Putin é de esquerda ou de direita? "É mas é um ditador"

2 mar 2022, 08:12
Vladimir Putin (AP Images)

Uma análise ao pensamento ideológico de Vladimir Putin

Esteve à frente do Governo russo entre 2000 e 2008, quatro anos depois retomou o cargo de presidente - que mantém até aos dias de hoje. Uns elogiaram os seus avanços - nomeadamente a invasão da Crimeia em 2014 -, entre eles o maestro Valery Gergiev, afastado este ano da Orquestra Filarmónica de Munique. Já outros, como Boris Nemtsov - um dos grandes opositores de Vladimir Putin -, falam (ou falaram) num sistema político marcado por falta de transparência, nepotismo e corrupção. Nemtson foi assassinado em 2015. 

Putin "não respeita a democracia liberal em que nos revemos na maioria das forças políticas ocidentais", diz André Freire, politólogo e professor de Ciência Política no ISCTE-IUL. "Não se trata de esquerda ou direita, trata-se de ser um ditador". André Freire diz que o presidente da Rússia liquida os opositores, prende manifestantes e dirige um país cuja democracia é "um simulacro muito dissimulado". "Ninguém tem dúvidas de que não há democracia na Rússia." 

O politólogo sublinha ainda que os princípios da democracia, dos direitos humanos e do liberalismo - "comuns a todos os partidos de esquerda e de direita" - não têm espaço na agenda política de Putin - nem esses nem "o comunismo". E a propósito de comunismo: André Freire, questionado sobre o facto de o PCP não condenar abertamente o regime russo nem Putin, afirma tratar-se de "miopia política". "É uma espécie de nostalgia sentida por um bloco comunista de uma União Soviética que não existe há muito tempo."

Caminho para o populismo transnacional

José Filipe Pinto, investigador da Universidade Lusófona e autor do livro "As europas e os novíssimos príncipes", refuta as leituras que têm sido feitas sobre as ideologias políticas de Putin. Defende que é um populista - "e se é um populista importa saber em que grupo se enquadra". 

De acordo com este politólogo, Vladimir Putin é um "populista cultural ou identitário", olha para o povo como "os verdadeiros russos" e acredita que as fronteiras do seu país são "invioláveis". O seu comportamento aproxima-se cada vez mais de um "populismo transnacional", pelo que o conceito "verdadeiros russos" não se circunscreve a fronteiras geográficas mas engloba também as comunidades "russófilas" que estão espalhadas pelo antigo bloco de leste. Lugansk, Donetsk, Crimeia, Geórgia, todas assentam nesta ideia: fazem parte da Rússia. Para Putin, "as fronteiras de interesse são mais amplas”.

As consequências deste populismo "putinista" estão à vista em casos como o da Ucrânia. Acaba por interferir fortemente na política dos países externos. "É um populismo muito difícil de parar", aponta José Filipe Pinto. 

Sharp power vs. hard power

As relações internacionais são divididas em três eixos: polemológico, que diz respeito à guerra; economicista, que corresponde à economia; normativo, correspondente ao direito. José Filipe Pinto explica que, apesar de a Rússia ser responsável pela segunda maior exportação mundial de armas, possui uma economia ao nível da de Espanha ou da de Itália. "Não é o elemento económico que está em causa, mas sim uma política expansionista" - e na base desta política está o fantasma do império russo e uma União Soviética adormecida. 

José Filipe Pinto diz que, para perceber a mentalidade da Rússia, é preciso perceber "o medo das estepes". "Todas as invasões que sofreu vieram pelo Ocidente." Por consequência, e baseado no seu populismo, Putin "tenta afastar ao máximo as suas fronteiras culturais dessa civilização". É também neste sentido que surge uma marcada aversão à NATO. 

Três conceitos de poder existentes desde 2017 ajudam a "desmistificar" vários momentos marcantes da história. O politólogo explica-os: "A Rússia e a China especializam-se no sharp power", isto é, o recurso ao soft power - diplomacia - para alcançar os efeitos do hard power - guerra - sem, no entanto, darem um único tiro. O objetivo desta técnica, que já influenciou eleições em França, nos EUA e até o próprio Brexit, é "conquistar o público, influenciando as suas decisões sem pressão". A pergunta que ainda se impõe é: porque invadiu a Ucrânia? "Houve descontinuidade do sharp power", esclarece José Filipe Pinto. "Putin não teve mais paciência e quis resultados mais imediatos", que por sua vez implicaram o hard power.

Junto de França, por exemplo, a Rússia manteve a técnica inicial. Recorde-se que no ano passado surgiram rumores de que a mulher de Emmanuel Macron seria transgénero. De acordo com o politólogo, estas teorias da conspiração terão sido ainda promovidas pela propaganda russa. "O que interessava era surtir efeito na opinião pública com estes boatos", explica. E quem é Macron senão "um grande defensor de um exército comum europeu", aquele que Putin desacredita? "Em articulação com a NATO, torna-se uma ameaça." 

Para concluir, José Filipe Pinto afirma que "populismo não é uma ideologia", mas recorre a várias ideologias consoante lhe convém: socialista, marxista, liberalista, conservadora, "o que interessar no momento".

Putin não é Deus, "sente-se protegido" por ele

Houve líderes mundiais que se imaginaram Deus. Já Putin "sente-se protegido por Deus", o que remonta para a Igreja Ortodoxa Russa, religião exercida pelo império da Constantinopla e a principal do império Russo. 

A Igreja Ortodoxa Russa vê-se como a "Mãe Rússia" e há uma ligação "mais do que espiritual" entre esta e Vladimir Putin. "A igreja continua a encarar-se como a terceira Roma que não cairá - e as invasões das quais foi alvo também vieram do ocidente". Para José Filipe Pinto, o presidente da Rússia considera-se "protegido e abençoado". A nível interno dispõe de um grande capital de confiança. Podia ter-se virado contra a igreja? "Podia, mas aliou-se à terceira Roma, porque não cairá", salvando a imagem de uma Rússia imperial como outrora foi. 

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