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“As pombas da paz que gemem pelo compromisso a todo o custo escolheram ignorar a História”. Sérgio Sousa Pinto sobre a guerra (texto na íntegra)

24 fev 2023, 20:21

DISCURSO. "Aprendemos e temos o dever de não o esquecer: uma potência revisionista, confiante na sua força, não pode ser apaziguada, só pode ser dissuadida pela força, e, se necessário, enfrentada pelas armas."

Nota: este artigo reproduz o discurso de Sérgio Sousa Pinto no Parlamento português, a 24 de fevereiro de 2023, no primeiro aniversário da invasão da Ucrânia pela Rússia. A CNN Portugal retirou do discurso apenas os protocolares cumprimento inicial e agradecimento final dirigidos ao Presidente da Assembleia da República, membros do governo e deputados. A escolha das fotografias e suas legendas são da inteira responsabilidade da CNN Portugal.

 

Diz-se que o conhecimento da História previne a repetição dos erros cometidos no passado.

Mas não é nada garantido que o conhecimento da História, por si só, nos poupe à repetição e ao erro.

Há algo, no entanto, que só o conhecimento histórico, sem dúvida alguma, permite:  é contemplar, com dolorosa consciência, as consequências das lições não aprendidas com a experiência passada, a incapacidade de travar uma cadeia de acontecimentos que se repetem, semelhantes, inexoráveis, como há sessenta anos, diante dos nossos olhos e diante da nossa impotência.

A invasão da Ucrânia, desencadeada há um ano e ainda em curso, confronta-nos com essa responsabilidade perante a História e perante a experiência passada - a responsabilidade de aprender e de agir, a responsabilidade de não repetir o que não pode ser esquecido, a responsabilidade de dar sentido ao sofrimento dos que vieram antes de nós e que viveram os horrores do século XX.

Putin trouxe à Europa, de volta, o fatídico ano de 1938, o ano decisivo para a paz e para a guerra, que abriu as portas à mais trágica carnificina que a História regista, e que teve por palco principal o nosso martirizado continente, desde sempre o grande desestabilizador do mundo.

Cá estamos, portanto, outra vez em 1938. Vejamos, então.

3 de outubro de 1938. Ocupação nazi da Checoslováquia. A multidão faz a saudação nazi às tropas alemãs, que entram em marcha à passo de ganso em Friedland, na região dos Sudetas. Esta região foi cedida foi à Alemanha depois dos acordos de Munique. Foto Keystone/Hulton Archive/Getty Images

No outono de 1938, 36 divisões do exército alemão concentraram-se na fronteira que separava a Alemanha da Checoslováquia.

Seis meses depois a Checoslováquia, única democracia da Europa Central, tinha deixado de existir.

O pretexto da invasão foi a libertação das minorias germânicas, instaladas nos Sudetas desde a idade média.

A libertação de minorias – sejam elas alemãs, russas, sérvias ou outras – ontem como hoje, serve de justificação e pretexto para os maiores crimes e para quase todas as guerras de agressão.

As democracias europeias da época entregaram a Checoslováquia ao agressor. Julgavam, assim, servir a causa da paz, sacrificando quem queria defender-se e lutar, pelo seu direito a existir.

Chamberlain diria, hoje: “mas quem sabe onde fica a Ucrânia?”

1 de janeiro de 1938. Neville Chamberlain, primeiro-ministro do Reino Unido, é recebido pelo chanceler alemão Adolf Hitler para uma reunião em Godesburg, na Alemanha Nazi. Foto Bettmann via Getty Images

Comunicaram à Checoslováquia, simplesmente, que em caso de invasão não a ajudariam. Fizeram-no para apaziguar a potência expansionista e revisionista de então, a Alemanha nazi, e preservar a paz no continente. O resultado foi a reversão da ordem internacional pela força e uma guerra inimaginável, uma guerra de conquista, uma guerra anacrónica, uma guerra ao estilo de Gengis Khan.

Os povos livres que sacrificaram tudo à paz, não salvaram a paz e perderam a liberdade.

Aprendemos e temos o dever de não o esquecer: uma potência revisionista, confiante na sua força, não pode ser apaziguada, só pode ser dissuadida pela força, e, se necessário, enfrentada pelas armas.

