"Vejo tempos dourados para o lóbi nuclear": os Estados, os sectores e as organizações que estão a beneficiar dos 100 dias de guerra

3 jun 2022, 07:00
Irpin

24/02/2022 - 03/06/2022. Foram 100 dias que mudaram o mundo que conhecemos. 100 dias em que se mataram civis e soldados, 100 dias que fizeram mais de 5 milhões de refugiados e em que os preços inflacionaram as nossas vidas, 100 dias que fazem dos próximos 100 dias um tempo imprevisível. Mas nem todos perderam nestes dias todos - ei-los

Morreram civis, alguns foram mesmo massacrados, parte de um país está destruída e milhões de pessoas fugiram das suas casas naquela que é a maior crise de refugiados desde a II Guerra Mundial. O desastre humanitário na Ucrânia e nas suas fronteiras é trágico e não há sinais de um desenlace - é que mesmo que a guerra termine haverá um país por reconstruir, um mundo a refazer sensíveis relações diplomáticas e suspeitas de crimes de guerra para julgar. Mas nem todos têm perdido com os 100 dias de guerra: desde Estados a empresas, passando por organizações internacionais, há quem tenha beneficiado com esta invasão sem paralelo na Europa desde a última Guerra Mundial. E do outro lado da Eurásia está aquele que, talvez, seja o maior beneficiado da invasão espoletada pelo Kremlin.

1. China (com a Sérvia pelo meio)

Embora não abertamente pró-russas, as autoridades de Pequim recusam condenar a invasão da Ucrânia e as sucessivas intervenções sobre a mesma visam principalmente o papel da NATO e dos Estados Unidos no decorrer da guerra.

Com o mercado europeu a fechar-se ao petróleo e gás russos, Moscovo vê-se forçada a procurar novos mercados para escoar os seus combustíveis. A China, maior emissor de gases com efeito de estufa do mundo, irá certamente aproveitar para comprar estes bens ao país liderado por Vladimir Putin a preços mais baratos do que os praticados pelo mercado.

Embora atualmente seja difícil que o volume de petróleo e gás transportado da Rússia para a China aumente substancialmente, dada a limitada capacidade de gasodutos, oleodutos e terminais marítimos chineses, um sinal do que poderá ser um futuro não muito distante vem dos Balcãs, mais concretamente da Sérvia.

Alesksandr Vucic, presidente do país e nacionalista pró-russo, deslocou-se a Moscovo para confirmar um acordo de fornecimento de gás à Sérvia, quase totalmente dependente da Rússia no sector energético e cujas principais empresas do ramo são detidas por companhias russas.

"O que vos posso dizer é que concordámos nos principais elementos que são muito favoráveis para a Sérvia. Concordámos em assinar um contrato de três anos, que é o primeiro elemento do contrato que serve muito bem o lado sérvio”, congratulou-se Vucic, citado pela AP, contrariando as informações que davam conta de que o contrato iria ter a duração de seis meses, prática normal nesta indústria.

Outro ponto que joga a favor da China é o isolamento diplomático que a Rússia enfrenta. “Moscovo terá dificuldades em avançar qualquer item da sua agenda internacional nos próximos anos. A China será o conector da Rússia com o resto do mundo”, vaticinou Oleg Ustenko, conselheiro económico do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, citado pelo Wall Street Journal.

2. NATO

Apesar das dificuldades enfrentadas pelo Ocidente, decorrentes da espiral inflacionista, a Aliança Atlântica saiu largamente beneficiada com a guerra, depois de um período desafiante, coincidente com a administração norte-americana de Donald Trump - que levou mesmo Emmanuel Macron a considerar, em 2019, que a organização estava em “morte cerebral”.

Se há três anos o presidente francês estava pessimista, em março falou da guerra como um “choque elétrico” que impulsionou a aliança militar. A ajuda material e financeira prestada pelos países da NATO à Ucrânia vai já nos milhares de milhões de euros. Só os EUA forneceram até ao início de maio mais de 3,5 mil milhões de euros em equipamento militar, segundo dados do próprio governo de Washington.

Não tendo participação direta no conflito, as ameaças russas foram, contudo, suficientes para a NATO reforçar a presença na sua frente Leste. A criação em março de quatro novos grupos de combate - na Eslováquia, Hungria, Roménia e Bulgária, que se juntaram aos já existentes nos países do Báltico e na Polónia - mandou um claro sinal para o Kremlin: a Aliança vai defender cada centímetro do seu território.

