A Rússia corre contra o tempo para reconquistar o seu território antes da chegada das chuvas, mas pode vir a ter uma surpresa
A oeste da zona de Kursk, atualmente ocupada pela Ucrânia depois da ofensiva relâmpago lançada no início de agosto, existem 776 quilómetros quadrados encurralados entre o território ucraniano e o rio Seym. A defender o território estão mais de mil soldados russos, que podem ter ficado completamente isolados, depois de a Ucrânia ter destruído as únicas três pontes sobre o rio que ligavam esta área ao restante território russo. Sem qualquer apoio logístico e cercados por forças ucranianas, Moscovo pode arriscar-se a perder ainda mais território sem conseguir oferecer resistência.
“Os ucranianos destruíram completamente as três pontes principais que atravessam este rio, que não é possível cruzar com blindados. Os russos instalaram duas travessias, mas uma já foi destruída e outra está sinalizada. Os mais de mil militares russos estão encurralados. É possível que voltemos a ver rendições em massa como vimos recentemente”, antevê o major-general Isidro de Morais Pereira, especialista em assuntos militares.
Vários sinais faziam antever que a estratégia ucraniana podia passar pelo isolamento da margem sul do rio Seym. Poucos dias depois de a ofensiva ucraniana em Kursk ter começado, a 6 de agosto, o exército ucraniano começou a atacar as pontes deste rio, mesmo sem ter feito qualquer ataque terrestre nesta zona. “Os ataques às pontes sobre o rio Seym e o avanço das unidades avançadas das forças de defesa ucranianas para a margem ocidental do rio (...) sugerem que o objetivo das forças de defesa ucranianas é assumir o controlo de uma parte do Oblast de Kursk a sul do Seym”, explica o Centro Ucraniano de Estratégias de Defesa.
A liderança militar russa compreendeu o que estava a acontecer e ordenou que a travessia do rio Seym fosse imediatamente reposta. Unidades de engenheiros militares foram enviados para a frente de combate com a missão de construir pontões para atravessar o rio. Estes equipamentos, compostos por várias peças flutuantes, são montados pelos especialistas em poucas horas e permitem atravessar um rio com veículos blindados pesados. Uma análise de imagem de satélite da Radio Free Europe mostra que as forças russas contruíram três destas estruturas.
Mas a Ucrânia já esperava que isso fosse acontecer e não perdeu tempo. Vídeos partilhados pelas unidades militares que operam na região mostram operadores de drones ucranianos a intercetar e destruir os veículos de uma unidade militar que se preparava para construir uma destas estruturas. Num outro vídeo é possível ver o piloto do drone a atingir com sucesso veículos com gruas utilizados para colocar as secções flutuantes dos pontões na água.
Além disso, a Ucrânia não perdeu a oportunidade para utilizar foguetes de alta precisão equipados com munições de fragmentação do sistema norte-americano HIMARS, para atingir estas unidades enquanto montavam as pontes.
Russian Z-channels write:
— Anton Gerashchenko (@Gerashchenko_en) August 21, 2024
"After the destruction of bridges in the Kursk region, the AFU opened a hunt for pontoons installed by the Russian Armed Forces. They, unlike permanent bridges, can be destroyed by HIMARS strikes. Besides, the troops at the pontoons are an easy target… https://t.co/FfVPpm4lAY pic.twitter.com/ZcYeglIGYX
“A tentativa russa de criar travessias não vai funcionar, porque estão ao alcance da artilharia e da aviação ucraniana. A Rússia não vai conseguir apoiar logisticamente os militares na margem sul do rio e muito menos reforçá-los. Eles vão precisar de tudo, combustível, munições e medicamentos, e não vão ter”, explica Isidro de Morais Pereira, que sublinha que caso tenha sucesso, a Ucrânia quase que duplica a área conquistada em Kursk, que já ultrapassa os 1.250 quilómetros quadrados, ganhando mais 776 quilómetros quadrados.
Os alarmes de que a estratégia ucraniana estava a surtir efeito intensificaram-se na passada quinta-feira, quando vários bloggers militares russos começaram a reportar a queda da localidade de Krasnooktyabrskoye. Esta pequena vila na margem oeste do rio Seym era o último corredor terrestre que permitia à Rússia enviar todo o apoio logístico necessário às unidades que defendem a fonteira do outro lado do rio. Sem esta passagem e com as pontes terrestres completamente destruídas, esses soldados estão tecnicamente cercados.
Russian Telegram channels report that the AFU has taken control of the village of Krasnooktyabrskoye in Russia's Kursk region.
Thus, up to a thousand Russian military will be encircled. It is possible to leave the encirclement only through the Seim river, but the AFU destroy… https://t.co/VjxVu63SqB pic.twitter.com/bjbld3G2Ue
— Anton Gerashchenko (@Gerashchenko_en) August 22, 2024
A situação é semelhante ao cenário criado pela Ucrânia na cidade de Kherson, em setembro de 2022, durante a ocupação russa. Apesar de ter um número de militares considerável a ocupar a região, a Ucrânia tornou a manutenção logística deste território impossível para a Rússia. O então líder do exército russo, o general Surovikin, ordenou a retirada das tropas russas para o outro lado da margem, para que fossem ocupadas posições mais fáceis de defender com sucesso.
