Putin doente e Zelensky russo. 10 mitos sobre a guerra em que a Rússia e a Ucrânia quiseram que acreditasse

15 ago 2022, 18:24
Um rapaz espreita pela janela de um carro que faz parte do comboio humanitário com civis evacuados da região de Mariupol. Foto: Chris McGrath/Getty Images

Ambos os lados se têm esforçado a difundir informação de defesa do seu lado e ataque ao inimigo, muitas vezes caindo em contradições e informações falsas

Desde o início dos combates no terreno, a 24 de fevereiro, que a guerra na Ucrânia se tem travado também no campo da informação. Tanto russos como ucranianos difundem conteúdos, muitos deles não verificados e alguns comprovadamente falsos, no sentido de minar a confiança do adversário e desenhar uma narrativa sobre a guerra favorável ao seu lado.

Grande parte delas surgem do Kremlin, que já mesmo antes da invasão tinha começado a apresentar várias teorias não confirmadas como a de que os Estados Unidos têm laboratórios para desenvolver armas químicas na Ucrânia. Trata-se de um mito. Com o prolongar da guerra, essas informações falsas aumentaram, surgindo cada vez mais também do lado ucraniano, que, numa tentativa de motivar as suas tropas, apresenta várias informações sem verificação.

O projeto NewsGuard, que se dedica a verificar a veracidade das informações sobre a guerra, já identificou um total de 252 páginas web que, de alguma forma, publicaram ou disseminaram informações falsas sobre a guerra, vindas tanto de um lado, como do outro. Estes websites incluem meios de comunicação ligados ao estado russo, mas também plataformas independentes ou até motores de pesquisa sem aparentes relações governamentais.

A maioria destas páginas está em inglês (118), tendo sido ainda identificados domínios em francês, alemão ou italiano. A CNN Portugal questionou o NewsGuard sobre a existência de websites semelhantes em língua portuguesa, mas a plataforma disse não saber da existência de tais páginas.

Mito n.º 1 - A Rússia só ataca alvos militares

É mais do que certo que tanto Ucrânia como Rússia atingiram alvos civis nos mais de 170 dias de guerra, estando mesmo em investigação centenas de casos de crimes de guerra cometidos desde a invasão.

Moscovo afirma que as suas armas, que diz serem de alta precisão, apenas se destinam a alvos militares, uma teoria que tem sido amplamente divulgada por várias páginas, nomeadamente pelas agências estatais TASS ou RIA Novosti, que utilizam uma linguagem claramente pró-Kremlin.

A verdade é que a Amnistia Internacional já registou vários ataques por parte do exército russo contra civis na Ucrânia. Exemplos disso foram os casos de Kramatorsk ou Vinnytsia, cidades onde dezenas de civis morreram em ataques que atingiram zonas como bairros residenciais, uma estação de comboios ou paragens de autocarro.

Míssil que atingiu estação de comboios em Kramatorsk (Andriy Andriyenko/AP)

Mito n.º 2 - Uma base da NATO em Odessa

Um dos grandes motivos que a Rússia alega para ter invadido a Ucrânia é o de que Kiev se estaria a preparar para aderir à Organização do Tratado Atlântico Norte (NATO, na sigla original).

A ajudar a essa teoria, vários websites pró-russos referiram, ainda em dezembro de 2021, que a Aliança Atlântica tinha uma base naval em Odessa, importante cidade portuária da Ucrânia, no Mar Negro.

Embora a NATO tenha confirmado uma maior presença de barcos naquela região, a organização negou que essa estratégia incluísse uma base naval.

“Os navios da NATO operam diariamente no Mar Negro, de acordo com a lei internacional, normalmente patrulhando as águas durante dois terços do ano”, pode ler-se numa nota que está disponível no website da organização.

De resto, bases militares da NATO não são permitidas na Ucrânia, de acordo com a constituição da própria aliança. E não existem provas de presença de aliados em bases naquela zona.

Mito n.º 3 - Os laboratórios dos Estados Unidos na Ucrânia

É uma das teorias mais referidas pela Rússia, e que também está constantemente presente em meios de comunicação ligados a Moscovo. De acordo com todas as informações independentes disponíveis, os Estados Unidos não têm laboratórios para desenvolvimento de armas biológicas na Ucrânia.

