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Os nossos idos de março ‒ e o que podemos aprender com César

18 mar 2022, 11:49
Júlio César morto na sua corte em Roma (J. L. Gerome)

No dia em que se comemora o famoso discurso de Marco António, há mais de dois mil anos em Roma sobre Júlio César (e que Shakespeare recriaria), Sebastião Bugalho escreve em registo ensaístico sobre a representação do homem e do seu assassinato por uma conspiração de senadores, que o apunhalaram em nome da República e da liberdade - que não sobreviria E de como "hoje, olhando à volta, não vivemos tempos assim tão diferentes".

Na manhã de 18 de março de 44 a.C., há já mais de mil anos, Roma acordou para se despedir de um homem. Como no nosso tempo, a incerteza enchia os pulmões dos romanos, que sentiam que o chão se mexia debaixo dos seus pés, sem saberem para que direção. Faltava trigo, devido aos insurgentes que subsistiam em Espanha e a chefes militares descontentes em África. Gaio Júlio César fora assassinado três dias antes, num anfiteatro à entrada do fórum, e o povo ainda não reagira ou tão-pouco compreendera. O cadáver do ditador, que recebera, por esta ordem, dois mandatos de um ano, um de uma década e outro, um ano antes, vitalício, fora passeando desde dia 15, do local do crime para a morada da sua família e daí de volta para o centro político da cidade.

Poderá ao leitor parecer inusitada a longevidade da recordação, mas convido-o a repensar. Volvidos dois mil anos, nenhuma outra figura de ação e de Estado marcou a identidade ocidental como a de César. Convivemos até hoje com o seu nome quando dizemos Czar ou Kaiser, quando nos sai uma das expressões que a sua era trouxe (“Chegar, ver e vencer”, “Os dados estão lançados”, “Um erro crasso”) ou quando adicionamos mais um dia a fevereiro, como ele implementou. Não é desprovido de senso procurar lições na sua história.

Foi hoje, mas há dois milénios, que Marco António, seu único cônsul e o mais fiel dos seus próximos, se dirigiu ao fórum para ler o testamento de Júlio César e proferir o seu elogio fúnebre. Para surpresa de António, César escolhera um anónimo rapaz de 18 anos, neto da sua irmã, como herdeiro, e não ele próprio, que combatera a seu lado desde a Gália. Apesar disso, António terá discursado com ardor e eficácia retórica. William Shakespeare ficcionou-o, imortalizando-o assim: “Amigos, romanos, compatriotas, cedam-me os vossos ouvidos. Venho enterrar César, não elogiá-lo. O mal que os homens fazem vive depois deles. O bem é frequentemente enterrado com os seus ossos. Assim seja com César”.

Marlon Brando como Marco António numa cena no filme "Júlio César" (Joseph Leo Mankiewicz, 1953), a partir de William Shakespeare, ao lado do corpo de Júlio César

Fiel ao sucedido ou não, o facto é que a multidão apinhada em redor de António, que estava politicamente isolado, e de César, que jazia fisicamente defunto, irrompeu em fúria. O testamento de César, que cedia os seus jardins privados à cidade e uma porção da sua fortuna a cada romano, talvez tenha facilitado a agulha a virar, três dias depois, a favor do seu luto e contra os seus assassinos: nada mais do que o senado de Roma. O corpo foi cremado ali, numa pilha improvisada de trapos, armaduras e vestimentas festivas. Estrangeiros também o choraram.

As primeiras lições dos Idos de Março podem ser retiradas, mais do que das artérias da sua conspiração, das consequências que dela jorraram.

Um grupo reduzido, mas poderoso, de senadores havia decidido matar Júlio César. Tinham de fazê-lo de forma rápida, contra o relógio, pois César partiria para a guerra em três dias ‒ no dia 18 em que António falou e que aqui recordo ‒ e a glória dessa guerra, bem como as distâncias a que o levariam, impeliam o ato a apressar-se. Foi isso que fizeram. Homens públicos, antigos camaradas de armas de César, velhos rivais que perdoara e reabilitara (“o clemente”, troçavam), peticionários que ignorou no próprio dia, comensais de sua casa. E fizeram-no debaixo do chapéu da “Liberdade”, da conservação das tradições da República e do caráter ambicioso do homem que recusava ser rei para ser simplesmente ‒ mas totalmente ‒ César.

