Putin está a cometer os mesmos erros que condenaram Hitler quando invadiu a União Soviética

CNN , John Blake
3 abr 2022, 14:53
Prisioneiros e soldados alemães de países do Eixo amontoam-se contra os ventos cortantes do inverno russo em fevereiro de 1943, após a derrota do exército alemão em Estalinegrado. DR / CNN

ANÁLISE. Historiadores militares dizem que Putin está a seguir a malfadada cartilha de Hitler em pelo menos três áreas. E isso é estarrecedor

O presidente russo, Vladimir Putin, evoca muitas vezes a derrota épica que a União Soviética impôs à Alemanha nazi durante a Segunda Guerra Mundial para justificar a invasão da Ucrânia pelo seu país. No entanto, segundo explicam académicos e historiadores militares, Putin está a cometer alguns dos erros que condenaram a invasão alemã da URSS em 1941 - enquanto usa “truques e táticas de Hitler” para justificar a sua brutalidade.

Esta é a ironia selvagem por detrás da decisão de Putin de invadir a Ucrânia, que fica clara quando a guerra entra no seu segundo mês: o líder russo, que se apresenta como um estudante de História, está a tropeçar porque não prestou atenção suficiente às lições do "Grande Guerra Patriótica" de que é reverente.

"Estou a tentar entender isto há um mês, porque, por mais terrível que Putin seja, nunca poderia dizer que ele era ilógico", afirma Peter T. DeSimone, professor associado de História da Rússia e do Leste Europeu na Universidade de Utica, em Nova Iorque. "Tudo isto é ilógico, e isso é assustador", acrescenta. "Isto não é normal em face do ele fez no passado. Isto não faz sentido nenhum a muitos níveis, e não apenas em relação à Segunda Guerra Mundial."

Há, é claro, diferenças significativas entre a atual guerra na Ucrânia e o confronto entre a Alemanha nazi e a União Soviética. A máquina de guerra nazi era formidável, ágil e bem treinada. A Wehrmacht matou e feriu 150 mil soldados do Exército Vermelho na primeira semana da sua invasão, em junho de 1941. Tomaram o controlo de vastas áreas de território e, num "mega-cerco", prenderam quatro exércitos soviéticos, capturando 700 mil prisioneiros de guerra.

Soldados soviéticos a lutar nas ruas de Estalinegrado, em outubro de 1942.

E não há equivalência moral entre Josef Estaline, o ditador soviético, e o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky. Estaline era um sociopata (uma vez enfiou a mão numa jaula e matou um papagaio de estimação de uma família porque o seu chilrear o irritava), que matou milhões de ucranianos de fome e assassinou rivais políticos como rotina. Zelensky é um líder democraticamente eleito que reuniu ucranianos e inspirou o mundo com as suas notáveis demonstrações de coragem e defesa eloquente da democracia.

Mas, olhando mais de perto para as lutas de Putin na Ucrânia, vêem-se paralelos irónicos. Historiadores militares dizem que Putin está a seguir a malfadada cartilha de Hitler em pelo menos três áreas.

Putin esqueceu-se de uma regra básica de guerra

Há muito tempo que os tanques provocam pavor nas tropas inimigas. Quando os britânicos introduziram os primeiros tanques pesados ​​durante a Primeira Guerra Mundial, os soldados fugiram aterrorizados. A Ucrânia, porém, tornou-se, de acordo com uma notícia recente, um "cemitério de tanques russos". Os soldados ucranianos estão a usar tudo, desde drones até mísseis Javelin, para destruir comboios de tanques.

Mas os tanques russos foram bloqueados por outro motivo surpreendente: falta de combustível. Essa falta de combustível é parte de um problema maior. O outrora alardeado exército russo ficou atolado na Ucrânia não apenas por causa da resistência feroz, mas também por algo mais prosaico: logística.

Fumo sobe de um tanque russo destruído ao lado de uma estrada na região de Lugansk, na Ucrânia, em 26 de fevereiro de 2022.

