“Passam os dias em colchões encostados às paredes mais grossas da casa, sem luz e a comer comida de cão”. O “inferno” em Mariupol

13 mar 2022, 08:00
Alona Aseieva

A ucraniana Alona Aseieva, 36 anos, vivia em Mariopul. Mas estava de férias em Portugal quando a guerra começou e não conseguiu regressar. Na cidade mais desvastada pelos russos ficaram os seus pais,irmãos e sobrinhos que tentam sobreviver. "Estão a viver um inferno", conta à CNN Portugal

Os olhos azuis de Alona Aseieva, 36 anos, não escondem o desespero: a sua cidade, Mariupol, está destruída, e os pais, irmãos, sobrinhos, avós e tios encontram-se no meio da devastação, escondidos, a tentar sobreviver na terra ucraniana mais atacada pelos russos. “Eles estão a viver o inferno”, conta à CNN Portugal. Como não fala português, é a sua prima Sasha Papchemko (que em Portugal adotou o nome Alexandra), há 20 anos a viver em Lisboa, que traduz o que vai dizendo. “Ela está a dizer que se pudesse regressava já para os tentar tirar de lá”, traduz Alexandra, que se emociona a ouvir as palavras de Alona. Cresceram juntas em Mariupol, mas as escolas onde estudaram, as ruas onde passeavam, as casas de amigos e familiares que frequentavam estão todas destruídas. “Não há nada, bombardearam tudo”, afirmam. Alona está em Portugal porque quatro dias antes de começar a guerra tinha vindo visitar a prima com o seu filho Nikita, de 4 anos. O seu bilhete de regresso seria para dia 26 de fevereiro, mas já não havia voos sequer.

 “Caso contrário estaria na Ucrânia. Mas desde dia 24 ninguém entra nem ninguém sai de Mariupol” conta. O seu marido, Vitali Aseieva, por seu lado, encontrava-se em Andorra na neve, a fazer esqui, quando a invasão russa começou e, por isso, não foi apanhado pela lei marcial e impedido de sair do país.  Os três estão em Lisboa, ainda a tentar perceber o que vão fazer.

“Todo o resto da família está lá… Estão na nossa casa. Passam os dias, adultos e crianças, sentados em colchões encostados às paredes mais grossas da casa”, conta Alona, continuando: “Quase não têm comida. Como eu tinha lojas de animais, o meu irmão foi lá buscar comida. Estão a comer comida de cão”.  O cenário que lhe relatam é assustador: não há luz, não há comida nem água e estão cerca de 9 graus negativos.

Há uns dias, quando acharam que iam sair da cidade, os familiares de Alona distribuíram todos os alimentos pelos vizinhos. Por isso agora não resta nada, a não ser uns cereais que reservaram para a mais nova, a sua sobrinha de 7 anos.

Para tentar colmatar a falta de água, derretem neve para usar na sanita.  Agora, como já não há tanta neve, têm mesmo de ir ao exterior da casa fazer as necessidades, refere Alexandra, traduzindo o que a prima vai contando. Ir à rua buscar água tornou-se perigoso, garantem. “Não se consegue sair. Esta semana estavam muitos civis numa fila para buscar água e uma bomba mandada por um helicóptero matou 20 ou 30 pessoas”, afirmam.  Nos primeiros dias da invasão ainda conseguiam aquecer a comida em fogueiras que faziam nos pátios e passear os cães. Mas agora já não. “Eles dizem que há atiradores nos telhados que disparam nas pernas das pessoas”, explica Alexandra, acrescentando que ninguém percebe quem são os autores dos disparos.  Além disso, diz, “quem está fechado em casa e nas caves também não percebeu se os russos tomaram já a cidade toda ou apenas uma parte”

Alexandra nasceu em Mariupol, mas vive em Lisboa há 20 anos

Os relatos são-lhes passados nos poucos minutos que conseguem falar com os familiares que estão em Mariupol. “Para conseguirem ter bateria nos telefones, vão ao carro, que ainda tem gasolina, ligam-no e carregam os aparelhos”, descreve ainda Alexandra, explicando que, apesar do dia a dia devastador, para não preocupar quem está longe, os pais de Alona quando falam com a filha estão sempre a garantir que “está tudo bem”. “São pessoas fortes”, afirma.  

