Para ganhar uma guerra é preciso ter "6 soldados para 1". A Rússia "aplicou 10-1". Para quê?

29 jun 2022, 07:30
Militar russo em Kherson (AP)

Mais de quatro meses depois do início do conflito, ainda ninguém sabe exatamente bem o que a Rússia quer da guerra. Será que a própria Rússia o sabe?

“Para materializar os objetivos inicialmente anunciados, a Rússia teria de depor o regime político vigente em Kiev. Isso não foi conseguido até à data." Para o major-general Isidro Morais Pereira, a Rússia está longe de cumprir os objetivos que estabeleceu para a invasão - quer os anunciados no início, quer após a redefinição dos mesmos. "Esses objetivos foram sendo reformulados de forma a serem atingíveis. O nível de ambição inicial estava baseado em pressupostos errados. A Rússia convenceu-se de que grande parte da população ucraniana estaria do seu lado e que a própria Ucrânia iria capitular sem oferecer a resistência que ofereceu. Isso até levou a uma purga nos serviços secretos da Rússia. Como não conseguiu, fixou-se no Donbass, com população maioritariamente russófona."

Isidro Morais Pereira acredita que a “ambição expansionista da Rússia não se fica por aí”. “Os sinais de que Moscovo quer mais são evidentes. A narrativa russa é até de a negação da própria Ucrânia, de que não tem razão de existir e que o povo ucraniano não é uma nação. O próprio [Dmitry] Medvedev disse que a Ucrânia é um Estado artificial criado pela CIA e pelos EUA. Tudo isto leva a crer que, passo a passo, o objetivo russo é a anexação da Ucrânia.”

Por sua vez, o major-general e professor universitário Arnaut Moreira afirma que a Rússia “foi sempre pouco clara na definição dos seus objetivos territoriais”. “No início das operações alimentou a esperança de um colapso militar ucraniano que facilitasse a mudança do poder político em Kiev. Assim, as conquistas de natureza territorial fariam menos sentido, uma vez que tinha sido alcançado o objetivo político-estratégico de um novo alinhamento do governo ucraniano”, começa por explicar. “Como a mudança do poder político falhou, e as forças militares ucranianas defenderam valentemente o seu território, houve necessidade da parte da Rússia de alterar a sua estratégia e conduzir operações militares visando ganhos de natureza territorial. Não é possível, a partir das primeiras declarações russas, verificar os objetivos finais das conquistas territoriais. Julgo até que, neste momento, os russos nem têm um objetivo explícito. Uma coisa é a vontade e o desejo, outra coisa são as reais capacidades.”

Quanto à redefinição de objetivos, Morais Pereira considera que foi efetuada para “camuflar” a falta de eficácia do exército e da força aérea russos. “A ofensiva contra Kiev colapsou, foi mal calculada. Face a essa derrota no terreno, a Rússia precisava de ganhar fôlego, de ganhar tempo e mobilizar outras tropas. No discurso do dia 9 de maio, o próprio Putin confirma que o objetivo estratégico é a região do Donbass”, aponta. “Quando recuperou o fôlego, atacou o Donbass com muita força. Aplicou proporções de 10 [russos] para um [ucraniano]. Mesmo aí, apesar de ter uma desproporção muito favorável em termos de apoio de fogos, de artilharia de mísseis, a infantaria russa furtou-se ao combate. Se a força aérea estivesse devidamente coordenada com a de infantaria no terreno, cidades como Severodonetsk e Lysychansk teriam caído no prazo de 72 horas. O potencial de 10 para 1 aplica-se onde se quer obter resultados. Na doutrina ocidental, para uma ofensiva ter sucesso a proporção é de 6 para 1, que é supostamente suficiente para romper as defesas. No caso russo não foi. Severodonetsk resistiu dois meses. Ou é uma intervenção do divino ou uma grande ineficácia da infantaria russa.”

