O que é e como funciona a lei marcial, que nunca poderia ser aplicada em Portugal

1 mar 2022, 13:53

Foi decretada por 30 dias na Ucrânia, mas é expectável que venha a durar mais. O que está em causa, o que aconteceria em Portugal e as outras vezes em que a lei marcial foi utilizada

“Vamos introduzir a lei marcial em todo o território do nosso país”. Foi assim que, a 24 de fevereiro, e poucas horas depois da invasão russa, o presidente da Ucrânia anunciou que o país entrava em guerra, alterando a lei para possibilitar um combate mais adequado.

Foi com base nessa lei - "O Regime Legal da Lei Marcial" - que Volodymyr Zelensky decidiu proibir homens entre os 18 e os 60 anos de saírem do país e libertar todos os presos com experiência militar disponíveis para combater pelas forças ucranianas. “Sob a lei marcial, os participantes nas hostilidades, ucranianos com experiência de combate, serão libertados e poderão expiar a sua culpa nos lugares mais perigosos da guerra”, disse o presidente, admitindo que tomara uma decisão moralmente difícil.

O que é a lei marcial?

A lei marcial é uma figura jurídica que pode ser invocada por um Estado para agir perante uma ameaça excecional, como é o caso de uma invasão militar. Implica a suspensão da lei civil, restringindo direitos de cidadãos e dotando as Forças Armadas de mais poder, para que possam garantir a segurança e fazer face ao agressor.

Segundo o comunicado da presidência ucraniana, o Comando Militar, em conjunto com o Ministério dos Negócios Estrangeiros e os governos, deve assegurar que as medidas são cumpridas. Sem especificar quais, o documento dava conta de que alguns direitos e liberdades consagrados na Constituição da Ucrânia serão restringidos temporariamente durante este período.

Na vigência desta lei, as Forças Armadas passam a deter o controlo da ordem civil, suprimindo várias liberdades e garantias aos cidadãos. Passam a ser os militares, e não os polícias, a deter o poder de garantir a ordem. Tipicamente, estas medidas são acompanhadas de confinamentos e/ou de recolher obrigatório.

Tropas ucranianas aguardam russos em Kiev (AP Photo/Oleksandr Ratushniak)

De acordo com major-general Carlos Branco, que falou à CNN Portugal, trata-se de uma supressão de vários direitos, como a liberdade de reunião ou a liberdade de expressão. A lei marcial “aumenta as prerrogativas do governo para impor aos cidadãos algo que foge à normalidade”, explica.

Com esta lei pode surgir a figura de requisição civil, com o Estado a poder chamar cidadãos para o combate ao invasor. É na requisição civil que Volodymyr se baseia para permitir a saída antecipada de reclusos das prisões, assim mobilizando mais recursos para combater a Rússia no terreno.

A constitucionalista Teresa Violante sublinha que a lei marcial é “aplicável em contextos extremos”, como o que ocorre na Ucrânia. A professora e investigadora traça ainda uma diferença relativamente a todas as outras figuras legais: a lei marcial pode suspender, dependendo dos casos, todos os direitos dos cidadãos, incluindo o direito à liberdade religiosa ou até o direito à vida. É uma lei que, basicamente, “não tem limites”.

Existem diferenças entre o estado de emergência (que Portugal viveu em períodos durante a pandemia da covid-19) e a lei marcial, nomeadamente no que diz respeito à duração. Enquanto o primeiro tem um tempo limite - em Portugal só pode ser decretado por um máximo de 15 dias, podendo ser renovado - o segundo tem um limite maior de duração, sendo expectável que, no caso ucraniano, essa lei dure tanto quanto durar a presença russa naquele território. O primeiro período de lei marcial entrou em vigor a 24 de fevereiro e foi decretado por 30 dias.

De acordo com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, "quando a lei marcial está em vigor, o comandante militar de uma área tem autoridade ilimitada para decidir ou fazer cumprir as leis". Note-se que, naquele país, a lei marcial pode ser declarada a nível estadual.

"A lei marcial suspende todas as leis existentes, bem como a ordem civil e o normal funcionamento da Justiça", refere aquele órgão americano.

No caso norte-americano, por exemplo, há alguns limites à lei marcial, como o de julgamento de civis em tribunais militares.

A lei marcial aplica-se em Portugal?

Não. A Constituição da República Portuguesa (CRP) não prevê a figura de lei marcial, que no nosso país acaba por ser equiparada ao estado de sítio ou estado de emergência, que podem entrar em vigor “nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública”.

Isso mesmo está consagrado no artigo 19.º da CRP, que prevê que aquelas duas figuras legais permitem a suspensão do “exercício dos direitos, liberdades e garantias”. Foi o que aconteceu em 2020, e durante o ano que se seguiu, com o Governo a decretar vários estados de emergência para fazer face à pandemia de covid-19.

