ANÁLISE. Especialistas consideram que o timing do discurso "não é ao acaso" e que a referência às armas nucleares é uma "operação psicológica para causar medo nas populações"
O presidente russo Vladimir Putin anunciou esta quarta-feira a mobilização militar parcial de 300 mil homens para a guerra na Ucrânia. Num discurso inflamado, o chefe de Estado voltou a justificar a necessidade da ‘operação militar especial’ para “libertar” o Donbass, e mencionou pela primeira vez, de forma explícita, a ameaça do recurso a armas nucleares.
Em reação às palavras do líder russo, a comentadora da CNN Portugal Helena Ferro Gouveia afirma que o discurso “não constituiu uma surpresa” e que a mobilização parcial de 300 mil soldados na reserva é uma “assunção do mau planeamento e das derrotas perante a Ucrânia”. “É um sinal de que guerra está para durar”, afirma a especialista.
Visão partilhada por André Matos, professor de Relações Internacionais da Universidade Portucalense, que diz que o discurso foi “expectável”. “Obviamente que não iria reconhecer qualquer fragilidade no plano da ‘operação especial’, que deverá deixar de ser uma ‘operação especial’ para tomar outra configuração”.
Os analistas destacam também a necessidade que Putin teve em justificar a invasão da Ucrânia. “Nota-se um tom bastante passivo-agressivo. Há uma necessidade de justificar, de continuar a alimentar uma guerra de três dias que dura há 200”, diz André Matos. Por seu turno, a comentadora da CNN Portugal Sónia Sénica releva que a mensagem do presidente russo não foi só para o Ocidente, mas também para a opinião pública doméstica. “As medidas agora anunciadas, quer da mobilização de reservistas, quer do investimento significativo na indústria militar, vão exigir esforços da sociedade russa. É para justificar a opção por esta via mais militarizada da sua política”, considera.
Referência ao armamento nuclear é “operação psicológica para causar medo”
Os três especialistas são unânimes quanto à menção de Putin ao uso de armas nucleares: não passará das palavras. “Acredito que Putin, apesar deste desejo de conduzir a guerra durante mais tempo e alcançar os objetivos que definiu, vai ser muito prudente no uso do armamento nuclear. Ele sabe que um ataque nuclear ou com armas químicas levaria a uma resposta do Ocidente, ao qual ele não tem capacidade militar para responder. É uma operação psicológica para causar medo nas populações”, explica Ferro Gouveia.
André Matos refere que continua a acreditar “que as referências da questão nuclear se manterão no plano discursivo, como arma de arremesso retórica”. “Tenderia a dizer que não ultrapassarão essa dimensão retórica pelas consequências que a sua utilização acarretaria”, vaticina o professor.
Sónia Sénica destaca, por sua vez, a “verbalização da primeira pessoa” do discurso sobre as armas nucleares no presidente russo. “Esta ameaça estava a ser proferida por vários representantes do círculo restrito do Kremlin. Agora, estamos no patamar da high politics, é o próprio presidente Putin que fala da questão da ameaça nuclear e que todo o potencial do país será disponibilizado para a defesa dos interesses da Rússia, seja no espaço pós-soviético, seja num escalar de conflito com o Ocidente ou a NATO.
Timing do discurso “não será ao acaso”
André Matos considera que a altura para proferir a declaração não foi escolhida “ao acaso”. “Temos visto várias intervenções como reação a algo que esteja a ocorrer no Ocidente, não me parece que seja uma coincidência”. Sónia Sénica aponta que o discurso do presidente “serve para tirar o foco” da Assembleia-Geral da ONU, que é “uma estratégia do Ocidente alargado para responsabilizar a Rússia pelo que está a acontecer na Ucrânia, mas sobretudo tentar fazer com que países que estão no nicho de neutralidade alinhem nas sanções e na condenação à Rússia”.
Por seu turno, Ferro Gouveia destaca o “simbolismo” de um discurso belicista proferido no Dia Internacional da Paz. “Se há coisa que os russos apreciam é o simbolismo”.
Sobre a mobilização parcial, Sónia Sénica considera que a “bem-sucedida” contraofensiva ucraniana forçou o presidente russo a tomar esta decisão, dado que “tem minado não só aquilo que é uma concertação de estratégia militar no terreno, mas sobretudo a confiança de Putin face às chefias militares e diferendos com o ministro da Defesa”. “Ou avançaria para uma alteração e uma reorganização da estratégia militar, ou optaria por aquilo que Erdogan já avançou que é estar disponível para, de acordo com as condições exigidas pela Rússia, avançar para o plano das negociações”. A investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais destaca também o “tom jocoso com que as perdas militares russas na Ucrânia” são vistas”, algo que “não é bem entendido junto do Kremlin e do presidente russo” e que levou a que fosse tomada esta “estratégia diferenciadora” não só com o reforço do armamento e equipamento militar, como também pelo “acelerar do processo dos referendos” nas regiões anexadas.
“Putin trata a Ucrânia como uma marioneta”
Ao longo da declaração, Vladimir Putin acusou a Ucrânia de estar condicionada pelo Ocidente a não aceitar negociar com a Rússia o fim das hostilidades. Para Helena Ferro Gouveia, este facto demonstra que o presidente russo “trata a Ucrânia como uma marioneta e não um país soberano com vontade própria”. “A Ucrânia demonstrou boa vontade ao longo deste processo, sempre houve algum realismo do lado ucraniano. Naturalmente que após os crimes de Irpin e Bucha, e agora de Izium, a posição ucraniana é diferenciada. No entanto, Kiev nunca foi uma marioneta, é um país soberano com desejo próprio”, considera a comentadora.
A especialista em assuntos internacionais destaca também dois aspetos do discurso do presidente russo. “É irónico [Putin] dizer que a Ucrânia é um regime nazi, tendo em conta que a Rússia está a ser apoiada por um grupo paramilitar, o grupo Wagner, que conta nas suas fileiras com nazis assumidos, conhecidos pelos seus métodos cruéis. Não deixa de ser interessante, também, que o maior país do mundo em extensão territorial se sinta ameaçado pelos seus vizinhos quando, em consequência das suas ações e da guerra, tenha visto a fronteira com a NATO aumentar em milhares de quilómetros”.
Sónia Sénica destaca ainda a perceção que os russos têm de Putin. “Ao contrário do que se pensa no Ocidente, o índice da popularidade de Putin é muito elevado entre a sociedade russa, há um apoio claro. A ação externa da Rússia fundamenta-se no plano doméstico, este apoio legitima essa ação. A liderança russa considera-se no direito de defender o país e isso tem muito impacto na sociedade.”