As pombas da paz que, um ano volvido sobre a invasão da Ucrânia, gemem pelo compromisso a todo o custo, escolheram ignorar a História; fazem-no por ingenuidade, ódio persistente ao Ocidente, ou revanchismo contra as democracias, os regimes que saíram triunfantes da desordem do século XX.

Se a coragem e o sacrifício do povo ucraniano, bem como o apoio do Ocidente, fraquejarem, e a actual situação no terreno congelar de facto, ainda que não de jure, a Ucrânia como nação livre perecerá, como a Checoslováquia pereceu.

Uma Rússia que se estenda das portas de Odessa aos confins do Donbass, guardará as chaves de uma Ucrânia indefesa e praticamente inviável. Uma paz cujos termos sejam ditados pela Rússia de Putin será sempre uma paz provisória, uma paz que não valerá o papel em que for assinada, uma paz que apenas adiará o fatal desaparecimento da Ucrânia como Estado soberano.

A Rússia revisionista da ordem pós-soviética não pode ser aplacada. A Geórgia e a Crimeia dão disso testemunho. A Rússia, por ser mais forte que os seus vizinhos, como sempre foi e continuará a ser, desde o desmoronamento dos impérios centrais em 1918, não goza de nenhum direito sagrado de conquista, expansão e engrandecimento. Não tem direito a russificar pela força os seus vizinhos, por via da anexação ou por via da satelização, negando-lhes a plena soberania reconhecida a todos os Estados pela carta das Nações Unidas.

6 de abril de 2008. Vladimir Putin e George W. Bush, Presidente dos EUA, conversam à margem de uma reunião bilateral em Sochi, na Rússia. Nesse ano, em agosto, a Guerra na Ossétia do Sul daria o controlo da Geórgia ao regime russo. Foto Artyom Korotayev / Epsilon / Getty Images
17 de março de 2014. Cossacos instalam uma bandeira russa e uma bandeira da Crimeia no telhado do edifício da Câmara Municipal em Bakhchysarai, na Ucrânia. Após um referendo realizado na véspera, em que o resultado oficial ditou a vontade do povo da Crimeia de se separar da Ucrânia, o Parlamento da Crimeia declarou Independência e pediu formalmente à Rússia que os anexasse. Os países ocidentais declararam a ilegalidade dos referendos e não os reconheceram. Foto Dan Kitwood/Getty Images

O futuro da Ucrânia não será o de Estado tampão, em nome das velhas esferas de influência ditadas pelas políticas de poder do passado.

O destino da Ucrânia não é oferecer profundidade estratégica à Rússia, contra inimigos imaginários do Ocidente.

Assim como a Europa, ao contrário do que pensa Putin, não é um mosaico de Estados vassalos dos Estados Unidos.

A Europa está ciente das implicações inevitáveis da reversão da ordem internacional fundada no direito. Foi no direito que a Europa fundou as instituições necessárias para esconjurar as guerras totais do século XX, e para tornar impensável a sua repetição.

O direito internacional violado há um ano na Ucrânia é o mesmo direito de cuja efectividade depende a nossa segurança, e a de todas as nações e povos do mundo. Sobretudo dos menos poderosos; sobretudo das democracias, por regra os actores mais pacíficos na ordem externa.

A popularidade dos autocratas alimenta-se das aventuras e dos sucessos militares, pelos quais os fortes se impõem aos fracos, desde o princípio dos tempos.

As aventuras bélicas e as guerras de agressão são o remédio histórico dos autocratas para lidarem com o seu défice originário de legitimidade.

Buscam uma legitimidade pelos resultados, já que não pelo direito, incendiando as paixões da multidão, ressuscitando um sentimento doentio de grandeza nacional, que se alimenta da humilhação e do domínio sobre outros povos, do roubo dos seus territórios e do saque dos seus recursos.

Se quisermos a paz duradoura na Europa, temos que nos preparar para a eventualidade sombria da guerra, pois o direito internacional não dispensa a dissuasão, ou seja, a força e a disposição de a aplicar, em caso de desafio à ordem internacional fundada no direito.

