Ucrânia forçada a negociar a paz? "O fim dos combates não vai levar ao fim da guerra"

19 nov 2024, 15:00
Embaixadora da Ucrânia em Portugal, Maryna Mykhailenko

MIL DIAS DE GUERRA || Ao mesmo tempo que o presidente Joe Biden acabou com restrições de uso de armamento em território russo, muitos homens da confiança de Donald Trump querem que a Ucrânia abdique do seu território a troco da paz. Para a embaixadora Maryna Mykhailenko, o histórico de agressões russas prova que "as concessões territoriais não iriam levar à paz," mas apenas perpetuariam a instabilidade e o conflito

Mil dias depois, as ameaças não param de se multiplicar. A situação no campo de batalha na Ucrânia é difícil, com a falta de homens e de material a fazerem-se sentir, e com a Rússia a voltar a intensificar uma campanha de bombardeamento contra infraestruturas energéticas, deixando milhões sem energia. Só que no plano diplomático começa a surgir uma nuvem de dúvida. A embaixadora da Ucrânia em Portugal, Maryna Mykhailenko, elogia o apoio português mas admite que será mais difícil travar a guerra sem o apoio dos aliados, alertando que o fim forçado dos combates não vai levar ao fim da guerra.

“Há várias informações a circular nos media acerca do plano [de paz], mas até agora não temos nenhuma proposta oficial. Mas se estivermos a falar de alguma concessão territorial pensam que Putin está pronto para trocar território pela paz? Nós não temos um sinal dele para parar esta agressão e de se sentar na mesa de negociações. Para nós é importante ter um plano compreensivo que garanta uma paz justa e longa e não apenas um acordo que parem os combates. O fim dos combates não vai levar ao fim da guerra”, explica à CNN Portugal Maryna Mykhailenko.

Os dias que se seguiram à eleição de Donald Trump foram marcados por especulação acerca da estratégia do presidente norte-americano para lidar com o dossier da Ucrânia. Durante a campanha, o candidato republicano afirmou repetidamente que, se eleito, acabaria com o conflito em menos de 24 horas. As declarações passadas das escolhas do antigo presidente para algumas dos cargos mais importantes do executivo também levantaram questões acerca da continuidade do apoio militar norte-americano à Ucrânia.

A situação tornou-se ganhou uma nova dimensão com o comentário público do filho do presidente-eleito, que partilhou uma fotografia do presidente ucraniano e com a descrição “a tua mesada vai acabar”. Pouco depois, foi a vez de Elon Musk, empresário nomeado para gerir um departamento dedicado à eficiência governamental, ter respondido às afirmações de Zelensky sobre a Ucrânia não poder ser obrigada a “sentar e ouvir” nas negociações. “O seu sentido de humor é maravilhoso”, respondeu Musk.

Só que na visão da Ucrânia, uma paz a qualquer custo que não seja considerada justa e garanta a segurança nas próximas décadas pode significar o fim do país. Por esse motivo, a diplomata ucraniana insiste que o seu país não tem outra escolha senão lutar contra o país invasor, embora admita que sem o apoio militar do ocidente, essa luta será ainda mais desigual e o preço pago pelo país será ainda mais elevado.

“Estamos em guerra há mais de dez anos. A guerra não começou em 2022, mas sim em 2014. Alguns dos peritos militares deram-nos apenas três dias ou duas semanas, mas nós continuámos a lutar até agora porque não temos escolha. Sabemos que Putin não quer apenas uma parte da Ucrânia, ele quer destruir totalmente a Ucrânia. É por isso que, para nós, não há escolha, para nós é uma guerra existencial”, garante a embaixadora ucraniana.

A embaixadora Maryna Mykhailenko rejeitou categoricamente a ideia de concessões territoriais como caminho para a paz, afirmando que a Rússia não demonstra disposição genuína para negociar. Recordando as condições impostas por Moscovo, que passam pela retirada das tropas ucranianas de territórios ilegalmente anexados e a neutralidade com a Ucrânia fora da NATO, são incoerentes, dado que a Ucrânia já era neutra em 2014, quando a Crimeia foi anexada. Para Mykhailenko, este histórico de agressões mostra que "as concessões territoriais não iriam levar à paz," mas apenas perpetuariam a instabilidade e o conflito.

“Todos nós nos lembramos das pré-condições [russas]. Retirar todas as tropas ucranianas das regiões da Ucrânia. Ele não as conseguiu tomar pela força e depois tentou forçar-nos a abandonar este território, o nosso território. Outra das condições era não entrar na NATO e ser neutro, mas eu recordo que a Ucrânia era neutra em 2014, durante a ocupação da Crimeia. Tudo isto confirma que eles não estão prontos para as negociações. E isto é extremamente importante: as concessões [territoriais] não iriam levar à paz.

Por esse motivo, Maryna Mykhailenko vê com bons olhos a decisão de Joe Biden em levantar a restrição na utilização de armas de longo alcance norte-americanas para atingir alvos militares no interior de território russo, colocando fim a um braço de ferro entre a administração americana e ucraniana que se arrastava há meses. Em setembro, o líder ucraniano visitou os Estados Unidos, onde se encontrou com Joe Biden, e entregou uma lista de alvos que a Ucrânia vê como prioritária para atingir no interior do território russo.

