"Primeiro temos de perceber como é que sobrevivemos". Há lições da guerra na Ucrânia que estão a deixar o exército português "em desassossego"

26 out, 08:00
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ENTREVISTA || Nas vastas planícies ucranianas, onde o gigante exército russo tenta ocupar território, técnicas militares "ancestrais" estão em choque com a inovação vertiginosa das novas tecnologias. Ao longe, o exército português observa e toma notas. Em entrevista à CNN Portugal, o brigadeiro-general José Freire, comandante da Brigada de Intervenção portuguesa, fala sobre as mudanças na filosofia de comando, a autonomia dos escalões mais baixos, a criatividade no campo de batalha e de uma adaptação que, por vezes, acontece mais lentamente do que o desejado

Como é que o exército está a olhar para as profundas transformações que estão a acontecer no campo de batalha, particularmente na Ucrânia? 

O que verificamos na Ucrânia é a introdução de novos meios e novas tecnologias. Continuamos a ver aquilo que é o legado do século XX, as viaturas blindadas, o apoio aéreo, a artilharia, tudo isso continua presente. A novidade foi a introdução de sistemas aéreos não tripulados, que também não eram uma novidade, porque já existiam a nível estratégico. Os mísseis Tomahawk americanos que conseguiam entrar pelas janelas dos edifícios iraquianos. Essa capacidade de atacar com precisão uma determinada infraestrutura já existia. A grande novidade na Ucrânia foi que essa capacidade chegou aos mais baixos escalões. Não na forma de um míssil, mas numa carga explosiva que pode ser dirigida contra o homem, a viatura ou a trincheira.

E isso é que veio trazer uma novidade, porque com essa capacidade veio também a capacidade de observarmos em tempo real o que se está a passar à nossa frente, que também era uma capacidade exclusiva das grandes potências, de nível estratégico e político. Recorde-se do presidente Obama, seguiu em tempo real a captura do Osama Bin Laden. Hoje, um capitão comandante de uma companhia que comanda cem homens, ou mesmo um comandante de um pelotão que comanda 30, tem a capacidade de estar a ver em tempo real, de cima para baixo, onde estão os seus militares e a assistir ao combate.

O campo de batalha tornou-se mais transparente?

A zona de ninguém, aquele espaço entre trincheiras, tem cerca de 15 quilómetros, porque é a distância que os sistemas aéreos não tripulados dos baixos escalões conseguem alcançar. Este espaço é permanentemente vigiado e altamente difícil de atravessar sem ser atacado. Estamos muito atentos a isso. Mas não somos só nós portugueses, a NATO e todos os países do mundo estão sempre atentos ao que se passa. Até porque hoje as imagens dos ataques russos e ucranianos são partilhadas diariamente na internet. Hoje nós temos capacidade de ver imagens quase em tempo real.

Mas como é que nos estamos a adaptar? 

Muito lentamente, muito lentamente. E isso é que às vezes é um pouco preocupante. A preocupação do exército, neste momento, é dotar os baixos escalões de drones. Hoje os drones não são uma coisa que fica ao nível do batalhão. Estamos a tentar passar essa tecnologia até à unidade mais pequena, porque o que vemos é que, hoje, na linha da frente essa capacidade existe. 

O que toda a gente na NATO percebeu é que as necessidades e os timings de aquisição de equipamento militar não se compadecem com a urgência com que precisamos de treinar. Não somos só nós, mesmo os americanos optam por comprar sistemas comerciais para conseguir massificar o uso desses sistemas e trazer essa experiência a todas as unidades, aos baixos escalões.

A ideia é dotar o pelotão de forma autónoma com um sistema aéreo não-tripulado que lhe dê capacidade de reconhecimento e queremos a capacidade de ataque. No que toca à capacidade de ataque temos o drone dotado de uma carga explosiva e que é kamikaze, ataca e explode. Por outro lado, temos o de lançamento de carga, o bombardeiro.

Nesta guerra observámos o regresso de algumas práticas que se pensaram ultrapassadas para o combate moderno, como a utilização de trincheiras…

A partir de meados de 90, o treino em trincheiras foi algo que deixámos de fazer, porque as missões que nos eram pedidas nos Balcãs e nas operações de contrainsurgência no Afeganistão, não nos obrigavam a defender dessa forma. Numa situação convencional, a trincheira é algo ancestral para me proteger de contra-ataques inimigos. 

O exército passou a treinar a limpeza de trincheiras, numa perspetiva ofensiva. Mas também temos de ser capazes de nos organizar defensivamente, cavando e criando condições de proteção. Não só a trincheira com cobertura superior, capaz de ocultar as vistas, mas também capaz de me proteger de fogos de artilharia, bem como de ataques aéreos de sistemas não-tripulados.