Esta informação tem sido referida vezes sem conta pela Rússia, juntamente com a hashtag #USBiolabs. Essa teoria, que começou por volta de 2016, defende que os norte-americanos têm vários laboratórios do género em vários locais da Europa de leste, incluindo na Ucrânia.

Na verdade, os Estados Unidos até colaboram, desde 2005, com laboratórios ucranianos, mas a intenção é precisamente a oposta: tentar limitar a ameaça do bioterrorismo através de salvaguardas, nomeadamente pela modernização dos meios ucranianos, até então muito obsoletos uma vez que a maioria vinha da era soviética.

Mito n.º 4 - Quantas vezes pode morrer Bernie Gores?

Já morreram dezenas de milhares de pessoas desde que a guerra começou, muitas delas de nacionalidades estrangeiras. Logo no início, uma conta falsa da CNN Internacional no Twitter noticiou que o norte-americano Bernie Gores teria sido a primeira vítima da invasão.

A publicação, que foi feita por uma conta entretanto suspensa, mostrava uma fotografia de um homem, alegando que teria morrido na Ucrânia. “Os nossos pensamentos estão com a família do ativista Bernie Gores, que morreu por causa de uma mina plantada por separatistas pró-Rússia”, dizia.

Curiosamente, este é um nome já conhecido. É que, de acordo com outro tweet publicado anteriormente, Bernie Gores já teria morrido a 16 de agosto, aquando da retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão.

O caso motivou mesmo a CNN a esclarecer, em março, que “ambos os tweets são falsos”. O nome deste homem é utilizado com frequência, e sempre com ligação à CNN. Bernie Gores voltou a "morrer" no ataque perpetrado por Salvador Ramos a uma escola primária na cidade de Uvalde, no Texas. Também aí a informação foi falsa.

Mito n.º 5 - Uma base militar disfarçada de hospital

Ficará conhecida como a cidade-mártir, que acabou por cair várias semanas após um cerco brutal das forças russas. Mariupol, onde fica um dos portos mais importantes do Mar Negro, foi bombardeada de forma incessante por separatistas e tropas russas. Hoje está dentro do território conquistado pela Rússia.

Um dos alvos dos bombardeamentos foi a uma maternidade, atingida a 9 de março. O ataque aéreo à unidade de saúde causou 17 feridos, e foi confirmado pela Organização Mundial de Saúde.

Grávida retirada após ataque à maternidade de Mariupol (Evgeniy Maloletka/AP)

A Rússia disse que ali estava uma base militar para o exército ucraniano e outros radicais, como o Batalhão Azov. Aproveitando imagens captadas pela agência Associated Press, a embaixada russa no Reino Unido afirmou que uma mulher retirada dos escombros era uma atriz, defendendo que tudo não passava de uma encenação de Kiev. Tratava-se de uma mulher grávida, que foi fotografada a deixar o local numa maca. A jovem acabaria por entrar em trabalho de parto no dia seguinte ao ataque e ser mãe de uma menina, soube-se depois.

As informações de Moscovo, amplamente reproduzidas pela imprensa e outros websites pró-Kremlin, eram falsas. A mulher não era a atriz que a Rússia dizia ser, mas sim uma civil.

Mito n.º 6 - Putin doente

O presidente da Rússia viajou, em março, até ao centro de treinos da Aeroflot, companhia de aviação do Estado russo. Horas após a visita surgiram várias imagens, amplamente partilhadas pelo lado ucraniano, a sugerir que Vladimir Putin não tinha estado no evento, afirmando mesmo que as imagens em vídeo do momento tinham sido feitas com recurso a Photoshop. A ideia era insinuar que a saúde do chefe de estado russo não seria a melhor.

Apesar de até serem conhecidos casos em que a Rússia manipulou imagens, o vídeo em questão é mesmo real, de acordo com o NewsGuard, que deita por terra a teoria de que Vladimir Putin estaria num cenário com um fundo verde, como se faz nos estúdios de televisão.

O jornalista da BBC Shayan Sardarizadeh, que se especializou na identificação de conteúdos falsos, mostrou como esta alegação não corresponde à verdade.

Vários utilizadores e websites pró-Ucrânia divulgaram e partilharam o vídeo, mas uma das falhas apontadas, que envolvia um microfone, foi identificada como um erro na imagem.

