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A História não tem protocolo, sr. primeiro-ministro

21 abr 2022, 19:46

A maior dificuldade daqueles que vivem momentos históricos é aperceberem-se disso mesmo: que os estão a viver. A linha que separa um momento na História de um momento que é História dificilmente é óbvia ou de identificação imediata. Dito de outro modo: é muito mais fácil, no futuro, apercebermo-nos do que foi História no passado do que, no presente, darmo-nos conta do que foi História hoje. Mas hoje foi História, meu caro leitor. Hoje é História.

O momento em que Volodymyr Zelensky discursou na Assembleia da República foi algo verdadeiramente histórico, que constará nos livros que contarão o tempo do nosso regime democrático e nas páginas da saga europeia. O presidente da Assembleia da República entendeu-o perfeitamente, proferindo uma intervenção exemplar, na qual deixou claro: “Estamos, sem hesitações nem ambiguidades, com a Ucrânia”. Augusto Santos Silva, ao evocar a dimensão humanista, democrata e europeia da Terceira República, não deixou espaço para dúvidas: “Defendendo-se a si própria, a Ucrânia defende-nos a todos nós”.

O primeiro-ministro, por sua vez, não abdicou de seguir o protocolo parlamentar e optou por quedar-se sentado, contrariamente às demais bancadas e tribunas, não aplaudindo nenhum dos discursos. O Presidente da República, que também encabeçou a sessão, lá olhou de soslaio para baixo, a ver se António Costa não deixava que a imagem do governo português para todo o mundo se ficasse pela imobilidade. Mas imóvel Costa ficou, ladeado por três outros membros do governo, igualmente inertes.

 

 

Não sendo minimamente plausível questionar a solidariedade ou o europeísmo do primeiro-ministro (que até gravata amarela levou), a perplexidade da vasta maioria dos espectadores é compreensível (e previsível era). Nem os portugueses nem a imprensa internacional têm de estar ao corrente da tradição parlamentar da Assembleia. E, independentemente disso, fica a questão: será o protocolo de importância superior ao que o parlamento hoje vivenciou? Tenho as minhas dúvidas.

O gesto ‒ ou a ausência dele ‒ foi, no fundo, mais uma demonstração da profunda dissonância entre o sentimento nacional (de profunda empatia com a luta ucraniana pela Liberdade) e as nossas lideranças nacionais. Desde Rui Rio, que pede cautela com as sanções à Rússia, a Costa, que só irá a Kiev “se o convidarem”, os protagonistas políticos tardam em reconhecer a inquebrável ligação entre democratas que a guerra trouxe à superfície ‒ e, em especial, que ela se estende até nós, portugueses. Seja no Orçamento do Estado, onde o investimento na Defesa foi deitado por terra, ao discurso de Zelensky, em que o primeiro-ministro foi sentado pelo protocolo, os políticos portugueses ainda não perceberam que a História está à sua frente. E que ninguém é indiferente a ela.

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