O bombardeamento ucraniano - o maior desde que começou a guerra segundo o Kremlin - acontece dias depois de Vladimir Putin ter anunciado mudanças da sua doutrina nuclear que pretendiam travar este tipo de ataque
A resposta de Kiev não demorou a chegar. Poucos dias depois de o presidente russo, Vladimir Putin, ter anunciado a mudança da doutrina russa para permitir a utilização de armas nucleares em retaliação a contra-ataques convencionais apoiados por potencias nucleares, a Ucrânia pôs a teoria à prova e lançou o que Moscovo diz ser “o maior ataque de drones” ucranianos desde o início da guerra. Mais de 120 drones sobrevoaram os céus russos e atingiram aeródromos e bases militares russas, alguns deles a 600 quilómetros da fronteira.
O principal ataque ucraniano teve como alvo um depósito de munições russo em Kotluban, na região de Volgogrado. Este ataque, que envolveu diversos ramos das forças armadas ucranianas, teve como objetivo atingir um carregamento de mísseis iranianos que tinha chegada um dia antes, de acordo com o Estado-Maior General das Forças Armadas da Ucrânia. Imagens partilhadas nas redes sociais mostram um incêndio nesta localização.
An ammunition depot of the Russian army was allegedly destroyed in the village of Kotluban in the Volgograd region of Russia. Local authorities do not confirm this; according to their version, the grass was burning due to the fall of a downed UAV pic.twitter.com/57moZGHqtZ
— NEXTA (@nexta_tv) September 29, 2024
Fonte dos serviços secretos ucranianos revelou ao jornal Kyiv Post que o ataque foi organizado pela Inteligência Militar da Ucrânia (HUR), as Forças de Operações Especiais (SSO), o Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU), o Serviço de Inteligência Estrangeira da Ucrânia (SZRU), as Forças Armadas da Ucrânia (AFU) e tinha como objetivo intensificar a escassez de munições russas.
De acordo com Andriy Kovalenko, chefe do Centro de Combate à Desinformação do Conselho Nacional de Segurança e Defesa da Ucrânia, a localização atacada pelas forças armadas ucranianas estavam a ser utilizadas pela Rússia para armazenar mísseis de longo alcance iranianos e respetivos lançadores.
Várias fontes russas relatam que os habitantes da região ouviram fortes explosões e presenciaram um grande clarão quando se deu a explosão inicial. O ataque é confirmado pelo sistema de monitorização de fogos da NASA, o FIRMS, que registou três pontos de incêndio perto do depósito de munições. Uma imagem de satélite tornada pública pela Radio Svoboda mostra uma vasta extensão de território queimado nos arredores do depósito de armamento.
Overnight, special forces of the Ukrainian army struck the Russian ammunition depot of Kotluban, Volgograd region. Iranian ballistic missile parts and launchers were stored at the site, according to Andriy Kovalenko.
— (((Tendar))) (@Tendar) September 29, 2024
Pictures from locals and the NASA FIRMS map confirm that a… pic.twitter.com/89fUmP8qD0
Esta não foi a primeira vez que o armazém foi atacado pela Ucrânia. O depósito de munições de Kotluban sofreu um ataque de drones em novembro do ano passado e em março deste ano. As explosões fizeram vários vagões de comboio descarrilar e um tanque de combustível explodiu.
Nas últimas semanas, a Ucrânia tem intensificado ataques contra depósitos de munições russos. As forças armadas ucranianas destruíram três grandes arsenais russos, em particular a unidade 11777 em Toropets, na região de Tver. A explosão inicial deste ataque foi de tal forma grande que provocou um enorme cogumelo de fumo e chamas que fez soar repetidamente os alarmes nos monitores sísmicos.
Mísseis Iskander e Tochka-U, bem como outros bombas aéreas e munições de artilharia de vários calibres, incluindo munições de fabrico norte-coreano estariam a ser guardadas nesta instalação. Estima-se que esta base militar a norte de Moscovo seja uma das maiores do país, com capacidade para guardar 22 mil toneladas de explosivos, um número idêntico ao maior depósito de munições da Europa, a base de Cobasna, na Transnístria. A dimensão das explosões foi registada inclusive pelo sistema de deteção de fogos da NASA, o FIRMS, que mostra que nenhuma parte da base escapou ao ataque.
Os ataques foram de tal forma graves que o Kremlin apressou-se a anunciar algumas das medidas da nova doutrina nuclear que está a ser preparada há vários meses. Numa reunião do Conselho Nacional de Segurança russo, Vladimir Putin, anunciou que o novo documento prevê que um ataque de um estado não nuclear que envolvesse ou fosse apoiado por um estado nuclear como um "ataque conjunto contra a Federação Russa" e, dessa forma, poderia levar a Rússia a retaliar com armas nucleares.
A notícia fez temer que estes ataques maciços contra alvos militares no interior do território russo pudessem levar o Kremlin a tomar a decisão de retaliar com um ataque nuclear, uma vez que Moscovo acusa o ocidente de partilhar com a Ucrânia informações secretas fundamentais para o planeamento destes ataques. A informação surge também numa altura em que Kiev pressiona cada vez mais a Casa Branca para aceitar o pedido para levantar as restrições para atingir alvos militares em território russo com armas de longo alcance ocidentais.
Mas para os especialistas, pouco muda em termos concretos. As doutrinas nucleares são escritas de forma suficientemente vaga de forma a dissuadir possíveis agressões. No entanto, estas não são leis e a decisão final está sempre na ponta dos dedos do presidente. Nesse sentido, o verdadeiro impacto da medida está no seu anúncio e não nas alterações que este provoca.
E parecem ter razão. Questionado por jornalistas russos acerca da enorme quantidade de drones utilizado nos ataques da madrugada de domingo – que dizem ser o maior desde que começou a guerra e já depois do anúncio da mudança da doutrina nuclear russa - Dmitri Peskov, porta-voz do Kremlin, disse que “não há uma necessidade especial de apelar a esse documento”, referindo-se à doutrina nuclear russa, garantindo que a “operação militar especial” corre como “habitual” e não há necessidade para utilizar armas nucleares.
Putin's spokesman Peskov explained that massive drone attacks on Russia are not grounds to use Russia's new nuclear doctrine.
Duly noted. https://t.co/JhdFmX5ny9 pic.twitter.com/1jyX71cAQ9
— Anton Gerashchenko (@Gerashchenko_en) September 30, 2024
O antigo conselheiro presidencial ucraniano Anton Gerashchenko, que já tinha acusado a Rússia de fazer “um novo bluff nuclear”, diz que a resposta de Peskov demonstra que estes ataques ucranianos não são motivo para uma retaliação nuclear, sublinhando que a Ucrânia está “a tomar notas”. Por outras palavras, a estratégia ucraniana de atacar alvos militares e refinarias bem no interior do território russo parece estar longe de ficar por aqui.