Porque é que Zelensky aceitou a rendição da Azovstal? Os bastidores da queda ucraniana em Mariupol

24 mai 2022, 09:41

Foi quase um mês de intensas negociações, sabendo-se de antemão que era impossível todas as partes ficarem contentes. De um lado, as mulheres dos soldados pediam o regresso, do outro havia quem quisesse um contra-ataque

Foram retirados a conta-gotas, até chegarem a cerca de dois mil, os soldados que resistiram durante um mês na siderurgia Azovstal, a maior fábrica do género na Europa, e que foi símbolo da luta ucraniana em Mariupol, entretanto perdida para os russos.

Pelo peso da simbologia do local, não terá sido, certamente, uma decisão fácil para o presidente da Ucrânia, que acabou por declarar a rendição, mudando automaticamente o discurso. “Esperamos os nossos heróis em casa”, afirmou, a partir de Chernihiv, no meio de muitas pressões das mulheres dos soldados, agora reféns das forças russas, para que estes voltassem para casa. Na plataforma Change.org são mais de um milhão as assinaturas de uma petição que vai nesse sentido, e na qual se pede a intervenção de uma “figura internacional” para mediar uma possível troca de prisioneiros.

“Era impossível desbloquear a situação por meios militares, tínhamos de nos apoiar na diplomacia”, justificou Volodymy Zelensky.

Longos dias de resistência e negociações

A primeira tentativa de chegar a um acordo diplomático na fábrica foi feita na manhã de 8 de maio. Uma chamada telefónica na qual os russos aceitavam estabelecer um corredor humanitário organizado pela Organização das Nações Unidas e pela Cruz Vermelha, tendo em vista as prioridades de retirar mulheres, crianças e idosos da Azovstal.

Bombardeamento à Azovstal a 4 de maio (AP)

Uma fonte diplomática europeia disse ao El Mundo que essa era a chamada que Volodymyr Zelensky esperava, e que chegou via Turquia, por meio de um deputado que tem assento no parlamento ucraniano. Foi Mustafa Dzhemilev, líder do povo tártaro na península da Crimeia, quem conseguiu chegar-se à frente para desbloquear o impasse.

Amigo próximo do presidente da Turquia, foi ele quem falou com o lado ucraniano, ao mesmo tempo que os turcos recebiam as indicações da Rússia para a rendição: tinha de ser Volodymyr Zelensky a dar a ordem de rendição ao batalhão Azov, que representava grande parte dos soldados presos no local, onde também estavam membros da Guarda Nacional, da Marinha e dos Serviços Secretos.

“Não temos horas, temos segundos”, terá dito o responsável tártaro ao lado ucraniano naquele telefonema de 8 de maio. É que o dia seguinte era o propalado “Dia da Vitória”, a data em que a Rússia celebra a derrota da Alemanha Nazi, e na qual se esperava algum tipo de golpe militar para que Vladimir Putin pudesse apresentar uma vitória ao seu povo (o que acabou por não acontecer).

No mesmo telefonema, o presidente da Ucrânia diz precisar de mais tempo, mas garante que, assim que possível, ele próprio vai entregar uma ordem de rendição.

Mais tarde, Volodymyr Zelensky acabaria por referir que grande parte do processo de rendição foi acordado com os “parceiros ocidentais”, tendo em vista evitar a morte dos ucranianos que ainda estavam no complexo (a Ucrânia fala em centenas, a Rússia é mais precisa - 2.439).

Soldado russo revista combatente saído da Azovstal (AP)

A cronologia de uma rendição

A 8 de maio dá-se o tal telefonema, mas esse foi apenas o primeiro passo de vários dias para retirar vivos os resistentes. “Precisamos de heróis vivos”, sublinhou Volodymyr Zelensky. Só no dia 10 de maio, por exemplo, foram 38 os bombardeamentos russos à siderúrgica.

No decorrer do processo envolveu-se o secretário-geral da ONU, António Guterres, que esteve sempre a par dos pedidos ucranianos. Também nas Nações Unidas, a 12 de maio, o embaixador ucraniano fez um apelo desesperado à intervenção do direito internacional humanitário. Um dia depois foi a vez de três ex-presidentes ucranianos: Petro Poroshenko, Viktor Yushchenko e até o “amigo de Moscovo” Leonid Kuchma pediram o fim do impasse.

A 14 de maio a vice-primeira-ministra da Ucrânia, Iryna Vereschchuk, lamentava que só se iria retirar 60 pessoas da Azovstal. Foi um dos passos decisivos para que Volodymyr Zelensky se decidisse pelo fim da resistência.

Soldados russos revistam combatentes saídos da Azovstal (AP)

“Cerca de 90% dos nossos pilotos de helicóptero que tentaram levar ajuda à fábrica morreram”, lembrou o presidente ucraniano, para assim justificar a decisão, que não foi bem recebida por todos. Alguns membros do exército ucraniano chegaram a pensar em lançar uma ofensiva no local, para a libertação, e o chefe dos serviços de informação do Ministério da Defesa da Ucrânia, Kyrylo Budanov, disse mesmo que não conhecia “outras fronteiras além das da independência de 1991”. Uma opção que poderia ter resultado em milhares de mortos, segundo Mustafa Dzhemilev.

"Se direcionarem tropas de outras zonas, essas zonas podem ser atacadas pelos russos. Há quem diga que quebrar o cerco de Mariupol pela via militar pode levar a 10 mil mortes", alertou, antes da retirada, o líder tártaro, citado pela agência AFP.

Os soldados ucranianos entretanto capturados pelos russos permanecem em parte incerta. Volodymyr Zelensky garante que os vai “levar para casa”, mas essa será uma tarefa difícil. Uma das possíveis soluções é uma troca de prisioneiros, com o oligarca russo Viktor Medvedchuk, amigo próximo de Vladimir Putin, a ser uma das possíveis soluções, como o é uma troca de prisioneiros comum, já realizada entre os dois países desde que a invasão russa.

Relacionados

Europa

Mais Europa

Mais Lidas

Patrocinados