Soldados estrangeiros estiveram “quatro dias miseráveis” quase sem dormir, sob artilharia e infantaria pesada russa.
Kevin, um americano atarracado de 30 e poucos anos, escala os escombros carbonizados de uma antiga sauna e acende a luz do seu iPhone através da poeira.
"Vamos ficar por aqui, porque este fio está intencionalmente amarrado a alguma coisa e enterrado mesmo aqui", avisa. "Muitos russos voltaram a alguns destes lugares e minaram-nos, puseram armadilhas."
Kevin faz parte de um grupo de veteranos das forças especiais estrangeiras de elite, composto principalmente por americanos e britânicos, que se alistaram para ajudar a causa ucraniana. Diz que, em março, o grupo passou quatro dias no spa – que eles chamavam de "a casa do inferno" - muitas vezes a apenas 50 metros das tropas russas. Aquela foi, diz, a posição mais avançada mantida pelos ucranianos em Irpin, um subúrbio nos arredores de Kiev, enquanto as forças russas tentavam avançar para tomar a capital.
O subúrbio outrora rico é agora sinónimo de supostos crimes de guerra russos - um local de peregrinação para dignitários visitantes que abriram caminho pelas ruas marcadas por bombas. Kevin diz que ele e os seus homens foram os primeiros a testemunhar aqui ataques a civis.
Apesar de uma carreira como ex-agente antiterrorista de alto nível dos Estados Unidos, servindo no Iraque e no Afeganistão, Kevin diz que foi aqui na Ucrânia que enfrentou os combates mais intensos da sua vida.
E diz que ele e os seus novos camaradas de armas implementaram muitas das táticas de guerrilha que foram usadas contra militares americanos em lugares como o Iraque e o Afeganistão. Os insurgentes são agora eles.
"Tudo é muito mais descentralizado", explica. "Táticas de pequenos grupos são definitivamente uma grande vantagem aqui."
Não estamos a usar o nome completo de Kevin devido à natureza do seu trabalho na Ucrânia e para protegê-lo contra represálias russas.
"Estar agora deste lado, e ouvir as conversas deles nos rádios - e eles sabendo, ok, eles estão por aí em algum lugar, não sabemos onde ou quem são - definitivamente há uma vantagem nisso", diz.
'Experiência de combate real'
Como muitos veteranos militares, Kevin diz que se sentia à deriva desde que deixou o campo de batalha há vários anos. Tinha um emprego a tempo inteiro nos EUA, mas desistiu quando o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, fez no início da guerra um apelo a combatentes estrangeiros experientes. Chegou ao oeste da Ucrânia, foi levado para Kiev e estava na linha de frente da batalha pela capital numa questão de horas.
Juntou-se à Legião Internacional da Ucrânia, lançada pelo governo nos primeiros dias da guerra. O governo paga, a si e aos seus colegas, um salário modesto entre dois e três mil dólares por mês [entre 1.870 2.810 euros], embora eles digam que gastaram muito mais do que isso a comprar equipamentos. A Legião Internacional até tem o seu próprio site, instruindo aspirantes a recrutas estrangeiros sobre tudo, desde como entrar em contato com a embaixada ucraniana até ao que levar.
Naquelas primeiras semanas, o governo lutou para eliminar os pretendentes e os turistas de guerra que estavam fora de pé. Até 6 de março, haviam recebido mais de 20 mil pedidos, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros.
O número de combatentes estrangeiros agora na Ucrânia é um segredo de Estado, mas um porta-voz da Legião Internacional disse à CNN que a "simbiose" significa que "as probabilidades de vitória da Ucrânia aumentaram muito".
"Os melhores dos melhores juntam-se às Forças Armadas da Ucrânia", disse o coronel Anton Myronovych à CNN. "São estrangeiros com experiência real de combate, são cidadãos estrangeiros que sabem o que é a guerra, sabem manejar armas, sabem destruir o inimigo."
Pela primeira vez na sua vida, Kevin estava a defender-se contra a invasão de um inimigo mais bem equipado. Ele, não o inimigo, era quem tinha de preocupar-se com ataques aéreos. Não havia um plano-mestre, nem apoio aéreo - e não haveria evacuação em caso de desastre.
"Foi como um filme", diz ele. "Foi uma insanidade desde o início. Começámos a ser alvo de tiros indiretos -- tiros de armas leves. E eu estava numa camionete, a conduzir pela rua."
"Havia tanques e acima de nós havia helicópteros. E podiam ouvir-se os jatos russos a voar. E nos campos abertos os helicópteros russos estavam a deixar tropas. E então você fica tipo: 'Uau!' Isto é muita coisa."