Já a família de Vitali está na cave de um dos seus supermercados, onde se encontram outras 250 pessoas. Entre eles partilham os alimentos das latas de conservas, o pouco que sobrou da destruição que sofreram os estabelecimentos comerciais.

Aseia, conta a prima, “passa os dias a chorar com medo que algum bombardeamento atinja a casa de dois andares onde estão os seus pais e irmãos, pois não tem cave”. 

“Mas eu tento acalmá-la e já lhe expliquei que estar num bunker pode ser pior: se o prédio cai morrem todos sufocados”. É, aliás, esse o medo que Alexandra tem que aconteça ao seu ex-marido e pai da sua filha Dária. Se esta conseguiu fugir a tempo de Kiev, onde vivia, e está agora em Lisboa, ele está ainda em Mariupol. “Achamos que está na cave do prédio com a mulher e a filha de 5 anos, às escuras”.  Desde há vários dias que não conseguem saber notícias e a filha de Alexandra anda a recear o pior desde que viu numas fotografias que recebeu algo que lhe parecia a destruição do prédio onde o pai e a irmã viviam. “A nossa esperança é que esteja vivo e que possam estar junto às condutas de gás e que estas continuem quentes”, adianta a ucraniana. O pai da sua filha vive na zona esquerda de Mariupol, que fica mais perto da entrada da Rússia. “É a que foi mais atingida e destruída logo no primeiro dia”, conta, explicando que a cidade é dividida pelo Rio Kalmius  e que, nesta zona esquerda, “está a fronteira desde há 8 anos que há tropa da da República Popular de Donetsk (DNR)”.

Mariupol, um ponto estratégico da região do Donbass, tem sido ser alvo de violentos ataques: está destruída e sitiada. Desde a maternidade a mesquitas, passando por escolas, áreas residenciais e centros comerciais, tudo foi bombardeado.

Alona, Vitali e Nikita não podem regressar a casa

“Não há explicação”, diz Alexandra, que descreve o dia a dia de medo que todos vivem em Mariupol. Os cemitérios estão cheios e os mortos já não têm onde ser enterrados. “Agora estão a enterrar em pátios dos prédios”, diz.

Alona não esconde o que sente. Está triste, preocupada, revoltada. “As pessoas de Mariupol estão reféns”, acusa, adiantando que os familiares tentaram sair da cidade. Mas, depois de verem um carro a ser alvejado, desistiram.

O pai de Alona tem mais de 65 anos e por isso não seria alvo da lei marcial, que impede os homens dos 18 aos 60 anos de sair da Ucrânia, mas ali em Mariupol, tomada pelos russos, não há regras que se apliquem. “Não se consegue mesmo sair”, sublinha Alexandra, garantindo que por duas vezes a população foi informada de que poderia sair por corredores humanitários, mas a iniciativa foi sempre abortada. “Cá para mim os russos fizeram isso para os ucranianos saírem das caves e das casas e verem quantos ali estão ainda”, defende Alexandra.

O medo instalou-se, a cidade “desapareceu”. “A Avenida da Paz, que era uma das principais da cidade, onde foi feito um popular grafiti em homenagem a uma criança que perdeu uma perna na guerra civil do leste da Ucrânia em 2014, está irreconhecível.”, diz Alexandra, enquanto observa as imagens e vídeos que vai recebendo. O seu pai também é de Mariupol, mas está numa zona de praia, a cerca de 15 km, onde costuma passar férias. “Falei com ele esta-sexta-feira. Ali não há tropas, mas ele conta que está sempre a ouvir os bombardeamentos. E está a ficar sem comida”. 

Alona garante que não descansa enquanto não tirar a família do meio da guerra e garante que mal possa regressa para ajudar a reconstruir a sua cidade. Mas tudo é uma incerteza. A começar pelo o sítio onde sempre viveu: “Mesmo que a guerra acabasse não tinha para onde voltar”.

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