A Ucrânia martirizada, ao fim de um ano de uma guerra que lhe foi imposta, e ao fim de um ano de apoio militar e económico que lhe tem sido consistentemente prestado pelas democracias, representa, portanto, a rejeição determinada e total das políticas de apaziguamento seguidas em 1938.

Pois o apaziguamento dos fortes, dos revisionistas e dos conquistadores é um exercício fútil, cujo fracasso inexorável é um dado da História. De uma Ucrânia avassalada e submetida sairia uma nova corrida aos armamentos, o fim das Nações Unidas, que seguiria o destino da sociedade das nações, bem como a ruína da ordem internacional pós-45, muito imperfeita mas assente no direito.

Temos que aceitar os sacrifícios necessários hoje, para poupar aos nossos filhos os sacrifícios muito piores de amanhã. Temos o dever de combater a lei da força, imposta sobre a letra, declarada morta, da carta da ONU.

Abril de 2022, Vlamidir Putin recebe António Guterres. A mesa comprida foi cenário de vários encontros bilaterais com líderes do ocidente, com o pretexto da distância de segurança por causa da pandemia Covid-19. A interpretação geral, contudo, foi a de desconsideração intencional por parte do Presidente da Rússia, neste caso ao secretário-geral da ONU. Foto Getty Images     

Se queres a paz, prepara-te para a guerra, preveniu o general romano Vegetius, há dois mil anos. É a primeira formulação da doutrina da dissuasão.

A paz armada é a única viável num mundo anárquico, refractário ao direito e eternamente ameaçado pelos instintos mais vis do Homem, hoje como no tempo de Vegetius.

Hoje falamos de segurança colectiva, a mais importante condição de paz, sem a qual a guerra apenas espera a sua oportunidade.

Putin afirmou que a guerra da Ucrânia tem um ano, sendo que as guerras de Pedro, o Grande, duraram mais de vinte. É lastimável que aqueles que vacilam, fazem contas, e professam a paz a todo o custo, não percebam que têm pela frente um homem com a mentalidade do século XVIII, e com outra relação com o tempo histórico.

A esses, diremos: os nossos adversários tomarão a vossa magnanimidade e o vosso amor à paz e ao diálogo como sinais de fraqueza; arrancar-vos-ão concessões e tempo, e cairão sobre vós quando estiverem seguros, pela força própria, de que já não terão que suportar o incómodo de protestar a sua boa-fé inexistente, em negociações fingidas.

É assim, como sempre foi.

Ao lado do povo sacrificado da Ucrânia, por quem há um ano ninguém verteria uma lágrima, e no qual ninguém depositava grande fé, a comunidade internacional resistirá à subversão do mundo que os nossos avós construíram para nós, sobre os escombros da ultima grande catástrofe.

Contra os conquistadores, e contra a falta de memória, pelo direito, pela liberdade autêntica dos povos, e pela paz duradoura na Europa e no mundo, o mundo em que os nossos descendentes viverão – um mundo seguro para a democracia.

Há quarenta anos, Mitterrand, confrontado com manifestações falsamente ingénuas, pela paz e pelo desarmamento, em tempos de guerra fria, disse o seguinte: “verifico que os pacifistas estão todos no ocidente e os mísseis no leste.”

21 de outubro de 1983. O Presidente francês, François Mitterrand, numa conferência de imprensa ao lado da primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher. Foto Bettmann via Getty Images

O que mudou, afinal, no mundo? Quem são, aqui e lá fora, como sempre, as mais vocais das pombas da paz?

Os direitos que a Ucrânia invoca constituem o fundamento da nossa própria liberdade.

Somos capazes de aprender com a História, cientes de que não somos mais virtuosos nem mais sábios que os nossos antepassados.

Fomos arrastados para o passado. Para um passado sombrio, que julgávamos morto e enterrado.

Porém, como um grande escritor nos advertiu, num dia particularmente inspirado: “o passado não está morto. Nem sequer passou.”

Volodymir Zelensky, Emmanuel Macron e Olaf Scholz num encontro de líderes europeus em Kiev. 16 junho 2022. Foto: Alexey Furman/Getty Images

 

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