Na prática, o estado de emergência aplica-se mais em contextos de saúde, de calamidade natural ou de ordem democrática. Em casos militares, como o que aqui exploramos, a figura equiparável à lei marcial em Portugal, ainda que com diferenças, é o estado de sítio, que pode vir acompanhado de um grande reforço das Forças Armadas na rua, o que já acontece na Ucrânia, onde grande parte das cidades estão desertas de civis, vendo-se apenas militares em posições estratégicas.

“As Forças Armadas ganham muito mais poder, passam a tratar de matéria de segurança interna que não era da sua alçada e assumem a defesa militar da República”, explica Carlos Branco, sinalizando que continua a existir, no caso português, uma dependência relativa ao Governo e ao Presidente da República, este último no cargo de chefe máximo das Forças Armadas.

“O estado de sítio é a figura que temos para ameaças à integridade do Estado português”, refere Teresa Violante, que nota que, tal como no estado de emergência, também o estado de sítio prevê a requisição civil, na qual o Estado pede aos cidadãos serviços extraordinários que, em contexto de guerra, podem levar à mobilização de civis para o combate armado. Foi o que aconteceu na Ucrânia, que impediu todos os homens entre os 18 e os 60 anos de deixarem o país. Também isto poderia acontecer em Portugal.

De resto, a própria CRP reconhece que o estado de sítio se aplica a situações de maior gravidade: “O estado de emergência é declarado quando os pressupostos se revistam de menor gravidade”.

Quanto à possível libertação de reclusos, essa poderia ocorrer fora do estado de emergência ou do estado de sítio, mas tendo em conta uma situação de guerra, o mais ajustado seria que esse enquadramento legal se fizesse durante o estado de sítio.

Teresa Violante refere que a libertação de prisioneiros seria possível em Portugal, mas sublinha que a situação teria de estar prevista na proposta de estado de sítio que o governo teria de submeter à Assembleia da República. Com o estado de sítio aprovado, caberia ao governo em funções elaborar legislação que pudesse libertar presos.

Recorde-se que, para combater a pandemia, vários países, incluindo Portugal, libertaram reclusos de forma antecipada, com o objetivo de evitar surtos nos estabelecimentos prisionais.

Quais as consequências para a população?

Na lei marcial, como no estado de sítio ou estado de emergência em Portugal, está prevista a supressão de liberdades e direitos individuais. Entre esses estão a liberdade de reunião ou de expressão, mas há outros que, no caso português, nunca podem ser suspensos.

“A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião”, refere a CRP.

Em sentido contrário, como explica Teresa Violante, a lei marcial pode pressupor a supressão de todos aqueles direitos e liberdades. No caso português, diz a constitucionalista, a “principal mudança é a questão dos direitos fundamentais, perdendo-se esferas de proteção em relação ao poder do Estado”.

“Quando esse escudo de proteção fica suspenso, essa é a maior mudança para os civis, que podem ficar sujeitos ao comando das Forças Armadas”, acrescenta.

O major-general Carlos Branco destaca que, em estado de sítio, pode haver até uma requisição para que empresas possam ser intervencionadas, no sentido de aumentar o esforço de guerra, passando a produzir material que possa ser necessário naquele caso.

A lei marcial na história

Não muito comum, mas tem sido utilizada. Precisamente na Ucrânia, em 2018, foi esta figura legal que o então presidente Petro Poroshenko decidiu aplicar para fazer face a um ataque russo a três navios ucranianos. Mais recentemente, e também na Ucrânia, a lei marcial estava em vigor na região de Donbass, onde ficam as repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk. Agora alargou-se a todo o território.

Antes disso, em 2017, o presidente das Filipinas declarou a lei marcial em parte do território depois de guerreiros do auto-proclamado Estado Islâmico terem assassinado um chefe da polícia, incendiado edifícios e raptado um padre católico.

Nos Estados Unidos, e de acordo com o Departamento de Justiça, a lei marcial foi declarada nove vezes desde a Segunda Guerra Mundial. Em cinco desses casos, foi utilizada para combater a resistência a decretos federais de dessegregação.

Já em 2020, na Arménia, o governo decretou a lei marcial por causa dos conflitos na zona de Nagorno-Karabakh, temendo-se na altura uma guerra entre aquele país e o Azerbaijão.

Noutros episódios históricos, como o do massacre da praça de Tiananmen, na China, ou o da guerra na Jugoslávia, também houve recurso à figura da lei marcial.

Tropas chinesas na praça Tiananmen em 1989 (Vincent Yu/AP)

 

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