Putin tem lutado para alimentar, abastecer e equipar o seu exército. Houve relatos de tropas russas a saquear bancos e supermercados, tanques a ficar sem combustível e soldados a usar formas precárias de comunicação militar - como “smartphones” -, o que contribuiu para o que a Ucrânia garante ser a morte de pelo menos sete generais russos.

"As pistas sugerem que Putin pensou que poderia obter uma vitória rápida com o envio de forças especiais e unidades aerotransportadas", diz Ian Ona Johnson, professor de História Militar da Universidade de Notre Dame. “Quando eles foram forçados a ir para uma guerra muito mais tradicional, envolvendo essencialmente a maior parte do exército russo ao longo da fronteira ucraniana, não estavam preparados para algumas das componentes logísticas”.

O deficiente planeamento logístico também desempenhou um papel crítico na derrota da Alemanha nazi na frente oriental, onde Hitler esperava uma vitória rápida

O exército alemão não conseguiu estabelecer linhas de abastecimento suficientes para as grandes distâncias e para os terrenos acidentados da União Soviética. Os tanques alemães ficaram sem combustível. As consequências desse mau planeamento logístico seriam fatais quando o inverno russo chegou.

Hitler não equipou muitos dos seus soldados com roupas de inverno, porque achava que o exército soviético era muito inferior. Os soldados alemães foram forçados a lutar em temperaturas geladas enquanto ainda vestiam os uniformes de verão, com alguns deles a usar jornais e palha para se protegerem do frio.

"Isso revelou-se devastador quando um inverno russo particularmente brutal se instalou", diz Johnson. "Algo como 250 mil soldados alemães acabaram por sofrer ferimentos por congelamento ou morreram de frio naquele inverno, por causa de problemas logísticos."

Soldados ucranianos fazem patrulha ao lado de um tanque russo destruído na vila de Lukianivka, perto de Kiev, em 30 de março de 2022.

O exército alemão atingiu o ponto mais baixo na batalha de Estalinegrado, considerada o ponto de viragem da Segunda Guerra Mundial. Aí, os soldados alemães mal equipados foram forçados a comer cavalos, cães e ratos para sobreviver ao inverno.

A escala dos combates na Ucrânia hoje não se aproxima dos da Frente Oriental, mas a lição de ambas as guerras pode ser resumida numa máxima militar atribuída a Omar Bradley, general americano da Segunda Guerra Mundial:

“Amadores falam de estratégia. Profissionais falam de logística”

Putin alienou aliados potenciais

Numa guerra já cheia de imagens comoventes, uma fotografia pode ser o pior.

É uma foto assustadora de uma mulher ucraniana grávida, com roupas rasgadas, a ser carregada numa maca. A mulher está consciente, com a mão embalada protetoramente sobre o ventre nu, manchado de sangue. Tanto ela quanto o seu bebé mais tarde morreriam dos ferimentos. Autoridades ucranianas dizem que ela estava numa maternidade na cidade sitiada de Mariupol quando foi bombardeada pela artilharia russa.

Ucrânia: grávida e filho morrem após ataque à maternidade de Mariupol

A imagem ressaltou no que alguns comentadores agora dizem ser a abordagem padrão de Putin para a guerra: está a matar indiscriminadamente civis para quebrar a vontade do povo ucraniano.

O exército russo foi acusado de bombardear hospitais, centros comerciais, prédios de apartamentos e um teatro com a palavra "crianças" escrita em russo no exterior do prédio. A Rússia também foi acusada de tentar submeter uma cidade ucraniana à fome, bloqueando a ajuda humanitária.

A brutalidade do exército russo, no entanto, está a ter o efeito oposto, escreveu Maria Varenikova a partir de Lviv, na Ucrânia, num artigo recente para o The New York Times. "Se há uma emoção avassaladora que domina a Ucrânia agora, é o ódio", escreveu Varenikova. "É uma amargura profunda e fervente contra o presidente Vladimir V. Putin, os seus militares e o seu governo."

Na guerra, a brutalidade pode sair pela culatra.