Criaram-se programas de treino de forma mandatória em espaços confinados em trincheiras, mas também em áreas edificadas.

Também vemos os carros de combate e vários veículos blindados a serem destruídos com alguma facilidade por drones significativamente mais baratos. É a morte do veículo blindado na frente?

Não é ainda a morte do carro de combate, porque a necessidade de ter uma plataforma que nos dê a capacidade de nos movermos com proteção e com poder de fogo é intemporal. No entanto, neste momento, a ameaça sobre essa capacidade é superior à sua capacidade de defesa. Por isso é que nem russos nem ucranianos ousam empregar meios blindados.

Mas já começam a surgir soluções tecnológicas que inibem as frequências onde os drones operam, bem como sistemas de energia dirigida, micro-ondas, que tornam o sistema inoperante. No entanto, estas são soluções caras, mas que daqui a alguns anos poderão estar no terreno.

O exército está a fazer alguma coisa no sentido de proteger os seus veículos blindados destas ameaças?

Estamos a desenvolver um projeto onde estamos a criar uma rede para as nossas viaturas, mas nós assumimos que aquilo não evita que o drone impacte a viatura. O que queremos é que, já que vai impactar, que o faça onde há mais blindagem e não de cima para baixo. A viatura fica danificada? Fica. Há possibilidades de feridos? Há. Mas não com a severidade que teria caso o drone atacasse diretamente de cima para baixo. Nós temos o protótipo e já o testámos. Nós tivemos o treino de experimentação. Fizemos um protótipo, pusemos drones a ir contra ele, filmamos, fizemos ali umas estatísticas.

Para contrariar essa ameaça, tanto russos como ucranianos começaram a empregar pequenas unidades móveis com motas todo-o-terreno…

Qualquer coisa que aparece na 'terra de ninguém' no espaço de meia dúzia de minutos é detetada e poucos minutos depois é destruída. Durante a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha criou uma solução a esse impasse com a criação de pequenas seções de infantaria especializadas, conhecidas como tropas de choque. Essas pequenas unidades iam progredindo e sempre que encontravam oposição, contornavam a oposição. Um pouco como um rio ou um curso de água que quando encontra uma pedra, passa ao lado.

O que os russos estão a fazer com as motas é isso, mas fazem-no com motas para garantir velocidade e reduzir o seu tempo de exposição aos drones ucranianos. Essas tropas, que tudo indica não foram devidamente treinadas, seguem em missões quase suicidas à procura de brechas nas linhas defensivas ucranianas. Por onde eles não sofrem resistência, é por onde eles vão.

E como é que o exército português olha para esse desenvolvimento? Estão a pensar em introduzir unidades motorizadas no exército?

Não, não me parece. Os exércitos ocidentais estão a pensar trazer novamente a mota, mas na forma elétrica. No entanto, não creio que se vá constituir unidades motorizadas para fazer ataques. Embora o uso de viaturas táticas ultraligeiras seja uma realidade nas operações especiais. Não creio que se venham a constituir unidades puras de motociclistas. 

Outro aspeto que tem vindo a ganhar uma renovada importância é também a guerra eletrónica. O que é que está a ser feito nesse sentido?

A guerra eletrónica é outra questão que tem de ser trazida e estamos a estudar como trazer a guerra eletrónica à unidade do mais baixo escalão. Antes, a guerra eletrónica limitava-se a proteger os postos de comando da brigada, garantir comunicações e atacar comunicações adversárias. Hoje, a guerra eletrónica faz parte da necessidade da defesa imediata do soldado, que pode ter de tentar empastelar as frequências em que operam os drones do inimigo. Não conseguimos conduzir qualquer operação sem ter uma bolha eletrónica que nos confira proteção eletromagnética. 

O ambiente na linha da frente é cada vez mais hostil com a presença constante de drones, muitas vezes com câmaras térmicas ou com visão noturna.  Isto cria também grandes dificuldades na extração de feridos da linha da frente…

Essa é outra área que também nos preocupa imenso, o chamado Tactical Combat Casualty Care, que é o treino dos primeiros socorros em combate. Porque o que verificamos é que não há condições para evacuações sanitárias. O militar sozinho tem de ser capaz de se preservar se for gravemente ferido, porque todo o apoio que lhe chega é apoio via rádio. Não é possível evacuar. As evacuações, tal como o reabastecimento, acontecem nas condições atmosféricas mais adversas possíveis, que é quando é mais difícil ter os drones no ar. Portanto, as evacuações são geralmente durante a noite, em dias de chuva e em dias de vento, que aumentam as nossas probabilidades.