Kevin e os seus colegas estavam na extremidade recetora do fogo de artilharia. Durante as batalhas no Afeganistão, Iraque ou Síria, estes soldados estrangeiros convocavam ataques aéreos e bombardeamentos de artilharia. Nunca souberam como era estar na extremidade recetora.
Kevin conta que, diante da realidade da batalha, muitos estrangeiros decidiram partir. "É quando eles dizem: 'Talvez isto não seja para mim.' A primeira vez que a rajada chega a 20 metros é a primeira vez que você fica tipo 'Oh, m*rda'", conta.
Dia após dia, Kevin e os seus amigos concluíram que também estavam a ficar fartos. Então chegava o dia seguinte, com novas ordens e novas missões, e eles viram-se a permanecer. Mais tarde, diz, acabaram na sauna e no complexo do ginásio, onde se esconderam durante quatro dias, mesmo quando o prédio se desintegrou lentamente sob o bombardeamento russo.
"Nós chamámos-lhe a casa dos horrores, porque era literalmente um pesadelo estar lá", diz. "Foram quatro dias realmente miseráveis de muito pouco sono, artilharia muito pesada, presença de infantaria muito pesada dos russos. Não importava quantas pessoas removíamos do seu lado, eles continuavam a vir."
Ele e os outros estrangeiros ficaram "chocados", diz ele. "Mas os militares ucranianos estavam... calmos, tranquilos, controlados. Como se dissessem, 'Isto é normal, não se preocupem com isto'."
Ele está espantado com os esforços dos soldados ucranianos.
"Eles são mestres da negação do terreno", diz. "Conhecem cada centímetro da área. Conhecem o beco que podemos ter à espera. Sabem como chegar lá. Sabem que é aqui que nos podemos esconder. Sabem para qual o prédio para onde ir. E eles vão dizer-te antes de chegares lá, ei, ei, cinco casas à frente há uma cave muito boa. É para lá que devemos ir”.
'Tudo estava a pegar fogo'
Kevin caminha pelo que resta do prédio, que foi devastado pelo fogo. No ginásio, os halteres deformaram-se sob o calor extremo. A borracha das placas de peso derreteu.
"Isto era uma cadeira", diz, apontando para uma armação de metal. "Estávamos a sofrer ataques de artilharia tão pesada que colocámos esta cadeira aqui para que pudéssemos saltar por esta janela se tivéssemos pressa."
Quando uma folha de telhado ondulado solto bate lá fora com o vento, ele dá um salto.
Num momento durante o impasse, diz, as tropas russas estavam tão perto que, deitados no chão na noite escura, eles podiam ouvir o vidro a ser esmagado sob os pés do inimigo. E, no entanto, ele tem a certeza de que tomou a decisão certa ao vir para a Ucrânia. "Tornou-se cada vez mais evidente para nós que esta era a coisa certa a fazer", diz. "Tudo estava a pegar fogo. A artilharia não parava. Já tínhamos visto civis a serem simplesmente assassinados."
Ele concorda que houve ambiguidade moral nas guerras no Iraque e no Afeganistão.
"Realmente, resume-se ao bem contra o mal", diz. "Você ouvirá os ucranianos chamarem os russos de 'Orcs'. É porque, para eles, é um símbolo do bem contra o mal, como em O Senhor dos Anéis - a luz contra a escuridão", contou.
"Os russos sabem exatamente o que estão a fazer. Eles têm instrução. Eles têm redes sociais, notícias", diz. "Nunca descobri porque eles estavam a matar mulheres e crianças. E não foi por acidente. Foi assassinato. Encontrámos muitas pessoas no fim da rua que foram amarradas, baleadas, atiradas na beira da estrada, atropeladas por tanques. Simplesmente bárbaro. Porque motivo?"
A Rússia negou repetidamente as alegações de crimes de guerra e afirma que as suas forças não têm civis como alvo. A procuradora-geral da Ucrânia, Iryna Venediktova, está a investigar milhares de casos de supostos crimes de guerra russos em todo o país, e o principal procurador de crimes de guerra do Tribunal Penal Internacional viajou para a Ucrânia para investigar.
Kevin diz que sente que envelheceu cinco anos nos últimos três meses. Não sabe como explicar aos seus amigos em casa o que está a viver aqui. Nem sabe se quer explicar.
Mas sabe que a Ucrânia "está onde eu deveria estar" e planeia ficar no país no futuro próximo.
"Vimos isto acontecer várias vezes na história. As pessoas estão sempre a questionar-me, 'Oh, essa não é a tua luta.' Ou, ‘O que estás a fazer aí?' Sim, mas não foi a nossa luta muitas vezes na história. E depois foi. Não é o teu problema até ser o teu problema."