Do lado contrário surgiram informações semelhantes, envolvendo o presidente da Ucrânia e, igualmente, cenários falsos e fabricados.

Mito n.º 7 - Zelensky russo?

O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, tem sido um dos principais alvos da propaganda russa. Entre as muitas teorias propaladas, surgiu uma em que o chefe de estado ucraniano é apontado como russo, pelo que estaria de forma ilegítima no cargo.

A informação, que depois foi amplamente partilhada, foi divulgada por um antigo político ucraniano que é pró-Rússia. Ilya Kiva publicou, no seu Telegram, uma imagem de um passaporte russo com a cara de Volodymyr Zelensky.

Passaporte de Zelensky (Telegram de Ilya Kiva)

Os meios de comunicação e os websites pró-russos apressaram-se a difundir essa informação, que mais tarde foi confirmada como falsa, nomeadamente pela agência alemã dpa, que referiu que a imagem utilizada terá sido fabricada com recurso a um programa de computador.

Além disso, várias incongruências estavam no passaporte em questão, nomeadamente a data, que indicava que o documento tinha sido emitido em 2003, o que ia contra as informações da publicação, que falava num documento de 2001.

Mito n.º 8 - Cruz Vermelha a traficar crianças

Pouco depois da captura da cidade de Mariupol pela Rússia, o Comité de Investigação da Federação Russa anunciou, através do Telegram, que estava a analisar um vídeo em que se mostravam vários registos de órgãos de crianças saudáveis em instalações da Cruz Vermelha.

A mesma publicação dava conta de que haveria uma investigação sobre “os crimes do regime de Kiev”. Páginas pró-russas como o Tsargrad avançaram com essa informação, acusando a Cruz Vermelha de tráfico de órgãos de crianças.

O caso ganhou dimensão e motivou a organização a emitir um esclarecimento no qual garantia que tudo era falso: “outra alegação inequivocamente falsa”, dizia o comunicado.

Além disso, a própria Cruz Vermelha garantiu à organização StopFake, que se dedica a verificar informações falsas na Ucrânia, que nenhum dos seus voluntários tinha recolhido dados médicos sobre crianças.

Mito n.º 9 - As imagens falsas do navio Moskva

Foi uma das primeiras grandes vitórias da Ucrânia na guerra. A destruição do navio Moskva, uma importante embarcação da armada russa, deu azo a várias teorias, até porque as (poucas) imagens que se obtiveram do caso deixaram muito por explicar.

Rapidamente, surgiu um vídeo no Twitter que mostrava uma alegada explosão do navio, numa publicação que teve grande repercussão, e que foi utilizada com a descrição: “o momento em que o Moskva foi atingido”. As imagens chegaram também à rede social TikTok, onde tiveram mais de 16 milhões de visualizações.

Alguns websites pró-Ucrânia partilharam as mesmas imagens, mas a agência AFP esclareceu que aquele vídeo era de um navio norueguês atingido em 2013, e que tinha sido publicado no YouTube nesse mesmo ano, com o título “Norwegian Navy Test Missile Strike”.

Se o ataque foi verdadeiro, e até confirmado por autoridades dos Estados Unidos, este vídeo não correspondia a esse momento.

Mito n.º 10 - Quem atacaou o teatro de Mariupol?

De volta a Mariupol, onde aconteceram vários episódios que vão marcar esta guerra. Um deles foi o bombardeamento a um teatro que no interior tinha centenas de civis, entre eles crianças.

O ataque foi dirigido pelas forças russas, mas o Ministério da Defesa da Rússia disse o contrário, acusando o Batalhão Azov, que defende o lado ucraniano, do ataque.

“Refugiados que fugiram de Mariupol informaram os nazis do Batalhão Azov de que havia civis no interior”, dizia a mesma informação, que foi publicada pela TASS e pela RIA Novosti.

Destroços após ataque ao teatro de Mariupol (AP)

Sobre o caso, a agência Associated Press, mas também a Human Rights Watch e a Organização para Segurança e Cooperação na Europa, vieram esclarecer que a Rússia foi a verdadeira culpada pelo ataque.

Entre os 23 sobreviventes entrevistados pela agência norte-americana, nenhum deles referiu a existência de soldados ucranianos no interior. “Isso refuta as denúncias russas de que o teatro foi demolido por forças ucranianas”, pode ler-se no esclarecimento da Associated Press.

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