A paixão russa e o Donbass, uma mera "autoestrada"

Arnaut Moreira sublinha a questão da faixa territorial que a Rússia conquistou no sul da Ucrânia, a qual, segundo o próprio, tem um só propósito - a proteção da Crimeia. “Não há uma grande paixão russa por Kherson, simplesmente garante a distância de segurança que permite manter a península fora do alcance da artilharia ucraniana. Mais do que um território a 'russificar', destina-se a garantir uma faixa de segurança sobre a Crimeia, a joia da coroa para a Rússia.”

O especialista em geoestratégia considera ainda que o valor do Donbass e o valor da Crimeia são “incomparáveis”. “O Donbass não é mais para a Rússia do que a autoestrada que permite ligar à Crimeia. Serve para o discurso interno, de que estão a salvar as populações russas do genocídio, mas a prática demonstra como esse território, que tem sido completamente destruído pela Rússia, não interessa para nada. Moscovo não está a pensar nem nas populações, nem na economia, nem na infraestrutura”, acrescenta. “A Rússia nunca fala em Lugansk ou Donetsk, fala sim no Donbass, pois é um conceito geográfico muito alargado, que vai até onde a Rússia puder chegar. Até Kharkiv não pode deixar de ser um objetivo para a Rússia. Se tivesse capacidade, a sua intenção era apropriar-se de toda a região a leste do rio Dniepre e conquistar Dnipro e Zaporizhzhia.”

Isidro Morais Pereira salienta também outra valia dessa faixa territorial que liga o Donbass à península tomada pela Rússia em 2014. “A Crimeia não é um território rico. Em matéria de água potável tem muitas limitações. A água potável para alimentar toda a população da Crimeia vem da região de Kherson, que é fundamental para tornar a Crimeia viável.”

Um alerta para a Moldova - e depois as armas e Odessas

Ambos os especialistas consideram que a Rússia terá como objetivo uma potencial expansão para ocidente, designadamente para a Moldova“Acredito que o objetivo russo passe por aí, há indícios de que a Rússia quer lançar uma ofensiva sobre a Moldova. É um país que está desprotegido, tem um potencial militar muito fraco, enquanto não entrar na NATO está muito vulnerável, será facilmente conquistável”, avança Isidro Morais Pereira. O major-general salienta, contudo, que a decisão de lançar uma ofensiva sobre a Moldova “vai depender do sucesso que a iniciativa russa no Donbass venha a ter e da forma célere com que o Ocidente seja capaz de fornecer à Ucrânia armas que façam realmente a diferença”.

E que armas são essas? “Estou a falar de sistemas de artilharia em quantidade, sistemas de lança-foguetes múltiplos, que já chegaram alguns, e falo também de unidades de defesa antiaérea. Há duas maneiras de contrariar a desproporcionalidade do poder de fogo russo: uma é colocar uma quantidade de elementos de apoio de fogos, de artilharia e de lança-foguetes múltiplos semelhante àqueles que têm os russos; outra é anular os seus efeitos através do fornecimento de meios eficazes de artilharia antiaérea que sejam capazes de destruir quer munições, quer foguetes, quer mísseis em voo.”

Morais Pereira dá o exemplo do sistema alemão IRIS-T SLM, cujo fornecimento à Ucrânia foi anunciado por Olaf Scholz no início de junho, como uma arma capaz de proteger grandes áreas do território ucraniano. Salienta que Kiev “precisa mesmo de armamento ocidental”, dado o estado quase obsoleto em que se encontra muito do seu armamento, ainda da era soviética.

