Um massacre manipulado, um naufrágio causado por uma tempestade e outras encenações: como a guerra está a ser noticiada na Rússia

6 mai 2022, 22:39

Como mais de 50 horas de noticiários de televisões estatais russas mostram como parecem estar a ocorrer duas guerras diferentes na Ucrânia

O Ocidente tem assistido, ao longo dos últimos dois meses, a uma guerra através das televisões e jornais que todos os dias fazem a cobertura no terreno. Sabemos, por isso, das mortes de civis em Bucha, do naufrágio do mítico Moskva, do bombardeamento de uma maternidade que fez várias vítimas mortais e do ataque à central nuclear de Zaporizhzhia. 

Mas essa é a versão do Ocidente. Na versão de Moscovo, transmitida pelos media estatais russos, parece estar em curso uma guerra diferente, com os mesmos eventos a serem interpretados de forma distinta, glorificando todas as ações da Rússia de forma a mostrar como a Ucrânia está muito melhor agora que está em curso esta "operação militar" para "desnazificar" o país. Pelo menos é assim que a guerra está a ser transmitida aos espectadores russos, como constatou o jornal norte-americano New York Times, depois de assistir a mais de 50 horas de noticiários de televisões estatais russas.

Muitos dos meios de comunicação russos são controlados pelo Kremlin, que criminalizou reportagens críticas sobre a guerra, isto é, trabalhos jornalísticos que vão além da narrativa apresentada pela Federação Russa. Especialistas em desinformação explicaram ao jornal que as narrativas complexas, e muitas vezes contraditórias, que estão a ser construídas em torno da guerra nestes media cumprem dois objetivos: o primeiro passa por tentar convencer o público de que a sua versão dos factos é a verdadeira, e o segundo por confundir os espectadores com análises complexas dos factos.

O mítico Moskva naufragou devido a uma tempestade

Ucrânia reivindica ataque ao principal navio russo no Mar Negro (AP)

Era o orgulho da frota russa e durante 50 dias dominou o Mar Negro e ajudou Moscovo a bloquear o acesso da Ucrânia aos mares internacionais. Mas, no dia 13 de abril, a Rússia teve de enfrentar a dura realidade de que o seu principal navio-almirante estava a flutar sem rumo no Mar Negro, acabando por afundar na costa da Ucrânia.

De acordo com as autoridades ucranianas, o navio foi atingido por dois mísseis ucranianos Neptune, um projétil moderno de produção ucraniana que tem como objetivo destruir navios.

Mas a versão dos eventos transmitida pelos media controlados pelo Kremlin conta uma história diferente, que entretanto se foi alterando com o passar do tempo. Inicialmente, o Ministério da Defesa da Rússia indicou que o navio tinha sofrido alguns danos provocados por um incêndio que deflagrou na embarcação, garantindo que a tripulação tinha sido retirada com segurança e que o navio estaria a ser rebocado.

Mais tarde, os media russos noticiaram o naufrágio da embarcação, explicando que o mesmo afundou quando estava a ser rebocado debaixo de uma tempestade. A tripulação, segundo os mesmos noticiários, estava sã e salva. 

Um massacre encenado em Bucha

Ursula von der Leyen, de visita a Bucha, após o massacre (Efrem Lukatsky/AP)

A retirada das forças russas do norte da Ucrânia ficou marcada pelo massacre de Bucha, depois de terem sido divulgadas várias imagens de cadáveres de civis abandonados nas estradas daquela cidade, localizada perto da capital ucraniana, alguns com sinais de terem sido vítimas de tortura e com as mãos atadas.

As imagens geraram uma onda de indignação no Ocidente, com vários líderes mundiais a acusarem as tropas russas de cometerem crimes de guerra. Entretanto, várias organizações humanitárias internacionais e investigadores do Tribunal Penal Internacional deram início a investigações no terreno para procurar provas de crimes contra civis.

Porém, a televisão russa apresentou as imagens como uma encenação, repetindo análises às fotografias e vídeos do massacre à procura de sinais de manipulação. Os jornalistas da televisão estatal argumentaram que as roupas que alguns civis tinham vestidas aparentavam estar demasiado limpas para quem estava abandonado na rua há semanas, contrariando assim a versão ocidental de que os corpos já estariam ali há semanas.

O Ministério da Defesa da Rússia fez ainda uma declaração, transmitida no noticiário "Vremya", na qual argumentava que os cadávares não tinham sinais de decomposição. "Isto é uma prova irrefutável de que as fotos e os vídeos de Bucha não passam de mais uma encenação do regime de Kiev, em benefício dos meios de comunicação ocidentais", referiu o Ministério.