Putin tem aliados potenciais na Ucrânia. A Rússia e a Ucrânia são duas nações eslavas que partilham laços religiosos e culturais. Muitos ucranianos têm parentes na Rússia e falam a língua. E, historicamente, tem havido mais fidelidade à Rússia na parte oriental do país.

Mas a brutalidade indiscriminada de Putin contra os civis está a unir os ucranianos como nunca antes uniu. Um comentador chamou ao ódio o "tesouro escondido" na guerra, porque pode sustentar a resistência durante gerações.

A brutalidade indiscriminada de Hitler contra civis soviéticos também desempenhou um fator crucial na sua derrota. Hitler tinha muitos aliados potenciais na União Soviética. Muitos soviéticos desprezavam e temiam Estaline, que assassinava opositores políticos como rotina, executava líderes militares e perseguia cidadãos soviéticos. Assassinou cerca de quatro milhões de ucranianos, deixando-os passar fome durante um período infame conhecido como Holodomor.

Foi por isso que alguns soviéticos acolheram inicialmente Hitler como um libertador e deram presentes de Natal a algumas tropas alemãs.

Mas o tratamento brutal de Hitler aos civis rapidamente endureceu a resistência soviética. As tropas alemãs saquearam e mataram de fome as cidades russas até a submissão. Cercaram judeus soviéticos e outras minorias, disparando sobre eles ou envenenando-os em carrinhas de gaseamento móvel. A propaganda nazi ensinou aos alemães que os soviéticos eram genericamente eslavos "mongolizados" inferiores, que mereciam a morte ou a escravização.

"Os nazis não eram uma força de ocupação; eram desde o início uma força de extermínio", diz DeSimone, historiador da Universidade de Utica.

Estaline era tão odiado que cerca de um milhão de soviéticos serviram no exército alemão, diz Johnson, o historiador de Notre Dame. A brutalidade de Hitler destruiu qualquer hipótese de aproveitar os simpatizantes soviéticos para enfraquecer a resistência soviética, diz Johnson.

"Em vez de tirar vantagem de um grande número de pessoas que poderiam simpatizar, ou pelo menos pensar que os alemães eram melhores que os soviéticos", diz ele, "Hitler rapidamente alienou todos esses grupos".

Putin está a usar a linguagem de Hitler para justificar a guerra

Vladimir Putin na celebração do oitavo aniversário da anexação da Crimeia pela Rússia, no estádio Luzhniki, em Moscovo, a 18 de março de 2022

No verão passado, Putin publicou um longo ensaio intitulado "Sobre a unidade histórica de russos e ucranianos", que procurava explicar que havia uma divisão artificial entre os dois países, e que "a verdadeira soberania da Ucrânia só é possível em parceria com a Rússia".

A linguagem usada por Putin fez alguns historiadores estremecerem. Segundo disseram, Putin fez eco da mesma retórica que Hitler usou em "Mein Kampf", a autobiografia e o manifesto político do ditador. O livro de Hitler estava repleto de história distorcida sobre a grandeza perdida da Alemanha, conspirações globais que teriam minado o poder da Alemanha e justificações para a conquista de outro grupo de pessoas.

"Assim como o Fuhrer, o Presidente da Rússia lamenta a tragédia que se abateu sobre a sua terra natal, um antigo império, e também quer voltar atrás no tempo", escreveu Avi Garfinkel, repórter do jornal israelita Haaretz, num artigo intitulado "Como a agenda de Putin na Ucrânia evoca o Mein Kampf de Hitler."

Esta pode ser uma das ligações mais perturbadoras entre Putin e Hitler. Alguns críticos de Putin dizem que ele está a usar linguagem nazi e técnicas de propaganda para justificar a invasão da Ucrânia. Eles compararam o "Z" inscrito nos tanques russos com um símbolo usado pelos nazis nos campos de concentração. Outros compararam um grande comício de guerra recente, que Putin liderou num estádio de Moscovo, com cenas de um discurso de Hitler num infame filme de propaganda nazi, chamado "O Triunfo da Vontade".