Estamos a capacitar-nos, nos aprontamentos que fazemos, com o conhecimento de diferentes níveis, para que o militar seja capaz de não só aplicar socorros em si, mas também no militar do lado caso seja necessário. Toda esta formação acontece e é qualificada em Coimbra, no centro de saúde militar, onde eles têm uma pista de combate e são confrontados com diversos cenários que têm de resolver.

O espaço de batalha está tão letal que primeiro temos de perceber como é que sobrevivemos lá. Só depois disso é que vamos cumprir a missão de combater para vencer.

E a camuflagem? 

A camuflagem faz parte da condição militar, é ancestral. Voltamos a recuperar a arte da camuflagem, individual e de sistemas de armas. Quando se começou a introduzir as capacidades térmicas de deteção, foi criado um problema sério. Enquanto não há soluções, tenho de levar o combate para onde elas são menos favoráveis, aproveitando as condições meteorológicas que as minimizam. 

A Ucrânia, em particular, tem demonstrado uma enorme capacidade de inovação, motivada pela urgência que a invasão russa trouxe. Sente que o ocidente pode beneficiar desta "distância", podendo estudar e aplicar apenas as mudanças com provas dadas no campo de batalha?

Há tendências que não se provam. Os processos têm de ser amadurecidos. Mesmo os ucranianos, ainda não identificaram claramente o emprego dos drones. Existe um debate sobre se se devem criar unidades puras de drones, algo que os ucranianos já estão a fazer, ou se o drone deve ser apenas mais um elemento da equipa que já utiliza outras plataformas e equipamentos. Aqui ainda não percebemos se as unidades de drones vão ser o sistema de armas central numa unidade terrestre, como foram os carros de combate.

Os drones vão mesmo ganhar uma maior importância. Mas existe um pouco a ideia de que um piloto de drone não necessita da mesma condição física que um militar de infantaria, por exemplo. Concorda com esta ideia?

O militar tem de ter um nível mínimo de robustez e de condição física. O operador pode ter de estar perto da linha da frente e, por isso, tem de ter a capacidade de saber operar uma arma pessoal que lhe garanta defesa imediata, numa situação crítica. Ele tem de saber operar uma arma, ele tem de saber falar ao rádio, ele tem de perceber o contexto militar onde está.

Mas isso preocupa-o?

O nosso general-chefe alerta-nos muitas vezes que nós nunca tivemos tão perto da possibilidade de voltar a um combate convencional. E, portanto, isso tem de nos desassossegar. Estas são as palavras do nosso general-chefe. Temos de andar desassossegados. E, efetivamente, andamos desassossegados. Isto significa também que estamos a trazer um grau de exigência diferente. Não basta treinar. É preciso criar mecanismos que quantifiquem a qualidade do nosso desempenho, seja ele físico, técnico ou tático.

Nos últimos 30 anos vivemos numa lógica de aprontamento. Se tenho uma unidade que vai ser projetada no estrangeiro, dou-lhe seis meses de aprontamento orientado para a missão. O aprontamento de uma missão na República Centro-Africana é diferente do dos militares que vão para a Roménia. O problema hoje é que podemos correr o risco de não ter seis meses de aprontamento. Nunca estivemos tão perto de uma situação destas e isso exige que a abordagem ao treino e a manutenção de qualificações seja diferente. O aprontamento pode ser algo que num curto espaço de tempo venha a perder sustentabilidade, por isso as unidades têm de estar com níveis mínimos de prontidão. 

Outro dos elementos que parece ter sofrido algumas alterações é o uso de artilharia. O que mudou e como é que o exército se está a adaptar? 

A forma rápida e célere como se faz chegar às bocas de fogo os pedidos. No início aconteceu a uberização da guerra, com os ucranianos a criarem aplicações que permitiam a qualquer indivíduo enviar uma fotografia com localização para um posto de comando que coordenava a capacidade de atingir com fogo de artilharia esse local. A artilharia mantém-se a rainha da batalha.

O que é que nós estamos aqui a procurar introduzir? É esta fluidez, a capacidade de fazer chegar os dados a quem tem as armas. Estamos a incluir nessa capacidade os sistemas aéreos não tripulados. Aquilo que antes exigia que um observador, um militar que observasse com binóculos e identificasse as coordenadas e transmitisse por rádio, isso pode ser feito hoje com um drone, que emite em tempo real a informação do alvo com as coordenadas militares ao posto de comando inteiro.

No fundo, o trabalho da infantaria parece estar muito mais complicado…

Hoje uma seção de infantaria pode ocupar 200 metros. Ou seja, posso ter parelhas de militares, como acontece na Ucrânia, separados a cada 50 metros. Apesar das ligações todas, o combate tornou-se muito mais solitário. O militar está mais sozinho e fisicamente muito mais afastado dos seus camaradas e com a probabilidade de ser resgatado muito mais reduzida. Isto cria uma exigência de treino individual e de confiança individual sem precedentes. O isolamento é maior e o grau de letalidade é brutal. 

