Uma teia que pode ir até Putin. O que se sabe sobre os refugiados ucranianos recebidos por russos pró-Kremlin em Portugal

29 abr 2022, 23:30

O caso de Setúbal pode ser apenas o início. Por isso mesmo o PSD e a Iniciativa Liberal já pediram uma investigação e uma audiência na Comissão de Liberdade e Garantias. Serviços secretos portugueses já tinham sido avisados destas possíveis ligações

A embaixadadora da Ucrânia em Portugal alertou para o problema a 8 de abril. Em entrevista exclusiva à CNN Portugal (do mesmo grupo da TVI), Inna Ohnivets admitiu que temia pela segurança dos refugiados ucranianos que têm chegado a Portugal. Uma semana mais tarde, a CNN revelou uma teia de ligações que liga associações que recebem refugiados em Portugal ao Kremlin e a Vladimir Putin.

Esta sexta-feira, foram reveladas novas informações: refugiados ucranianos têm sido recebidos por associações pró-russas em Setúbal, avançou o jornal Expresso. A Olga, uma refugiada entrevistada pelo semanário, perguntaram-lhe onde estava o marido "e o que tinha ficado a fazer”. Também lhe fotocopiaram os documentos, entre os quais o passaporte e a certidão de nascimento dos filhos.

Uma das associações que tinha sido revelada pela investigação da CNN trabalhou de perto com a autarquia de Setúbal, a Associação dos Imigrantes dos Países de Leste (EDINSTVO). É presidida por Igor Khashin, marido da jurista russa Yulia Khashina que, desde dezembro, trabalhava na Linha de Apoio aos Refugiados (LIMAR), um gabinete criado pela câmara de Setúbal. O próprio Igor, admite a autarquia, dava apoio na LIMAR.

Igor e Yulia foram os responsáveis pelo acolhimento de Olga, foram eles que lhe perguntaram o que o marido estava a fazer e que lhe fotocopiaram os documentos. Pelo menos 160 refugiados ucranianos já terão sido recebidos por Igor Khashin, antigo presidente da Casa da Rússia e do Conselho de Coordenação dos Compatriotas Russos, e pela mulher.

Esta sexta-feira, a autarquia acabou por anunciar o afastamento de Yulia Khashina. "Face à situação criada, a Câmara Municipal, retirou do acolhimento de cidadãos ucranianos a técnica superior citada na notícia até ao total e inequívoco esclarecimento desta situação", lê-se na nota publicada no Facebook.

A dimensão do caso até pode ser maior, e há quem diga que a situação não se limita a Setúbal, onde a autarquia é dirigida por comunistas. O presidente da Associação de Ucranianos em Portugal, Pavlo Sadokha, disse que já tinha conhecimento dessa informação e que o mesmo se passa noutros municípios, como o de Montijo ou Aveiro, que trabalham com associações pró-Putin. "Desde a chegada de refugiados ucranianos em Portugal, fomos alertados por vários dos nossos compatriotas nesta zona de Setúbal e Montijo que o Igor Khashin, que é bem conhecido como pró-russo e anti-ucraniano, estava a receber esses refugiados ucranianos".

Nataliya Khmil, fundadora da associação Amizade, uma das associações visadas por Pavlo Sadokha, responde às suspeitas lembrando as ajudas que já fez chegar à Ucrânia e acusa a embaixadora ucraniana de nunca se ter envolvido nos destinos dos refugiados que chegam a Portugal: "A associação Amizade recebe quatro toneladas de medicamentos gratuitos. O que significa isso? Quem é pró-russo".

O que diz a Câmara de Setúbal?

A Câmara Municipal de Setúbal garante que "questionou formalmente" e no próprio dia da entrevista da embaixadora ucraniana à CNN Portugal o primeiro-ministro António Costa para que este se "pronunciasse sobre a veracidade destas declarações e esclarecesse com a maior brevidade possível se o Alto Comissariado para as Migrações mantinha a confiança nesta associação". Mas, diz o comunicado, não obteve qualquer resposta.

Não obstante, a autarquia vai pedir ao Ministério da Administração Interna que "adote, de imediato, os necessários procedimentos no sentido de averiguar a veracidade das suspeitas veiculadas pelo jornal Expresso" e mostrou-se totalmente disponível para prestar qualquer esclarecimento ou informação adicional.

António Costa diz que a carta que o autarca lhe enviou foi "um protesto sobre declarações da embaixadora ucraniana à CNN Portugal" e não um pedido de esclarecimento.

"A carta que o presidente da Câmara Municipal de Setúbal dirigiu ao primeiro-ministro no passado dia 11/04/22 é um protesto sobre declarações prestadas pela embaixadora da Ucrânia em Lisboa, à CNN Portugal, e foi reencaminhada para os efeitos tidos por convenientes para o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE)", explicou o gabinete do primeiro-ministro, em comunicado divulgado há momentos.

