Medicamentos com iodo não protegem de um ataque nuclear (e mesmo assim estão a esgotar)

8 mar 2022, 14:57
Farmácia. Foto: Agência Lusa

Procura de medicamentos com iodo está a aumentar nas farmácias e alguns armazenistas até já esgotaram o stock. Mas a toma profilática de iodo é inútil para proteger da radiação, sobretudo nas dosagens em que é vendido em Portugal: seria preciso tomar 600 destes comprimidos para conseguir travar a absorção de iodo radioativo pela tiroide

Quando começaram as perguntas sobre medicamentos com iodo nas farmácias, houve quem pensasse que o objetivo era doar o fármaco que tem como princípio ativo o iodeto de potássio - a substância usada para diminuir os efeitos de um ataque nuclear no organismo - à população ucraniana, a braços com a invasão russa.

Mas não foi o caso. Muitos portugueses decidiram conversar com os farmacêuticos sobre iodo com o objetivo principal de se protegerem da radioatividade, sobretudo depois de Vladimir Putin ter anunciado que iria colocar as forças nucleares em alerta máximo e as tropas da Federação Russa terem controlado a central nuclear de Zaporizhzhia, uma das quatro ativas na Ucrânia.

Só que os medicamentos disponíveis em Portugal não servem este propósito, estão sujeitos a receita médica e fazem falta a grávidas e a mulheres que amamentam. Porquê? Porque "contêm iodo em dosagens totalmente diferentes das que seriam necessárias numa situação de contacto com radiação nuclear", explica Teresa Peixe, a autora do site Farmacêutica de Família. São fármacos desajustados e não serviriam para bloquear a absorção de iodo radioativo pela tiroide.

"Para um adulto, poderiam ser necessários 600 comprimidos" destes para fazer efeito, acrescenta a farmacêutica.

O iodeto de potássio inibe a tiroide de absorver as radiações e serve como medida de emergência em caso de contacto com elementos radioativos. Mas não impede que o iodo radioativo entre no organismo, nem reverte os danos se a tiroide já tiver sido afetada.

 

Teresa Peixe já fez até um alerta nas redes sociais sobre os maiores problemas de recorrer ao iodo para uma eventual proteção de ataque nuclear: "O maior risco desta procura é que quem precisa destes medicamentos não tenha acesso a eles", explica.

A medicação, que é indicada na gravidez para prevenção de defeitos do tubo neural do feto, na amamentação, ou também para quem tenha problemas de tiroide, pode ainda "trazer riscos graves para a saúde e funcionamento da tiroide" de quem deles não necessite, acrescenta a profissional, que garante que a procura do iodo também acontece além-fronteiras e não só em Portugal. "Por vezes, as pessoas nem sabem muito bem o que procuram", realça.

Armazenistas sem stock

Este desconhecimento do funcionamento do iodo e de que forma atua para minimizar o impacto da radiação nuclear não impede, contudo, que alguns armazenistas já tenham esgotado o stock de medicamentos com iodo.

João Guarino, diretor técnico da Farmácia Planalto, na zona de Telheiras, em Lisboa, refere que a procura tem aumentado, não só de medicamentos mas também de suplementos alimentares que contêm iodo. "Nos nossos armazenistas habituais, dois dos medicamentos com maior quantidade de iodo estão esgotados", revela o farmacêutico. "É um medicamento que, nas suas circunstâncias normais, não é de rotação acentuada, pelo que qualquer procura excessiva acaba por destabilizar o circuito, desde a produção até à venda", explica, "sobretudo nos centros urbanos e zonas mais movimentadas". 

João Guarino sublinha, tal como Teresa Peixe, que se trata de uma procura "desnecessária", não só pelas quantidades de iodo nos medicamentos prescritos em Portugal - de 0,2 e 0,3 miligramas, bem abaixo dos 130 miligramas de iodeto de potássio necessários para travar a absorção de radiação - mas também porque fica prejudicada a população que necessita efetivamente desta medicação.

Ao nível dos suplementos com iodo, têm ainda quantidades mais reduzidas de iodo do que os medicamentos e, naturalmente, poderão interferir em funções várias do organismo, pelo que não devem ser tomados sem aconselhamento médico e só para corrigir eventuais deficiências na alimentação ou problemas de absorção, para além da gravidez e amamentação, avisa o farmacêutico.

Questionado se os estrangeiros poderão estar a contribuir para esgotar medicamentos com iodo em Portugal, João Guarino admite que a situação pode verificar-se, sobretudo em zonas de fronteira, mas que a dispensa deste fármaco está sujeita a receita médica e, no caso de ser apresentada uma prescrição internacional, dependerá sempre do discernimento da equipa da farmácia, que avaliará se se trata de uma venda adequada da medicação. "Sem qualquer justificação, dificilmente se vai dar acesso a esse medicamento", diz à CNN Portugal. 

Falso sentimento de proteção

Hélder Mota Filipe, bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, sublinha também que a toma profilática de iodo não se justifica, desde logo porque o iodo deve ser tomado "imediatamente antes ou logo após" a exposição à radiação para poder ter efeito protetor, com a dosagem adequada. "Não adianta estar a tomar profilaticamente o iodo, até porque o iodo tomado de forma crónica também tem toxicidade ", acrescenta, lembrando que são necessários os já referidos 130 miligramas de iodeto de potássio para evitar absorção de radioatividade e as concentrações nos medicamentos à venda são muito inferiores.

"Não vale a pena esgotar a disponibilidade de iodo para ser usado na prevenção, na perspetiva de um futuro potencial fenómeno de desastre nuclear, porque a concentração de iodo que temos nos medicamentos aprovados no mercado serve outra indicação, a concentração é mínima e não protegeria o indivíduo de qualquer maneira", reforça. "Seria um falso sentimento de proteção".

No caso de um ataque nuclear que obrigasse à toma de iodo, esse medicamento chegaria sempre à população através das autoridades de saúde, frisa o bastonário dos farmacêuticos. 

No caso de algum dia haver um desastre nuclear, terão de ser as autoridades de saúde pública, através do contingente de crise, a fornecerem o iodo que protege verdadeiramente contra essas situações", refere.

As autoridades de saúde públicas têm em stock, nas suas reservas estratégicas, medicação para este efeito, explica Hélder Mota Filipe. Uma situação que é comum sobretudo nos países com centrais nucleares, em que existe sempre um potencial de risco "mas diminuto", diz o bastonário, que refere ainda "o óbvio": "No caso da crise na Ucrânia, Portugal está no outro extremo da Europa, o que é um aspeto relevante, porque dilui qualquer radioatividade que possa ser libertada", realça.

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