Domínio do céu
Mas em Kursk a Ucrânia conta com um fator que nem sempre esteve a seu favor ao longo da guerra: o controlo dos céus. A operação militar em Kursk foi planeada várias semanas antes de acontecer e um dos fatores tidos em conta pelas chefias militares ucranianas foi o inevitável contra-ataque russo. Kiev sabia que a Rússia dispunha de poucos meios terrestre naquela região, mas que estes contavam com um forte apoio aéreo. Por isso, o general Syrskyi ordenou um forte apoio antiaéreo na região. O resultado foi um Su-34 e um helicóptero Mi-28 abatidos logo nas primeiras horas. Imagens nas redes sociais mostram aeronaves russas a operar a baixas atitudes para evitarem ser detetadas pelos radares ucranianos.
De acordo com o Centro Ucraniano de Estratégias de Defesa, a Rússia publicou um vídeo onde mostra um ataque com bombas planadoras KAB que atinge as tropas russas. O erro russo, explica o think tank, acontece porque as aeronaves Su-34 que disparam estas munições estão a operar sem o apoio de aeronaves de reconhecimento e controlo como o A-50, Il-20 ou Il-22. Depois de ter perdido dois A-50, a Rússia tem apenas 10 aeronaves deste tipo disponíveis, que teriam de operar ao alcance dos sistemas de defesa S-200 da 138.ª Brigada de Mísseis Antiaéreos.
Esta realidade obriga as forças russas a operar, quase sempre, afastados da frente de batalha para não correr o risco de perder mais aeronaves. Por esse motivo, Moscovo tem dado prioridade a ataques noutras partes da frente, particularmente na região de Kharkiv. Ao mesmo tempo a Ucrânia tem feito esforços para detetar e eliminar a presença de equipamento de defesa antiaérea russos na região. Esta ação permitiu a que a Ucrânia esteja a utilizar a sua força aérea para atacar várias posições russas ao longo da linha da frente. Este cenário tem um profundo impacto no destino da margem sul do rio Seym, uma vez que impossibilita também qualquer tipo de fornecimento de equipamento por via aérea.
Ainda assim, as forças armadas ucranianas continuam focadas na conquista de território na frente de combate das áreas conquistadas. Nos últimos dias, unidades de elite dos paraquedistas ucranianos têm sido fotografadas a passar a fronteira para a Rússia. Em causa estão a 82.ª e 95.ª Brigadas de Assalto Aéreo, que se juntam a outras quatro brigadas e dois batalhões já empregues na região.
O número de militares utilizados por Kiev ultrapassa já os 15 mil, o que, quase três semanas depois do início da operação, pode revelar intenção de continuar a aproveitar o facto de a Rússia estar a utilizar tropas menos experientes no terreno.
Para os especialistas, a Ucrânia vai focar-se em consolidar as posições ganhas mais a leste, na região de Kursk, cavando já algumas trincheiras em vários locais da frente, embora ainda tente avançar e testar as defesas russas em várias direções. Se a Rússia não conseguir reconquistar este território até ao final de setembro, poderá ter dificuldades em fazê-lo antes de 2025, isto porque com a chegada das chuvas grande parte do território fica intransitável, o que dificulta grandes operações com blindados.
“A Rússia está a empregar aqui unidades essencialmente compostas por conscritos do serviço militar obrigatório russo, com sérias dificuldades operacionais. Os meios disponíveis para reagir com alguma capacidade operacional estão, neste momento, no Donbass”, refere o tenente-general Marco Serronha.
Os sinais que surgem da frente de combate dão a entender que a Rússia vai, para já, dar prioridade a outros setores da frente de batalha, enquanto tenta travar qualquer avanço ucraniano na província de Kursk. De acordo com um antigo oficial ucraniano e analista do grupo Frontelligence Insight, o exército russo está a contruir linhas defensivas a sul da central nuclear de Kursk, em Kurchatov. Através da análise de imagens de satélite, é possível verificar que as forças armadas russas estão a reforçar as trincheiras já existentes com troncos e tábuas de madeira. O grupo, que analisa a frente de batalha, acredita que a Rússia vai continuar a expandir estas fortificações, mas levanta sérias questões sobre a vontade de Moscovo em minar o seu próprio território.
Geospatial analysis from Frontelligence Insight reveals that Russian forces continue to build a defensive line in the Kursk region, located south and southwest of the Kursk Nuclear Power Plant in Kurchatov
— Tatarigami_UA (@Tatarigami_UA) August 23, 2024
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🧵Thread pic.twitter.com/gl9jk2n630
Muitos especialistas consideraram, no início da incursão, que o objetivo ucraniano era obrigar a Rússia a desviar da linha da frente o maior número de militares da região do Donbass e, dessa forma, aliviar a vantagem numérica que a Rússia tem encontrado na região. Mas não foi isso que tem vindo a acontecer e, na Rússia, começa a surgir o receio de que Putin estava prestes a anunciar uma nova vaga de mobilização militar.
Ao mesmo tempo, o regime russo iniciou uma nova campanha de propaganda junto dos meios de comunicação estatais e dos principais bloggers militares para que aceitem que a ocupação ucraniana vai durar vários meses e passou a ser “o novo normal”, de acordo com uma investigação do site de notícias independente russo Meduza. O propósito é justificar a situação como “temporária”, de forma a evitar que a população se sinta revoltada. No entanto, a notícia de que Ucrânia poderá em breve duplicar o território russo conquistado vai ter um forte impacto junto da população russa.
“Isto vai ter um impacto mediático na população russa. Torna-se mais difícil vender a ideia de que a guerra está a correr bem. Cada vez mais russos começam a achar que a guerra não está a correr bem. A elite começa a ver que os seus filhos correm o risco de servir na frente”, frisa o major-general Isidro de Morais Pereira.