Porque tarda a Ucrânia em iniciar a contraofensiva menos secreta do mundo?

19 abr 2023, 23:39
Forças ucranianas aguentam posições em Bakhmut (Evgeniy Maloletka/AP)

Não tinha começado a primavera e a ofensiva já estava anunciada, mas agora pode demorar mais a chegar do que se pensava. O que faz Kiev atrasar a tão aguardada contraofensiva?

“Não vamos ter um dia em que as Forças Armadas anunciarão: ‘Amanhã começa a contraofensiva’”, disse esta quarta-feira Hanna Maliar, vice-ministra da Defesa da Ucrânia, pressionada numa conferência de imprensa pelos jornalistas. Ao longo dos últimos meses, a expectativa de uma contraofensiva ucraniana atingiu o seu ponto mais alto, mas, no terreno, os sinais de um golpe ainda estão por aparecer. A meteorologia, uma linha de defesa com mais de 800 quilómetros ou as limitações da indústria militar ocidental: afinal, porque tarda a aparecer a contraofensiva menos secreta do mundo?

“Este ano, a neve e o frio vieram mais tarde do que habitual. Os terrenos ainda não têm consistência suficiente. Nenhum planeador militar pode pura e simplesmente levar a cabo uma ofensiva, num conflito de alta intensidade com blindados e mecanizados de alta tonelagem numa região que está um autêntico lamaçal”, explica à CNN Portugal o major-general Isidro de Morais Pereira.

Ainda com a chuva a fazer-se sentir um pouco por toda a linha da frente, os terrenos férteis da Ucrânia tornam-se uma verdadeira armadilha para os carros de combate que arriscarem tentar avançar sobre as posições inimigas. Com as planícies transformadas em pântanos, os líderes militares ucranianos estariam obrigados a utilizar as estradas para movimentar os seus blindados, fazendo com que estes se tornassem alvos fáceis para a artilharia do adversário.

“As previsões são desanimadoras e está prevista chuva na região até ao dia 3 de maio. Não me parece que a Ucrânia não se ponha a fazer contraofensivas nestas condições. Com o terreno como está, seria um suicídio”, afirma o major-general Agostinho Costa, que destaca o quão perigoso o terreno pode ser para veículos com rodas, que ficam atolados na lama e têm de ser abandonados pela sua tripulação.

Além disso, a Ucrânia ainda não tem ao seu dispor todo o poderio bélico prometido pela NATO e que tanta falta faz para recuperar o seu território e isso pode pesar na hora de dar a ordem para atacar. Muitos dos veículos blindados prometidos, entre os quais os carros de combate britânicos Challenger e centenas de Leopards A5 e A4, de uma coligação de países da NATO. Não menos importantes são os veículos de combate de infantaria norte-americanos, os Bradleys, e centenas de veículos blindados de transporte de pessoal, em particular os Strykers e M1117 dos Estados Unidos.

“Alguns dos materiais que os países ocidentais da NATO prometeram estão ligeiramente atrasados, mas, em alguns casos, o número de veículos prometidos já duplicou. Sublinhar também que já chegaram os sistemas Patriot, de EUA, Alemanha e Países Baixos. Para a semana há notícias que o sistema alemão Iris-T está pronto para entregar”, indica Isidro de Morais Pereira.

Mas a fuga de documentos confidenciais do Pentágono trouxe a público algumas das deficiências materiais da Ucrânia. A mais grave parece ser a situação no que toca à “rainha do campo de batalha”: a artilharia pesada de 155 mm. Os Estados Unidos acreditam que os ucranianos consumiram 951.752 projéteis, quase metade das reservas norte-americanas, apenas até ao final de fevereiro. O exército liderado por Valerii Zaluzhnyi, à data do relatório, estava a gastar uma média de 3.474 munições por dia e tinha apenas 10.892 unidades de reserva, ou seja, o suficiente apenas para quatro dias. Tanto a Europa como os Estados Unidos estão focados em aumentar a produção e enviar munições para a Ucrânia, mas algumas das vozes mais importantes da indústria militar sublinham que este processo demora tempo. Tempo que a Ucrânia pode não ter.

“A Ucrânia não vai cancelar a contraofensiva. Existe uma enorme pressão política, tanto em Kiev como vinda de Washington. Mas o material de guerra ocidental ainda não chegou. O conselheiro político de Zelensky [Danilov] disse mesmo que um acordo de paz seria um suicídio político. Há muita pressão”, aponta Agostinho Costa.

No aniversário da guerra, no dia 24 de fevereiro, o ministro da Defesa ucraniano, Oleksii Reznikov, prometeu “atacar com mais força, a maiores distâncias, no ar, na terra, no mar e no ciberespaço” e anunciou que a contraofensiva iria acontecer, retirando aquela que é uma das mais importantes vantagens que um comandante militar pode obter no campo de batalha: o elemento surpresa. Porém, os especialistas recordam que já no passado a Ucrânia anunciou uma ofensiva sobre Kherson e acabou por reconquistar toda a região de Kharkiv.

“Se estivesse bom tempo, já teria iniciado a ofensiva. As condições não são as mais favoráveis. Estou verdadeiramente expectante, porque em setembro a ofensiva ucraniana surpreendeu-nos ao anunciar um ataque a Kherson e a reconquistar Kharkiv. É difícil fazer prognósticos. Há muita confiança da parte ucraniana e da parte ocidental”, sublinha o major-general Agostinho Costa.

Anunciada há vários meses, embora sem prazo estipulado, as chefias das forças armadas russas têm levado a sério os avisos de contraofensiva iminente por parte do exército ucraniano. A prova disso não está nas suas palavras, mas sim nos seus atos: a Rússia construiu uma das maiores linhas defensivas desde a Segunda Guerra Mundial, com mais de 800 quilómetros de trincheiras, minas antitanque, estruturas de betão para travar veículos blindados e milhares de bunkers. Tudo para travar qualquer tentativa ucraniana de recuperar o seu território.

“Ao longo destes meses, os russos fizeram três linhas de defesa. Se a contraofensiva ucraniana fracassar, o seu exército pode colapsar e a Rússia contra-atacar. Aí, podemos passar a ter uma guerra de guerrilha como na Guerra Peninsular, uma guerra sem frentes com grupos armados que se confrontam”, frisa Agostinho Costa.

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