Mas talvez a melhor notícia para a organização ainda esteja por oficializar. A 18 de maio, Suécia e Finlândia formalizaram os respetivos pedidos de adesão à NATO. No caso da Suécia trata-se de um passo significativo rumo ao fim do histórico estatuto de neutralidade adotado pelo país, que prevaleceu mesmo durante a II Guerra Mundial. A Finlândia, por seu turno, dotada de um dos maiores e mais bem equipados exércitos da Europa, constitui uma poderosa força de dissuasão a um avanço militar russo. No contexto atual, a entrada destes dois países na organização reveste-se da maior importância para garantir a segurança do continente europeu. Resta “apenas” resolver os entraves colocados pela Turquia, que acusa os países nórdicos de albergarem “terroristas” curdos.

“Até agora, os entraves turcos foram suficientes para esvaziar politicamente o impacto que a adesão ia ter. Ninguém mais falou do assunto e a questão saiu da agenda política mediática global. O valor positivo associado ao carácter quase instantâneo dessa adesão - de até ao fim de ano estar tudo resolvido - já se perdeu. Não acredito que até ao fim do ano a adesão seja possível”, vaticina o comentador CNN Portugal Azeredo Lopes.

“A Suécia tem uma posição bastante tolerante relativamente à população curda no seu território, tão tolerante que até conta com membros do seu parlamento provindos daquela minoria, coisa que enfurece a Turquia. A questão do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) é mesmo importante. É, ao mesmo tempo, um pretexto muito útil e uma razão de fundo, considerando a fixação grave que o regime de Ancara tem com o partido, que equipara ao Daesh. Há uma consistência da posição turca relativamente à posição de Estados que entende serem favoráveis ao PKK, designado pela Turquia como organização terrorista”, acrescenta o comentador.

Contudo, Azeredo Lopes não espera que este impasse seja definitivo, já que a posição turca não se cinge à questão curda. “Já há negociações agendadas entre a Turquia e os Estados Unidos para desbloquear projetos que para Ancara são importantes e cuja exclusão dos mesmos constituiu uma humilhação, como é o caso do programa dos caça F-35. Tenho quase a certeza de que vai garantir a reentrada nesse clube restrito das elites militares do globo.”

Outro ponto que a Turquia quer avançar é o levantamento de sanções impostas por alguns países da União Europeia relativas a atividades ilegais do país no Mar Mediterrâneo, designadamente de exploração de petróleo e gás em território que não é seu. “Erdogan não vai largar o osso enquanto não estiver satisfeito e considere que aquilo que ganhou seja relevante na sua perspetiva”, aponta Azeredo Lopes.

3. Jogo turco “é bastante ganhante”

Não é só no processo de adesão de Suécia e Finlândia que Ancara está a maximizar os ganhos potenciais. “Já ganhou bastante com este conflito, do ponto de vista da reputação internacional e do peso negocial que conseguiu alcançar, algo que muito poucos, inclusive eu, achavam possível. Por um lado deu sinais à Rússia que o Kremlin não irá esquecer, mas, ao mesmo tempo, não aliena o apoio e a importância que o Ocidente lhe reconhece. É um jogo bastante ganhante”, destaca Azeredo Lopes.

“Depois daquele golpe militar [de 15 de julho de 2016] e da reação absolutamente desproporcional do regime de Erdogan, a Turquia não estava propriamente bem vista, não era o Estado com que os outros gostassem de ‘tomar chá’. Hoje em dia ocupa uma nova posição. Há um nexo causal direto entre esta nova posição e aquilo que a Rússia iniciou a 24 de fevereiro. Está num lugar muito mais favorável, não tenho dúvidas disso.”

Azeredo Lopes dá como exemplo do sucesso de Ancara as negociações com Moscovo para que seja a Turquia a desminar os portos ucranianos. “A Rússia vai acabar por deixar passar os cereais ucranianos por razões humanitárias. Quem é que surge, mais uma vez, como o Estado bom que consegue resolver um impasse? É a Turquia.”

4. Indústria do armamento

O medo gerado pela invasão russa levou a uma corrida ao armamento sem precedentes no século XXI. Três dias após o início da invasão, a 27 de fevereiro, a Alemanha deu um primeiro grande sinal do que poderá ser um futuro a médio prazo bastante benéfico para os fabricantes de armas e equipamentos militares, com o anúncio do chanceler alemão, Olaf Scholz, de um enorme plano de 100 mil milhões de euros (quase metade do PIB de Portugal em 2021) para renovar as Forças Armadas do país.