Por sua vez, Arnaut Moreira releva a importância que a cidade ocidental de Odessa tem para os russos, o que fará dela um alvo a considerar. “Odessa representa três coisas para Moscovo: primeiro, do ponto de vista simbólico, é onde está a estátua de Catarina, a Grande. Ali, a Rússia sente-se em casa; em segundo, do ponto de vista territorial, a posse de Odessa impediria o acesso da Ucrânia ao Mar Negro, o que aumentaria o grau de liberdade da força naval de Sevastopol [onde está sediada a Frota do Mar Negro da Rússia]; em terceiro, do ponto de vista económico, o controlo de Odessa estrangularia a economia ucraniana. Não é a mesma coisa uma Ucrânia, com o tipo de produção agrícola que tem, ter um acesso direto ao Mar Negro ou ter de o fazer através de parceiros para poder escoar a sua produção.”.

Após a conquista da terceira maior cidade da Ucrânia, Arnaut Moreira considera “natural” a expansão até à Transnístria, dada a proximidade geográfica, o que também constituiria o “fechar de ciclo a Sul” por parte da Rússia.

Um aviso para o Báltico

Arnaut Moreira  deixa ainda um alerta aos três países do Báltico – Estónia, Letónia e Lituânia -, países com muita população russófona. “A população russófona destes países tem estado muito calada pois, do meu ponto de vista, ainda não convém alimentar esse esforço a norte. Contudo, se a Rússia tiver um sucesso militar credível a sul, estou convencido de que o ‘botão da insurreição” destas populações dos países bálticos será acionado por Moscovo”, vaticina, sublinhando que esse aspeto depende ainda da capacidade militar que a Rússia tenha.

Mencionando os casos da Geórgia em 2008 e do Donbass em 2014, Arnaut Moreira observa que o modus operandi da Rússia “é sempre o mesmo: as populações revoltam-se contra o governo central do país e a Rússia diz ‘bom, os nossos compatriotas vão ser chacinados, temos de intervir’. Este discurso aplica-se também aos países bálticos”.

No entanto, em virtude da presença destes três Estados na NATO, o major-general afirma que uma eventual intervenção russa “tem de ser muito bem pensada”. “Não pode ser uma invasão como a da Ucrânia. Tem de começar por armar a população e fomentar o descontentamento. Há todo um trabalho de preparação que permitiria uma intervenção desse género, que seria sempre de objetivos limitados. Anunciaria, por exemplo, que apenas iria atingir os primeiros 50 quilómetros, onde essas populações estão muito concentradas.”

Sobre uma hipotética resposta da NATO, que tem garantido nos últimos meses que iria defender cada centímetro do território da organização, Arnaut Moreira lança uma questão. “Se a Rússia mandar um míssil Iskander convencional para o território da Letónia, isto é um ataque à NATO? Tenho dúvidas- de que a NATO o considere como tal. Não me parece que vá lançar um contra-ataque generalizado por apenas cair um Iskander na Letónia.”

Os propósitos iniciais e os propósitos seguintes da Rússia

No início da invasão da Ucrânia, o presidente russo Vladimir Putin declarou que os objetivos principais da mesma eram a “desnazificação” e a “desmilitarização” do país vizinho, para que pudesse proteger o povo russófono do Donbass daquilo que considerou ser “bullying” por parte da Ucrânia durante oito anos.

Outro objetivo desta “operação militar especial”, como é apelidada pelo Kremlin, era o de assegurar o estatuto neutral para a Ucrânia. Também Sergei Lavrov falou da invasão como uma “operação para libertar o povo ucraniano”.

Contudo, cerca de um mês após o início da guerra, Moscovo recuou nas suas ambições e passou a falar apenas no “controlo total do Donbass”, região já parcialmente controlada por separatistas pró-russos desde 2014.

Após a retirada das zonas em torno de Kiev, a Rússia declarou que a primeira fase da invasão, cujo principal objetivo era reduzir as capacidades de combate ucranianas, tinha sido cumprida “com sucesso”. Na segunda fase, contudo, não se registaram grandes avanços para as forças às ordens de Vladimir Putin, destacando-se as conquistas de Mariupol e Severodonetsk. Abaixo, pode ver vários mapas do Institute for the Study of War que mostram a situação operacional no terreno nesta segunda-feira.

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