Vuhledar: a "luta heróica" de Putin e uma das mais violentas derrotas da Rússia

23 nov, 22:00
Vuhledar (Photo by Libkos/Getty Images)

MIL DIAS DE GUERRA || Um autêntico cemitério de tanques no deserto. É isso que se pode chamar a uma cidade de apenas 14 mil pessoas onde poucos homens resistiram 31 meses ao invasor

Era só uma pequena cidade mineira perdida entre as vastas planícies do Donbass, difícil de distinguir a olho nu de tantas outras. Uma cidade soviética criada de raiz na década de 60 para apoiar uma gigantesca mina de carvão que prometia trazer a prosperidade para toda a região. Ninguém podia adivinhar o que o destino tinha guardado para Vuhledar. Mas, durante 31 meses, esta localidade foi palco de uma das mais longas e violentas batalhas da invasão russa à Ucrânia.

A guerra chegou a Vuhledar no primeiro mês de 2023. O inverno do primeiro ano de guerra tinha afundado a linha da frente num impasse, com os dois exércitos a sofrerem perdas pesadas. A Rússia, que tinha acabado de perder a cidade de Kherson e uma grande quantidade de território na região de Kharkiv, precisava de uma vitória urgente para mudar o rumo da guerra. Valerii Zaluzhnyi, o então chefe de Estado-Maior das Forças Armadas ucraniano, suspeitava que o ataque era inevitável. Restava saber onde.

A primeira pista surgiu em novembro, quando surgiram relatos do posicionamento de unidades de elite de fuzileiros russos no Donbass. A Rússia estava a tentar conquistar Pavlivka, a menos de dois quilómetros de Vuhledar, com algumas das suas melhores e mais bem equipadas unidades. Zaluzhnyi compreendeu de imediato que a cidade mineira seria o próximo alvo russo e decidiu destacar as 72.ª Brigada Mecanizada para criar posições defensivas na cidade. Os soldados desta unidade, que ganhou fama e glória ao repelir o ataque russo em Kiev no início da guerra, não sabiam, mas estavam prestes a embarcar numa missão que durou quase dois anos seguidos, sem folgas nem férias.

Mas não era para menos. A importância de Vuhledar para o exército ucraniano era grande. Uma parte significativa da estabilidade da linha da frente dependia desta pequena cidade. A localização de Vuhledar, que se encontra em terreno elevado, fazia da cidade um bom ponto defensivo. Além disso, as dezenas de Brezhnevkas, edifícios residenciais altos construídos pelos soviéticos, faziam da cidade um ponto defensivo ainda mais promissor. A partir destes prédios, os militares ucranianos não só tinham estruturas de betão para utilizar como defesa, mas também como ponto de observação para detetar qualquer movimento inimigo a dezenas de quilómetros. O historiador Tom Cooper descreveu Vuhledar como "uma grande e alta fortaleza no meio de um deserto vazio e plano."

Os militares da 72.ª Brigada Mecanizada fizeram bem o seu “trabalho de casa”, fortificando rapidamente várias posições nos arredores da cidade. Utilizaram os túneis da mina de carvão nas imediações de Vuhledar como base logística onde armazenavam munições, explosivos e mantimentos. Ao mesmo tempo, as estradas que viajam em direção à cidade foram todas minadas e alguns pontos foram transformados em locais de emboscada, perfeitos para serem atacados à distância com uma combinação mortífera de mísseis antitanque, drones e artilharia.

Do outro lado, o general Rustam Muradov, que em 2017 recebeu a condecoração de Herói da Rússia pelas mãos do próprio Vladimir Putin, foi o homem escolhido para delinear o plano de ataque. Os homens da 155.ª Brigada de Fuzileiros russa devia abrir caminho com blindados através das planícies do Donbass até chegar aos arredores de Vuhledar. Depois do choque inicial, elementos de outras unidades mecanizadas, apoiados por membros dos grupos de mercenários Redut e Patriot eram responsáveis por “limpar” a cidade e a mina de carvão. O resultado foi uma das mais violentas derrotas do exército russo na Ucrânia.

Vídeos dos drones de observação ucranianos mostram que, muito antes de chegar ao destino, as forças russas já estavam debaixo do olhar atento dos defensores ucranianos. Os russos tinham reunido dezenas de carros de combate, veículos blindados de transporte de pessoal e mais de uma centena de peças de artilharia. Mas ao contrário de outras operações russas noutros pontos da frente, a ofensiva não começou com uma intensa ação de desminagem. O que se seguiu foi uma catástrofe.  