Entretanto, também esta narrativa sofreu alterações: afinal, os civis estavam de facto mortos, mas foram as tropas ucranianas que os mataram, referiam os noticiários russos. Para defender esta nova informação e mostrar que ninguém foi morto até à retirada das tropas russas, a televisão estatal Rossiya 1 apresentou uma linha cronológica bastante complexa, tendo como objetivo confundir o público.

Maternidade atacada pelo Batalhão Azov

O 14.º dia da invasão russa ficou marcado pelo bombardeamento de um hospital pediátrico/maternidade em Mariupol, cidade cercada pelas tropas russas desde o início do conflito. Imagens de mulheres grávidas feridas a serem transportadas em macas pelas escadas destruídas do hospital correram mundo, chamando a atenção para o custo da guerra entre os civis.

Na Rússia, este ataque foi apresentado também como uma encenação, uma tese que foi defendida a partir das imagens de duas mulheres em particular: Marianna Vyshermirskaya, uma grávida visivelmente ferida, fotografada a descer as escadas do edifício após o bombardeamento, e outra mulher, também grávida, que não foi identificada, e que foi fotografada a ser transportada numa maca. Mais tarde, a agência de notícias Associated Press noticiaria a sua morte.

Marianna Vyshermirskaya, no exterior do hospital pediátrico alvo de ataques (AP Photo/Mstyslav Chernov)

Grávida a ser transportada numa maca após bombardeamento da maternidade (AP Photo/Evgeniy Maloletka)

De acordo com a televisão estatal russa, as duas mulheres eram, na verdade, uma só. Mas esta tese acabou por ser refutada pela própria Marianna Vyshermirskaya, que negou ser a mulher na maca.

Num outro vídeo transmitido pelos media russos, as vítimas que estavam a ser transportadas do hospital foram descritas como soldados do Batalhão Azov, uma unidade militar com ligações à extrema-direita na Ucrânia. Mas as imagens registadas por jornalistas ocidentais mostram que as vítimas eram, de facto, mulheres, mas que algumas vestiam trajes de uma cor semelhante aos uniformes das tropas.

O Kremlin e os media russos argumentam frequentemente que o conflito tem como objetivo a “desnazificação da Ucrânia”. É certo que o Batalhão Azov foi fundado em 2014 a partir de grupos nacionalistas e neonazis, mas os especialistas citados pelo jornal indicam que o grupo reprimiu grande parte do seu lado extremista sob pressão das autoridades ucranianas. Os especilistas referem, aliás, que o movimento neonazi não é uma força significativa na Ucrânia, apontando a eleição de Volodymyr Zelensky, que é judeu, para a presidência do país como prova disso mesmo.

Incêndio na central nuclear de Zaporizhzhia foi culpa dos ucranianos

Cerca de uma semana após o início da invasão russa, a maior central central nuclear da Europa, em Zaporizhzhia, ficou em chamas depois de ter sido bombardeada pelas forças russas, de acordo as autoridades de Kiev. O incêndio fez soar os alarmes em todo o mundo face ao risco de uma catástrofe. Na altura, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia, Dmytro Kuleba, chegou a afirmar que se a central explodisse seria "dez vezes pior que Chernobyl".

O incêndio acabou por ser extinto algumas horas depois, mas as autoridades ucranianas acusaram a Rússia de “terrorismo nuclear”. Do lado de Moscovo, contudo, os espectadores ouviram outra versão dos eventos, na qual o incêndio foi provocado por um ataque das tropas ucranianas. Nesta versão, as forças russas defenderam a central nuclear de "sabotadores ucranianos" que fugiram das instalações antes de o incêndio deflagrar.

Semanas depois deste ataque, os media estatais russos divulgaram imagens da central de Zaporizhzhia a funcionar normalmente. “Enquanto a operação militar especial está em andamento, a central nuclear não parou de funcionar por um segundo”, disse Aleksey Ivanov, repórter do “Vremya”, noticiário noturno do Rossiya 1, apontando como os guardas russos “não interferem no trabalho da central”. Um soldado entrevistado nas instalações disse que os trabalhadores “mantêm a ordem e a disciplina no seu trabalho”.

A televisão estatal russa insiste assim na ideia de que a Ucrânia se está a sair melhor sob o controlo de Moscovo do que antes da "operação militar", reforçando o argumento de Putin de que as tropas russas foram enviadas para Kiev para proteger os cidadãos ucranianos.

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