"Obviamente que há uma ameaça": o que significa a constante presença de navios russos em águas portuguesas

9 mai 2023, 18:31
Marinha Portuguesa (D.R.)

Portugal é um país na rota de passagem de todo o tipo de navios russos desde a Guerra Fria. Só que agora essas passagens intensificaram-se. Eis porquê. Uma pista (mas há outras): por Portugal passam 13 cabos essenciais para manter ligações como a Internet

Vários navios científicos mas também uma fragata que transporta mísseis hipersónicos: a passagem de embarcações russas ao largo da costa portuguesa tem aumentado nas últimas semanas, colocando a dúvida se se trata apenas de uma ameaça ou se há algo mais perante a presença da Marinha russa em águas nacionais.

O comandante João Fonseca Ribeiro, que serviu a Marinha portuguesa por mais de 25 anos, explica à CNN Portugal que estas movimentações marcam o regresso a uma atividade marítima que não se via desde a Guerra Fria, tendo a Rússia uma importante presença no eixo Atlântico e, como tal, devendo ser acompanhada de perto - lembre-se, por exemplo, a importância estratégica da Base das Lajes, nos Açores, durante a tensão entre Estados Unidos e a então União Soviética.

“Obviamente que há uma ameaça”, afirma o especialista, explicando que a própria Rússia tem a intenção de colocar em alerta as forças militares do Ocidente, nomeadamente com anúncios como o da passagem da fragata Almirante Gorshkov, a tal que tem capacidade para lançar os mísseis Zircon, projéteis hipersónicos com um alcance que pode chegar aos 900 quilómetros. “É uma demonstração de poder e essa passagem pelo Atlântico efetiva-a”, acrescenta o comandante, alertando que o perigo não está apenas à superfície: “Também falamos dos submarinos russos que fazem campanhas de presença no Atlântico. Isso sempre existiu, mas aumenta ou diminui consoante a tensão”.

Em paralelo, também aviões russos, alguns deles bombardeiros, fazem o mesmo trajeto.

Sobre a passagem por Portugal, João Fonseca Ribeiro diz que se trata de uma inevitabilidade. Seja para mostrar presença, seja para terem atividade efetivamente relevante, estes navios russos teriam de passar sempre por águas portuguesas, mesmo que não as águas territoriais, que só se estendem por 12 milhas a partir da costa e onde não podem passar navios sem autorização do Estado.

Mas, mesmo que essa passagem seja apenas nas chamadas águas internacionais sobre as quais Portugal exerce direitos económicos (a Zona Económica Exclusiva), compete à Marinha portuguesa fazer o acompanhamento de navios de outros países. “Portugal deve tratar o mar em termos de segurança e defesa e aí tem de estabelecer uma presença naval, ser capaz de ter meios perante a passagem de quaisquer navios de guerra”, esclarece João Fonseca Ribeiro.

E essa obrigação não se faz apenas para proteção nacional mas também das alianças a que Portugal pertence, como a NATO. Um dos grandes perigos da presença russa em águas patrulhadas pela Marinha portuguesa é o eventual mapeamento dos cabos submarinos, essenciais para as telecomunicações entre continentes, nomeadamente entre Europa e o resto do mundo. “São recursos e infraestruturas críticas que têm de ser protegidas”, sublinha João Fonseca Ribeiro, destacando que a simples presença de meios portugueses já “confrange essas ações por parte de outros Estados”. Neste caso em concreto, o Estado russo.

Os cabos submarinos que ligam Portugal ao mundo (Submarine Cable Map)

Embarcações científicas como o Akademik Karpinskyi ou o Professor Logashev podem estar precisamente a fazer o estudo das águas que fazem parte da ZEE portuguesa. É que por Portugal passam 13 cabos essenciais para manter ligações como a Internet. Mas há muitos outros que ficam ao largo dos Açores, muitos deles a fazerem ligações entre países como França e Estados Unidos. De resto, é desta forma que passam 95% dos dados em todo o mundo, muitos deles operados por empresas como a Altice ou a Vodafone.

O próprio comandante João Fonseca Ribeiro chegou a fazer este tipo de vigilância, lembrando que muitos navios passavam ao largo dos Açores quando regressaram para a base de Murmansk, no Ártico. “Fazíamos o acompanhamento porque, se a situação se degradasse, sabíamos a posição da esquadra [russa]”, recorda João Fonseca Ribeiro, que fala em missões ao abrigo da vigilância exigida pela NATO, mas que também é um “exercício de soberania”.

Uma situação semelhante ao que pode estar a acontecer. Pode ser só mesmo “trânsito marítimo”. É que muitos navios vêm e vão de e para o porto de Tartus, cidade síria que tem ligação ao Mar Mediterrâneo, e onde a Marinha russa tem intensificado a presença, até porque não pode, ao abrigo do acordo de cereais, entrar no Mar Negro através do Estreito do Bósforo.

João Fonseca Ribeiro explica que esses meios navais fazem, periodicamente, a substituição uns dos outros, o que acaba por fazer com que “naturalmente” passem pelas águas nacionais.

Também não é de deixar de parte uma outra hipótese: a simples intenção dissuasora da Rússia, que tem ameaçado, de forma constante, o Ocidente. A simples presença de navios capazes de um ataque de larga escala pode, na lógica de Moscovo, ser suficiente para deter eventuais manobras ocidentais.

Alerta para um problema português

Em março passado, a falha de uma missão de acompanhamento a norte da ilha do Porto Santo, na Madeira, gerou polémica na Marinha Portuguesa, após 13 dos militares da guarnição (quatro sargentos e nove praças) terem recusado embarcar por razões de segurança. A missão destinava-se, precisamente, a acompanhar um navio russo, missão essa que acabou por não acontecer.

Na altura, o chefe do Estado-Maior da Armada, almirante Gouveia e Melo, criticou os militares do navio Mondego que desobedeceram às ordens, dizendo que o caso é de “uma gravidade muito grande” e que a "Marinha não pode esquecer, ignorar ou perdoar atos de indisciplina".

Entre as várias limitações técnicas invocadas pelos militares para se recusarem a embarcar no NRP Mondego constava o facto de um motor e um gerador de energia elétrica estarem inoperacionais, entre outras supostas deficiências do navio.

A Marinha confirmou que o navio Mondego estava com “uma avaria num dos motores”, mas referiu que os navios de guerra “podem operar em modo bastante degradado sem impacto na segurança”, uma vez que têm “sistemas muito complexos e muito redundantes”.

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