Os carros de combate russos foram direitos à emboscada montada pelos militares ucranianos. Equipas ucranianas escondidas entre as árvores e equipadas com armas antitanque abriram fogo. Um atrás do outro, dezenas de tanques russos coloriam os campos cobertos de neve com gigantescas bolas de fogo. Os que escapavam aos Javelins acabavam por atingir diretamente as minas antitanque. Apenas nos primeiros dias, pelo menos duas dezenas de veículos blindados russos foram destruídos. Nas imagens filmadas pelos militares ucranianos é possível ver os sobreviventes a aventurarem-se em fuga pelos enormes campos agrícolas. Os mortos multiplicavam-se, mas isso não desmotivava as chefias militares russas.

Durante duas semanas, os fuzileiros russos tentaram de tudo para tentar ultrapassar as defesas ucranianas, mas sem sucesso. A cidade ainda estava longe e o medo de sofrer o mesmo destino que os soldados que morreram nos campos de Vuhledar era palpável. Os relatos tornaram-se cada vez mais gráficos. Os pontos de emboscada criados pelos ucranianos tinham-se tornado um cemitério de veículos blindados e os corpos dos soldados russos ou o que restava deles trazia um intenso cheiro a morte. Em Moscovo, Vladimir Putin elogiava na televisão a “luta heróica” dos fuzileiros russos em Vuhledar.

A discrepância entre a realidade no terreno e as palavras do presidente russo enraiveciam os cidadãos russos mais atentos. Os principais bloggers militares russos criticavam a forma como os ataques estavam a ser conduzidos e a levar um elevado número de mortos. E o principal alvo da raiva russa era precisamente o general Rustam Muradov que, durante três semanas, insistiu em avançar a todo o custo. Mas o preço, pago em ferro e sangue, foi demasiado alto até para o Kremlin e o então ministro da Defesa, Serguei Shoigu, decidiu afastar o general Muradov.

Mas o afastamento do general não trouxe uma mudança de resultados. O ritmo e a escala dos ataques abrandaram e seria preciso esperar até novembro para voltar a ver uma nova ofensiva de larga escala. Cerca de dezenas de blindados voltaram a tentar furar as posições defensivas ucranianas junto a mina de carvão, mas as perdas voltaram a ser pesadas. Cerca de 60 veículos blindados foram destruídos ou danificados num só dia e o Estado-Maior das Forças Armadas russo colocou um travão na operação. Seria preciso esperar até maio de 2024 para testemunhar um novo ataque, também ele sem sucesso.

Só que os militares russos aprenderam com os erros e adaptaram as suas tácticas. Os edifícios residenciais da cidade foram alvo de intensos bombardeamentos ao longo de meses. As posições nos arredores da cidade passaram a ser atacadas com unidades móveis de infantaria equipada com motas. Estes ataques relâmpago contra as pequenas trincheiras ucranianas apanharam vários grupos de surpresa e os militares da 72.ª Brigada Mecanizada foram obrigados a defender no interior da cidade e da mina.

Em setembro, as forças russas lançaram um novo e reforçado ataque contra a cidade de Vuhledar. Sob a chuva intensa da artilharia, a Rússia conseguiu romper os flancos da pequena localidade. Exaustos e sem capacidades de defesa aérea, os homens que defenderam Vuhledar sem qualquer descanso ao longo de mais de dois anos ficaram em risco de serem cercados pelo exército russo. Bombardeamentos sem pausas reduziram a cidade a um amontoado de escombros onde apenas é possível reconhecer que ali já existiram prédios.

Com pouca capacidade para defender o pouco que resta da cidade, os dois mil homens da 72.ª Brigada Mecanizada receberam a ordem para retirar. Só que esta chegou tarde para estes soldados. Quase em risco de ser cercados, estes veteranos escaparam por pouco a pé através dos campos agrícolas de Vuhledar, sob o olhar atento dos drones e dos disparos da artilharia russa. No final, é impossível saber quantos é que ficaram para trás. No dia 1 de outubro de 2024, a bandeira russa era hasteada no centro da cidade, colocando um fim a uma das batalhas “mais caras” para o exército russo.

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