Entretanto, apesar de o caso não envolver a Câmara Municipal de Lisboa, aquela autarquia veio assegurar a proteção dos dados pessoais dos refugiados da Ucrânia, indicando que são "apenas" partilhados com as entidades oficiais que asseguram o encaminhamento para respostas intermédias e “na estrita medida do necessário”.

“Os dados pessoais destes cidadãos são apenas acedidos pela equipa coordenadora do Serviço Municipal de Proteção Civil (SMPC) e pelas técnicas que asseguram o atendimento, e são apenas partilhados com as entidades oficiais que asseguram o encaminhamento para respostas intermédias – Alto Comissariado para as Migrações (ACM) e Instituto da Segurança Social (ISS) – na estrita medida do necessário a esse encaminhamento”, indicou a Câmara de Lisboa em resposta à agência Lusa.

PSD quer investigação, PCP fala em "amizade"

O PSD exigiu em comunicado que a Câmara Municipal de Setúbal, que pertence ao PCP, seja "urgentemente" investigada pelo Governo e respetivas entidades competentes. A Inicitiva Liberal também já chamou o presidente da Autarquia, André Valente Martins, para ser ouvido na Comissão de Liberdade e Garantias. Mais tarde o PSD de Setúbal acabou por pedir a demissão do presidente da Câmara, André Martins.

No comunicado do PSD, a que a CNN Portugal teve acesso, o presidente da Distrital de Setúbal, Paulo Ribeiro, disse ser "incompreensível" a atitude por parte do município comunista e foi mais longe: "Não aceitamos que a longa mão do KGB chegue a Setúbal". 

A reação do PCP não se fez esperar: num comunicado curto, com apenas dois parágrafos, o partido comunista, que tem sido constantemente acusado de apoiar o regime de Vladimir Putin, disse que no município não há espaço para exclusões ou sentimentos xenófobos.

"O trabalho com imigrantes que há muito se desenvolve no município de Setúbal caracteriza-se por critérios de integração e amizade entre os povos onde não prevalecem nem exclusões nem sentimentos xenófobos", lê-se na nota, que acrescenta ainda que "neste momento em que se impõe um reforço do apoio aos refugiados, em particular aos ucranianos, esta concepção humanista é ainda mais importante". 

Também o Governo está a avaliar o caso, tendo já pedido esclarecimentos ao Alto Comissariado para as Migrações (ACM). A secretária de Estado da Igualdade e Migrações enviou, esta sexta-feira, o pedido à Alta-Comissária, Sónia Pereira, com caráter de urgência.

A governante “pediu também esclarecimentos aos parceiros locais do ACM , como a Rede de Centros Locais de apoio à integração de migrantes e associações locais”, acrescenta o comunicado.

Serviços secretos já tinham sido avisados

A Associação dos Ucranianos em Portugal garante que há, neste momento, neste país, infiltrados pró-Putin em Organizações Não Governamentais (ONG) que apoiam os ucranianos, e já alertou as secretas portuguesas.

Numa carta enviada no dia 2 de abril, à secretária-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP), Graça Mira Gomes, a que a CNN Portugal teve acesso, o presidente daquela associação explica que a situação “é muito grave e pode pôr em causa a segurança dos ucranianos refugiados de guerra que vão chegando a Portugal, dos familiares deles na Ucrânia e a segurança da Ucrânia em tempos de invasão russa”.

Segundo refere o presidente daquela associação de ucranianos, no documento que enviou ao SIRP, em causa estão “organizações diretamente ligadas à embaixada da Rússia”, apesar de “nos estatutos” aparecerem como “multiculturais” e que são vistas como representantes dos ucranianos. “Alguns meses antes da invasão russa ao território ucraniano, estas organizações, de repente, limparam toda a informação que mostrava ligação com a embaixada da Rússia em Portugal nas suas páginas web e redes sociais”, explica, acrescentando que, para “agravar”, estas organizações em Portugal são reconhecidas pelo Alto Comissariado dos Migrações (ACM).

Hackers voltam a atacar PCP

Já no final desta sexta-feira, um grupo de hackers que diz ser pró-Ucrânia atacou o website da Câmara Municipal de Setúbal, deixando a plataforma inoperacional durante várias horas, naquilo que foi classificado pelo grupo ativista como "uma operação especial" contra "a Rússia e os seus aliados", após a polémica em torno da receção de refugiados ucranianos na autarquia por funcionários russos ligados ao Kremlin. 

O ataque terá começado por volta das 16:30 e terá acabado por voltas das 20:00. Num documento enviado à CNN Portugal, o grupo de hackers diz que não aceita "a presença do invasor em autarquias que recebam refugiados".

"Às 16:30 paralisamos o website da autarquia comunista de Setúbal. Não aceitamos a presença do invasor em autarquias que recebam refugiados. O Mundo não quer e não precisa de invasores criminosos de guerra. Vamos perseguir o invasor e todos os seus aliados. Nada nem ninguém vos irá proteger no ciberespaço", pode ler-se no documento.

O coletivo de hacktivistas apelidou o ataque de "operação especial de ciberataques cirúrgicos à Rússia e seus aliados" e sublinha . 

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