É preciso entender que eles, que o fizeram, não estavam enganados quanto ao seu diagnóstico. A conspiração contra César não era motivada por nenhuma política pública por si proposta, mas pelo modo como concentrara os poderes em si, decidindo unipessoalmente em nome da eficácia, ultrapassando os órgãos colegiais do regime político romano e subvertendo os atos eleitorais que o caracterizavam e definiam. Os assassinos de César estavam a matar César para, a seu ver, salvarem a República, na ironia que é terem sido os mesmos senadores que repetidamente lhe haviam conferido a sua autoridade suprema. O senado, ao assassinar César, procurava corrigir o erro político que o próprio senado cometera. O problema é que César não era uma causa da falência do sistema político da República. Era uma consequência. A prova disso é que o seu desaparecimento não trouxe os princípios republicanos de volta, mas antes o prolongar da guerra civil e, catorze anos depois, uma autocracia personificada no tal herdeiro, Octávio César Augusto, primeiro imperador de Roma.

Erradamente, o senado quis matar Júlio César para salvar a República, acabando por matar a República e eternizar César, que daria nome a todos os que depois viriam. “A República não é nada mais do que um corpo sem nome ou forma”, dizia ele, ainda em funções. O seu erro foi julgar que os seus feitos militares, a sua popularidade e a extensão da sua influência chegavam para preencher o vazio que se tornara esse corpo “sem nome ou forma”. Não era, não foi, e 23 punhaladas fizeram questão de demonstrar-lhe isso. O erro da vintena de senadores envolvidos na conspiração ‒ os demais permaneceram imóveis até ao sucumbir do ditador ‒ foi julgar que seriam eles suficientes para ressuscitar o corpo, não de César, mas da República. Também não o foram. Tanto o assassinado quanto os assassinos foram ultrapassados pela História que as suas ações vieram apenas acelerar.

Roma. O corpo de Júlio César, transportado pelo fórum

Nos três dias que separaram o 15 de março, em que mataram César, do 18 de março, em que fizeram o seu funeral, o sistema político tentou tudo para impedir o caos. Todas as reformas e leis que César apresentara foram aprovadas por unanimidade e todos os senadores que o haviam assassinado foram absolvidos. Em troca, os mesmos que o haviam esfaqueado conferir-lhe-iam, horas depois, o estatuto de Deus e jurariam adorá-lo como “divino Júlio”.

A História, claro, é fértil nesse tipo de ironias. Os conspiradores, que acusavam César de ambição desmedida, não estavam igualmente isentos de ambições quando planearam depô-lo pela força. Marco António, que dedicou a sua carreira militar e política a servir aquele homem, acabou a anunciar que fora outro, e não ele, o escolhido para receber o seu legado. Meses antes, César recusara três vezes uma coroa de rei em público, não por repudiar o poder de um monarca, que já exercia, mas pelo falso desprendimento que o gesto representava. Na véspera da sua morte, Júlio César discutiu ao jantar que tipo de morte preferia e a resposta terá sido profética: “uma inesperada”. A vidente que lhe teria aconselhado a ter “cuidado com os Idos de Março” encontrava-se junto ao fórum, minutos antes da hora derradeira. “Os Idos de Março já chegaram”, ter-lhe-á dito com humor. “Mas ainda não foram embora”, ripostou ela. A sua mão, quando caiu sem vida na antecâmara do senado, continha um pergaminho que lhe fora dado no caminho; nele, uma denúncia do que estava a prestes a suceder. Em sua casa, um enviado fora convidado a ficar até ao seu regresso, precisamente por transportar uma mensagem urgente, que o poderia ter salvo. A faca que Crasso utilizou nesse dia foi a mesma, segundo Plutarco, com que cometeria suicídio na guerra civil que se seguiu. Cleópatra, do Egipto, que com ele tivera um filho, estava na cidade nesse dia e depressa se evadiu. Bruto, segundo Suetónio, foi o último a desferir um golpe, mas a frase que Shakespeare cunhou (“Et tu, Brute”) não tem suporte historiográfico.

O assassinato de Júlio César, no Senado de Roma

A verdade é que os relatos mais próximos dos Idos de Março que contamos como fidedignos foram escritos 150 anos após a sua ocorrência. Nem por isso o evento perdeu simbolismo ou valor seminal na nossa cultura. Júlio César viveu 56 anos e foi soldado, político, general, rebelde e estadista. A relevância da sua morte não se deve ao fim da sua existência na Terra, mas à certeza de que a ação humana, por mais poderosa que seja, não chega para contrariar a História quando esta está já em movimento. Num tempo em que qualquer um pode fazer qualquer coisa, tudo é possível. O fim da república romana foi fruto dessa anarquia.

Hoje, olhando à volta, não vivemos tempos assim tão diferentes.

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