ANÁLISE. Presidente da Rússia não apenas se compara com Pedro, o Grande: assume o objetivo da restauração do império
Ler a mente do Presidente russo Vladimir Putin raramente é uma tarefa simples, mas por vezes o líder do Kremlin torna-a fácil.
Foi o que aconteceu na quinta-feira, quando Putin se encontrou com um grupo de jovens empresários russos. Qualquer pessoa que procure pistas sobre o que pode ser o jogo final de Putin para a Ucrânia deve ler a transcrição, que foi publicada em inglês aqui.
As palavras de Putin falam por si: o que pretende na Ucrânia é a restauração da Rússia como potência imperial.
Muitos observadores destacaram rapidamente uma das frases mais provocatórias de Putin, em que ele se comparou com Pedro, o Grande, o czar modernizador da Rússia e o fundador de São Petersburgo - o local de nascimento de Putin -, que chegou ao poder no final do século XVII.
“Pedro, o Grande travou a Grande Guerra do Norte durante 21 anos”, disse um relaxado e aparentemente auto-satisfeito Putin. "À primeira vista, ele estava em guerra com a Suécia, retirando-lhe algo. Ele não estava a tirar nada, estava a regressar. Foi assim que foi".
Não importou que os países europeus não reconhecessem a tomada de território pela força por Pedro, o Grande, acrescentou Putin.
"Quando ele fundou a nova capital, nenhum dos países europeus reconheceu este território como parte da Rússia; todos o reconheceram como parte da Suécia", disse Putin. "Contudo, desde tempos imemoriais, os eslavos viveram ali juntamente com os povos fino-úgricos, e este território estava sob o controlo da Rússia. O mesmo é válido para a direção ocidental, Narva e as suas primeiras campanhas. Porque iria ele para lá? Ele estava a regressar e a reforçar-se, era o que estava a fazer".
Aludindo dirctamente à sua própria invasão da Ucrânia, Putin acrescentou: "Claramente, coube ao nosso destino também regressar e reforçar".
Estas observações foram rapidamente condenadas pelos ucranianos, que as viram como uma admissão nua das ambições imperiais de Putin.
"A confissão de Putin de apreensões de terras e a sua comparação com Pedro, o Grande provam: não houve 'conflito', apenas a sangrenta apreensão do país sob pretextos forjados de genocídio popular", escreveu no Twitter o conselheiro presidencial ucraniano Mykhailo Podolyak. "Não devemos falar de 'salvar a face [da Rússia],' mas da sua imediata desimperialização".
Há muito para desfazer aqui, tanto em termos de história como de atualidade. Podolyak aludia a conversas em capitais internacionais sobre como oferecer a Putin uma forma de salvar a face para desescalar ou acabar com os combates na Ucrânia. O Presidente francês, Emmanuel Macron, liderou essa posição, dizendo no fim-de-semana passado que o mundo "não deve humilhar a Rússia" na procura de uma resolução diplomática.
Estes argumentos podem ter parecido mais razoáveis antes de 24 de fevereiro. No período que antecedeu a invasão, Putin apresentou uma série de queixas para defender a guerra, desde a expansão da NATO para leste até à entrega de assistência militar ocidental à Ucrânia.
Mas leia com mais atenção a transcrição das observações de Putin na quinta-feira, e a fachada da negociação geopolítica racional cai por terra.
"Para reclamar algum tipo de liderança - nem sequer estou a falar de liderança global, refiro-me à liderança em qualquer área - qualquer país, qualquer povo, qualquer grupo étnico deve assegurar a sua soberania", disse Putin. "Porque não há meio-termo, nenhum estado intermédio: ou um país é soberano ou é uma colónia, independentemente do nome das colónias".
Por outras palavras, existem duas categorias de Estado: o soberano e o conquistado. Na opinião imperial de Putin, a Ucrânia deveria ser enquadrada nesta última categoria.
Putin há muito defende que os ucranianos não têm uma identidade nacional legítima e que o seu Estado é, essencialmente, um fantoche do Ocidente. Por outras palavras, ele pensa que os ucranianos não têm agência e são um povo sujeito.
Ao evocar a memória de Pedro, o Grande, torna-se também claro que os objetivos de Putin são impulsionados por algum sentido de destino histórico. E o projeto de restauração imperial de Putin poderia - em teoria - estender-se a outros territórios que outrora pertenceram ao Império Russo ou à União Soviética, o que deveria suscitar alarmes em todos os países que emergiram do colapso da URSS.
No início desta semana, um deputado do partido pró-Kremlin Rússia Unida apresentou um projeto de lei à Duma, a Câmara Baixa do Parlamento russo, abolindo uma resolução soviética que reconhecia a independência da Lituânia. A Lituânia pode agora ser membro da NATO e fazer parte da União Europeia, mas na Rússia de Putin, esse tipo de postura neocolonial é a demonstração mais segura de lealdade para com o Presidente.
E isso não augura nada de bom para o futuro da Rússia. Se não se tiver em conta o passado imperial da Rússia - seja sob o disfarce soviético ou czarista -, há menos hipóteses de uma Rússia sem Putin abandonar um padrão de subjugação dos seus vizinhos, ou de se tornar um Estado mais democrático.
O antigo conselheiro de segurança nacional dos EUA, Zbigniew Brzezinski, afirmou, famosamente, que a Rússia só poderia separar-se dos seus hábitos imperiais se estivesse disposta a ceder as suas reivindicações à Ucrânia.
"Nunca é demais sublinhar que, sem a Ucrânia, a Rússia deixa de ser um império, mas com a Ucrânia subornada e depois subordinada, a Rússia torna-se automaticamente um império", escreveu ele em 1994.
Putin, contudo, está a contar com algo do contrário: para que a Rússia sobreviva, argumenta, deve permanecer um império, independentemente do custo humano.