“De acordo com o artigo 51 da Carta das Nações Unidas, temos todo o direito de nos defendermos. Na minha visão, esta restrição de que não se utilizam mísseis de longo alcance em território russo é artificial e criou muitos problemas para nós no campo de batalha. Nós pedimos aos nossos parceiros para levantarem estas restrições e, finalmente, espero que seja feito”, afirma.

A Ucrânia tem sido fustigada por bombas planadoras FAB. Esta munição russa transporta uma grande quantidade de explosivos e é capaz de ser disparada a mais de 60 quilómetros do alvo, atingindo-o com uma grande precisão. Ao longo dos últimos meses, Kiev tem argumentado com os seus parceiros que a única forma de resolver este problema é cortando o mal pela raiz. Estas bombas são quase impossíveis de intercetar com os sistemas de defesa antiaérea, por isso, a solução ucraniana passa pela destruição das aeronaves em território russo, quando estas ainda estão nos seus hangares. Para isso, a utilização de mísseis de longo alcance é fundamental.

Questionada sobre o timing da decisão americana, Maryna Mykhailenko aponta para uma alteração no campo de batalha que “mudou tudo” para a Ucrânia: a introdução de soldados norte-coreanos na linha da frente, na região de Kursk. Inicialmente, Pentágono e Ucrânia estimavam que o número de soldados norte-coreanos rondava os 11 mil, no entanto, fontes anónimas citadas pela Bloomberg afirmam que esse número pode chegar aos 100 mil soldados. “Isto muda tudo para nós, já não estamos só a lutar contra os russos, mas sim também contra tropas norte-coreanas”, frisa.

Ao mesmo tempo, na Europa, surgem sinais contraditórios. O chanceler alemão, Olaf Scholz, ligou para Vladimir Putin pela primeira vez desde que começou a guerra, para que o presidente russo mostrasse “vontade de iniciar conversações com a Ucrânia de modo a alcançar uma paz justa e duradoura". Apesar de Scholz reafirmar a “determinação inabalável da Alemanha em apoiar a Ucrânia” na defesa contra a Rússia, a chamada caiu mal em Kiev. A embaixadora da Ucrânia em Portugal questiona a utilidade da chamada que serviu apenas para ajudar a Rússia a sair “do isolamento”, abrindo uma “caixa de Pandora”.

“Nós sabemos que os planos de Putin vão bem além da Ucrânia, lembram-se da situação na fronteira da Polónia com a Bielorrússia com a imigração, sabemos de todos os exemplos de interferência russa em algumas eleições por toda a Europa, lembramo-nos de outros exemplos, como nos Estados do Báltico, quando [os russos] tentaram testar a fronteira marítima com a Lituânia, se não estou em erro. O plano de Putin é claro como água: dividir a Europa, claro, dividir a União Europeia e ele irá mais longe se não for travado”, alerta Mykhailenko.

E para cumprir esse plano a Ucrânia acredita que a Rússia vai utilizar muito mais do que apenas o seu exército. Para Maryna Mykhailenko, há sinais claros de que a Rússia do antigo agente dos serviços secretos soviéticos, Vladimir Putin, está disposta a utilizar os meios menos convencionais para destabilizar os seus adversários e Portugal não está a salvo. A Ucrânia acredita que Moscovo não hesita em fazer uso da desinformação, “um instrumento muito eficaz que a Rússia tem”. Só que isso pode ter um preço a pagar: a própria liberdade de expressão. “A linha que separa a liberdade de expressão e os valores democráticos da desinformação é muito ténue. Espero que encontrem um equilíbrio entre a segurança – porque o que está em causa é a vossa segurança, antes de mais – e esses valores”, explica.

Portugal, apesar da distância geográfica de cerca de 4 mil quilómetros da Ucrânia, tem sido um dos países europeus que mais apoio têm dado a Kiev, algo que surpreendeu positivamente o governo ucraniano, segundo a embaixadora Maryna Mykhailenko. Esse apoio, que inclui assistência militar, humanitária e acolhimento de refugiados, coloca Portugal no radar da Rússia, segundo a diplomata. "Portugal é um Estado muito importante, porque está no flanco ocidental da NATO e agora a Ucrânia está a defender o flanco oriental," afirmou, sugerindo que Moscovo tenta explorar essas dinâmicas para influenciar a perceção pública.

Ainda assim a embaixadora destacou todo o esforço do apoio português à Ucrânia que passou pela dimensão militar, económica e humanitária. Entre as contribuições militares, Mykhailenko mencionou o envio de três tanques e outros veículos blindados, bem como a formação de técnicos no âmbito da coligação F-16. Portugal também acolheu quase 60 mil refugiados ucranianos, oferecendo-lhes apoio e demonstrando solidariedade. Além disso, durante a visita do Presidente Zelensky a Lisboa, em maio, foi assinado um acordo de segurança que incluiu a participação portuguesa na reconstrução de infraestruturas na Ucrânia, como o projeto de recuperação do Liceu 25, na região de Zhytomyr.

“Eu quero agradecer a todos os portugueses pelo apoio que nos deram e gostaria de vos pedir que continuem a apoiar a Ucrânia. É uma altura muito difícil da nossa história. A invasão de larga escala decorre há mais de dois anos e meio e nós precisamos do vosso apoio. E esta guerra não é só nossa. É uma guerra contra a Europa e contra os vossos valores, princípios e até contra a vossa forma de vida”, afirmou.

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