Também os EUA querem aumentar os já gigantescos gastos na Defesa. No final de março, o presidente Joe Biden solicitou a aprovação de um orçamento de 763 mil milhões de euros, um aumento face aos 734 mil milhões de 2021.

À medida que planos semelhantes eram revelados e as compras de armas aumentavam, a cotação das empresas do sector nos mercados mundiais disparava. A Lockheed Martin, maior produtora de armamento a nível mundial, viu a sua cotação em bolsa subir dos 307 euros por ação a 2 de novembro passado para um pico de 440 euros a 13 de abril, uma valorização de 43% em seis meses. O frenesim é tanto que o sector bancário quer uma fatia do lucrativo bolo. Em abril, o jornal francês Le Monde reportou que o Commerzbank, o segundo maior banco da Alemanha, redirecionou parte dos seus investimentos para o sector das armas.

Porém, o dinheiro ainda demorará a chegar. Num briefing aos media, Greg Hayes, CEO da Raytheon, afirmou que não esperava um aumento dos lucros já para este ano. “Espero que em 2023 e 2024 cheguem as grandes encomendas de reposição de inventários, tanto dos [sistemas] Stinger como dos Javelin, que têm sido muito bem-sucedidos no teatro de operações”, disse, citado pela ABC Australia.

5. Sector energético

“Sim, estamos a fazer dinheiro e a guerra fez subir os preços.” Foram estas as palavras de Andy Brown, CEO da Galp, à CNN Portugal em meados de abril. As cotações em bolsa comprovam-no: o valor de cada ação da empresa subiu dos 9,55 euros no dia da invasão para os 12,30 no início de junho, um novo máximo desde finais de fevereiro de 2020, quando a covid-19 se começava a espalhar na Europa.

O líder executivo da petrolífera portuguesa argumenta que o ganho não está na venda do combustível em si mas sim na refinação. "Não estamos a lucrar aumentando os preços [dos combustíveis] de forma oportunista. Não fazemos assim, não é assim que agimos”, garante Brown.

Contudo, como a CNN Portugal já demonstrou, o sobe e desce do preço dos combustíveis na bomba não acompanham o sobe e desce do preço do petróleo, tendo as gasolineiras aproveitado também para embolsar algum dinheiro com a descida e a suspensão da cobrança de alguns impostos decretada pelo Governo de António Costa.

Um pouco por todo o mundo as empresas petrolíferas lucram com a súbita quebra do fornecimento russo. As ações da francesa Total registaram no final de maio o valor unitário mais elevado desde 2018, quando se aproximaram dos 56 euros. Mais impressionante é a norte-americana Chevron, que no dia 27 do passado mês registou mesmo o preço mais elevado de sempre por ação: 168,97 euros.

Mas não foram só as empresas envolvidas na extração de combustíveis fósseis que lucraram. A ONG britânica OpenDemocracy refere num relatório de 6 de maio que as empresas de produção de energia a partir de fontes renováveis aumentaram o seu valor de mercado em cerca de 15%. No caso das empresas envolvidas na produção de combustíveis alternativos, essa valorização é ainda maior e situa-se nos 38%.

O próprio sector do nuclear, já favorecido por uma diretiva da Comissão Europeia datada de 22 fevereiro deste ano, que o considera como aceitável para a transição energética, sai incrivelmente reforçado, como corrobora Azeredo Lopes.

“A França já anunciou um investimento brutal nessa área. Podemos estar a ter um futuro muito mais nuclear do que alguma vez imaginámos. Uma eventual forte aposta no nuclear significa que a transição energética do Ocidente também fica menos dependente da Rússia. Vejo tempos dourados para o lóbi nuclear”, acredita o antigo ministro da Defesa.

“Muito pouco se tem falado das tomadas muito fortes de posição da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) a favor do nuclear. De repente é tudo maravilhoso. Mesmo a questão dos resíduos, que é a maior preocupação, começa a ser tecnologicamente mais fácil de enfrentar. Se o nuclear for encarado pela União Europeia como uma alavanca que permita a transição energética, algo que a França já considera, será uma péssima notícia para a Rússia.”

Europa

Mais Europa

Patrocinados