Adolf Hitler discursa aos soldados num comício nazi em Dortmund, Alemanha.

Algumas das reações mais fortes à retórica de Putin derivam de sua afirmação de que o exército russo está a lutar pela "desnazificação" da Ucrânia e que pretende proteger as pessoas que foram "abusadas pelo genocídio do regime de Kiev".

Timothy Snyder, uma das principais autoridades em história da Europa Central e do Holocausto, diz que a afirmação de Putin sobre a "desnazificação" é "grotesca", porque ele está a tentar justificar a invasão de um país democrático - liderado por um presidente judeu, que perdeu parentes no Holocausto - alegando que está lá para lutar contra os nazis.

Snyder chama à justificação de Putin uma variação da Grande Mentira de Hitler – uma técnica de propaganda nazi que insiste que, se um líder político repetir uma inverdade colossal vezes suficientes, as pessoas acabarão por acreditar nela.

“Adolf Hitler tinha alguns conselhos de relações públicas: conte uma mentira tão grande que as pessoas não vão acreditar que você tentaria enganá-los numa escala tão grande”, escreveu Snyder num ensaio intitulado “Os truques e táticas do estilo de Hitler de Putin na Ucrânia."

Ao contar mentiras, de que a Ucrânia é governada por nazis empenhados no genocídio, Putin está a escarnecer das pessoas que sobreviveram ao Holocausto, diz Snyder, autor de "Sobre a Tirania".

Imagem de propaganda nazi, mostrando tropas alemãs a serem saudadas como libertadores em Riga, Letónia, durante a Segunda Guerra Mundial.

No entanto, a aceitação da Grande Mentira por Putin também pode sair pela culatra. Num país onde os ancestrais de muitos cidadãos morreram no Holocausto, invocar tal tragédia histórica para justificar a guerra só pode tornar alguns ucranianos mais determinados em defender a sua pátria.

Talvez seja por isso que alguns ucranianos já não chamam Putin de presidente russo.

Eles chamam-no de "O Novo Hitler".

O que poderá ser a maior ironia de todas

Sabemos o resultado da invasão de Hitler. A União Soviética acabou por destruir a máquina de guerra nazi. Os soviéticos, mais do que qualquer país, foram responsáveis ​​pela derrota da Alemanha nazi. Hitler cometeu suicídio quando as tropas russas se aproximaram de seu bunker em Berlim, em 1945.

Estima-se que 26 milhões de soviéticos morreram durante a Segunda Guerra Mundial. Um deles foi o irmão de dois anos de Putin, Viktor, que morreu depois de o exército alemão sitiar uma cidade russa, bloqueando a entrega de comida e água.

Não sabemos como a guerra na Ucrânia terminará. Putin ainda pode prevalecer. Ele poderá dividir a nação e aproveitar os recursos ricos em energia do leste da Ucrânia e consolidar o seu domínio na costa do país, de acordo com alguns analistas.

Artilharia alemã nas ruas de Estalinegrado em 1942, bombardeando uma fábrica que teria sido usada pelos soviéticos como base para contra-ataques.

E sabemos que, na guerra, nenhum lado tem o monopólio da brutalidade. Um grupo de extrema-direita com um histórico de tendências neonazis desempenhou um papel crucial na resistência ucraniana. Houve soldados ucranianos acusados ​​de disparar sobre prisioneiros russos.

Mas se a Ucrânia de alguma forma preservar a sua independência e o seu território, algo pode acontecer que pode levar a uma das maiores ironias de todas.

Uma vitória ucraniana será retratada como outra Grande Guerra Patriótica. Os ucranianos vão comemorar a vitória do seu país em desfiles e com monumentos. E Putin já não será saudado como um líder astuto e ousado, que restaurou a grandeza da Rússia manipulando peças de xadrez num palco global.

Ele será visto como um louco, cuja arrogância e brutalidade o levaram a cometer os mesmos erros cometidos pelo ditador que ele dizia desprezar.

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