E estão a treinar para essa realidade?

Está a treinar-se no terreno, mas é algo que sinto que ainda não interiorizamos. Ainda estamos com distâncias muito convencionais. Mas não somos só nós. Nós europeus ainda não introduzimos com a urgência devida aquilo que já são realidades. O mesmo acontece com as viaturas blindadas e com as peças de artilharia, que estão enterradas e só saem para fazer fogo. Quando acabam, voltam a enterrar-se na esperança de não terem sido vistas.

São muitas mudanças…

As transformações e as adaptações não têm só a ver com tecnologia. Não têm só a ver com hardware. Têm a ver como é que uso esse hardware. O software é que faz a diferença. Os carros de combate, quando foram inventados, seguiram depois duas linhas de pensamento distintas. A mesma tecnologia, uma plataforma blindada com poder de fogo e mobilidade, os alemães concentraram em unidades puras e os franceses utilizaram-nas dispersas como arma de apoio à infantaria. Qual foi o resultado na Segunda Guerra Mundial?

A própria conceção do carro de combate era completamente diferente. No carro de combate francês, que tinha melhor blindagem e melhor peça de artilharia, o chefe de carro, quem comandava o carro, também era quem colocava as munições. O chefe de carro de combate alemão era só chefe de carro. Só comandava. Estava liberto para o comando. O outro não, ainda tinha de andar a pôr as munições. Isto fez toda a diferença e foi só uma mudança de software. 

Ou seja, a discussão é sobre se dispersamos os drones na unidade mais pequena, na frente, ou se criamos unidades especializadas? 

Exatamente. É esse o debate. Os ucranianos, por exemplo, dizem que tem de haver unidades puras só de drones. É isso que queremos ou integramos? Este é um debate que ainda está em cima da mesa. 

E qual é a sua opinião? Para que lado devem ir os exércitos?

Tem de haver equilíbrio. Faz sentido que, para determinadas tarefas, haja unidades puras. Unidades de ataque, por exemplo, têm de ser puras, especializadas. Mas acredito que a capacidade de vigilância tem de estar disseminada. O desafio é como é que integro isto. Mantenho a especialização até que escalão? 

Nós na Cavalaria, no reconhecimento, chegámos a ter pelotões de reconhecimento em que incluía um morteiro. Tínhamos infantaria, uma secção de atiradores, uma secção de Carros de Combate, uma secção de exploração e um morteiro. Uma verdadeira unidade de armas combinadas. Tudo isso ao nível do pelotão, comandado por um alferes ou tenente. Oito viaturas. Esta organização vinha dos americanos e eles chegaram à conclusão de que estavam a pedir demais ao tenente e pensaram concentrar os morteiros num pelotão de morteiros. O software é, aonde é que quero, em que escalão é que quero integrar as coisas e misturar as especialidades.

Nós já tínhamos nos quadros orgânicos, nas organizações das nossas unidades de manobra, já tínhamos secções de drones de reconhecimento. O que agora estamos a equacionar, e foi proposto ao general-chefe e o nosso general-chefe aceitou, é trazermos para o escalão de pelotão uma capacidade autónoma de reconhecimento e de ataque. Portanto, ainda não estamos na fase de pensar em unidades puras.

E isso passa muito pela liderança…

A filosofia de comando é outro software decisivo. Que tipo de liderança é que quero? E isso também está em confronto a olhos vistos na Ucrânia. Quero uma liderança centralizada em que é orquestrado e controlado por um comandante de um escalão elevado ou vou correr o risco de descentralizar e só explico que a intenção é esta e o estado final é este, com o caminho até lá a ser dependente do sargento. Isto tem riscos. Temos de ter lideranças treinadas para isto.

Não posso querer que um primeiro-sargento tenha liderança se todos os dias na unidade lhe tiro a capacidade. Sempre que ele tem uma ideia, reprimindo e dizendo que não devia ter feito isso. Tenho que, no dia a dia, desenvolver uma cultura de iniciativa, de criatividade e de debate.

Durante muitos anos dizia-se 'o soldado não pensa'. Não, hoje o soldado tem de pensar e é bom que ele nos ajude com as ideias dele. Hoje a filosofia é completamente diferente. Cada escalão tem de compreender a intenção e a missão até dois escalões acima. O alferes tem de perceber o batalhão, o tenente-coronel. O capitão tem de perceber o brigadeiro. Esta descentralização é que depois traz dividendos em termos de iniciativa, de criatividade e de resposta às soluções.

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