Rita Silva denuncia a tendência para “rendas especulativas e abusivas”. “Temos de questionar qual o contributo dos proprietários, que não seja empobrecer a população trabalhadora. São rentistas que estão a tirar grande parte do rendimento das pessoas que trabalham para pagar rendas” e que, diz, muitas vezes, são “convidadas” a fazer as obras de manutenção da casa.
Luís Menezes Leitão, presidente da Associação Lisbonense de Proprietários, não crê que esta seja uma realidade, nem depois de lhe relatarmos os casos acima mencionados. Ainda assim, apressa-se a dizer que é “completamente ilegal” um senhorio impor o pagamento do imposto ao inquilino e lamenta que ainda haja proprietários que não legalizaram os arrendamentos que fazem, algo que garante que só os prejudica, pois “sem contrato, o inquilino não tem prazo para sair”. Também António Frias Marques, porta-voz e presidente da direção da Associação Nacional de Proprietários, lamenta o sucedido e recomenda "ao candidato a inquilino que confirme com quem está a tratar", evitando assim cenários de chantagem ou até burla.
AT sem “plano” para travar arrendamento clandestino
Uma auditoria realizada pela Inspeção Geral das Finanças em 2023, divulgada este verão, revela que o Fisco tem dificuldades em controlar os arrendamentos no mercado paralelo, não dispondo “de um plano abrangente para o controlo do arrendamento não declarado” que englobe, por exemplo, a “informação constante de denúncias nesta matéria” ou a que consta em contratos de água, luz, gás e telecomunicações, embora este tipo de informação seja enviado todos os anos para o Fisco pelas entidades que os fornecem.
Sobre este ponto, os fiscalistas com quem a CNN Portugal conversou defendem que a AT tem mecanismos, até informáticos, que permitem controlar melhor o mercado do arrendamento, mas admitem que é possível que haja escassez de recursos para levar avante o controlo desejado, algo que o próprio Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos já veio denunciar, ao dizer que os profissionais do setor têm dificuldade em controlar rendas não declaradas por falta de recursos e devido a mecanismos e regras que dificultam a atividade.
“A Autoridade Tributária tem mecanismos, há acesso às contas bancárias, declarações. Os sistemas informáticos estão disponíveis. Agora a nível de gestão e a inspeção… acho que a administração fiscal tem uma data de gente, se é bem gerido ou não, não sei”, atira o fiscalista Tiago Caiado Guerreiro, especialista em Direito Fiscal. Também a fiscalista Serena Cabrita Neto diz que se poderia melhorar a fiscalização, embora se apresse a dizer que é impossível analisar todos os casos. “Imagine o que é ter um fiscal em cada imóvel, parece simples, mas não é”, diz-nos, defendendo, porém, que já há mecanismos que podem e devem ser mais bem aproveitados, como o facto de a AT, “se quiser”, conseguir ter facilitado o “acesso às contas bancárias em sede inspetiva, em sede de averiguação inspetiva”, pois, “hoje o sigilo bancário já não existe como há décadas”.
Associações pedem a criação da ‘ASAE das rendas’
Luís Mendes, da Associação de Inquilinos Lisbonenses, culpa a “falta de controlo da Autoridade Tributária” e a “atividade lasciva dos governos” não só pela falta de arrendamentos legalizados com contrato, mas por eventuais casos de chantagem para que sejam celebrados, quando, lembra, há ainda senhorios que pedem “cinco, seis rendas de caução”, tornando a entrada numa casa proibitiva para a generalidade das pessoas. “Estas situações de ilegalidade e informalidade acontecem por ausência de regulação do setor”, vinca.
Também Daniel Borges, do Chão das Lutas, fala de “uma vontade política de não haver essa fiscalização”, defendendo que há “outros setores” onde a fiscalização é bem feita, dando o exemplo da ASAE, “que faz uma fiscalização competente”. “Não deveria ser a AT, mas outro organismo [a fiscalizar as rendas]. Deveria haver uma espécie de ACT [Autoridade para as Condições do Trabalho] e ASAE para a fiscalização na habitação”, sobretudo focada nos arrendamentos em contrato aos olhos das Finanças, sugere. A falta de contratos de arrendamento tem já vindo a ser denunciada, sobretudo pelos mais jovens, que se vêm impedidos de aceder a apoios e programas estatais por não terem um comprovativo legal de que estão a arrendar um quarto ou uma casa, como noticiou o Público.
Face a isto e perante aquilo que dizem ser uma inação por parte da AT, a ideia de se criar uma ASAE das rendas é vista com bons olhos pelas associações de defesa à habitação e inquilinos. Luís Mendes diz mesmo que o seu organismo defende “medidas estruturais para aumentar a eficácia da regulação sobre o mercado do arrendamento para que seja mais estável, credível e transparente”, sendo a “criação de uma entidade reguladora independente, mas pública”, uma delas, cabendo-lhe “regular toda a atividade do setor, estamos a falar de uma atividade económica que é das poucas que não é regulada”.
A Associação de Inquilinos Lisbonenses diz ainda que faz falta uma plataforma online “permita efetivamente” conhecer “toda a oferta e toda a procura disponível a nível nacional”, um site “com registo obrigatório, como acontece com o Alojamento Local, para se ter conhecimento” de informações úteis de cariz fiscal e legal, como quem é o senhorio, qual a tipologia da casa, a localização, as condições de habitabilidade, o tipo de contrato, entre outros aspetos. “Isto até poderia combater o subarrendamento”, assegura.
Tiago Caiado Guerreiro sugere também que se olhe para o que tem vindo a ser feito lá fora, dando o exemplo dos Países Baixos e do Mónaco, que têm “uma política de habitação” onde “o Estado tem de ter centenas de milhares de casas com rendas controladas, em que as pessoas pagam uma renda razoável” e, se decidirem comprar uma casa, ficam sem acesso a esta, dando lugar a outras pessoas. “O Estado tem de construir casas, mas não para vender aos amigos. Temos de fazer isto, há sempre pessoas que não vão conseguir acesso às casas, temos de apoiar isto”, vinca.