O que aconteceu no número 2 da rua Pershotravneva? O impressionante relato dos sobreviventes de Izium

CNN , De Teele Rebane e Olga Voitovych
19 out 2022, 09:00

Pelo menos 440 sepulturas não identificadas foram descobertas na recém-libertada cidade ucraniana

Mykhailo Yatsentiuk deixou a cave para fazer chá para a neta, no momento em que a bomba caiu. Quando recuperou a consciência, meia hora depois, toda a secção central do seu bloco de apartamentos tinha sido destruída. A cave, onde se tinha abrigado com a família e vizinhos, estava envolta em chamas.

O governo ucraniano diz que 54 pessoas morreram no complexo de apartamentos no número 2 da rua Pershotravneva, em Izium, no leste da Ucrânia, a 9 de março, quase metade dos moradores do edifício. Famílias inteiras foram mortas no ataque, incluindo os Yatsentiuks, os Kravchenkos e os Stolpakovas.

Os seus destinos permaneciam largamente desconhecidos até há algumas semanas, quando as forças ucranianas, na tentativa de uma contraofensiva, recuperaram Izium após seis meses de ocupação russa, revelando um cemitério em massa nos arredores da cidade.

A maioria dos residentes do número 2 da rua Pershotravneva foi enterrada entre mais de 400 sepulturas, poucos com marcas de identificação para além de números grosseiramente escritos em cruzes de madeira.

Depois de falar com um sobrevivente, ex-moradores e familiares, e de rever fotos e vídeos tiradas no rescaldo do ataque e após a libertação da cidade, a CNN pode agora contar a história do que aconteceu no número 2 da rua Pershotravneva, naquele dia.

Apenas os escombros permanecem entre as duas torres no número 2 da rua Pershotravneva, em Izium, numa imagem do dia 30 de setembro. Várias famílias que se abrigaram na cave sob a parte central do edifício foram mortas. Mykhailo Yatsentiuk

"Comecei a gritar... Ninguém respondeu"

Tudo o que restava do bloco de apartamentos eram duas torres de cada lado, que estavam acompanhadas por uma pilha de escombros no meio.

Meses mais tarde, após a libertação de Izium, Dmytro Lubinets, o Comissário para os Direitos Humanos do parlamento ucraniano colocou-se em frente às ruínas e declarou a morte das vítimas como "resultado de um ataque aéreo das tropas russas" e parte do "genocídio da nação ucraniana".

Os moradores locais dizem que, após o ataque aéreo, as forças russas atacaram o edifício com tanques, que disparavam do outro lado do rio.

Quando o fumo desapareceu, paredes, pisos e tetos tinham sido arrancados, revelando as casas das pessoas que lá viviam. Muitas delas estavam agora mortas, enterradas na sua própria cave, onde se tinham abrigado.

Yatsentiuk perdeu sete membros da sua família naquele dia – a esposa Natalia, a tia Zinaida, a filha Olga (também conhecida pelo diminutivo Olya) Kravchenko e o marido Vitaly Kravchenko, os filhos de ambos, Dima, de 15 anos, Oleksii, de 10 anos, e  Arishka, de 3 anos, a neta para quem Yatsentiuk tinha ido fazer chá.

"Comecei a gritar Olya, Natasha, Vitaly... Ninguém respondeu", disse. "Quando subi [ao rés-do-chão], sentei-me e comecei a chorar, a gritar. Oh Deus."

Uma imagem tirada pelo sobrevivente Mykhailo Yatsentiuk, no dia 30 de setembro, mostra os destroços da sua antiga casa no número 2 da rua Pershotravneva. Mykhailo Yatsentiuk

"Era óbvio, na altura, que as pessoas morreram em família"

Izium, com uma população de mais de 40 mil pessoas, antes da guerra, é uma cidade pequena, do género em que os colegas da escola primária permanecem amigos para a vida e as famílias vivem no mesmo edifício durante gerações. Anastasiia Vodorez e Elena (Lena) Stolpakova cresceram juntas.

Vodorez descreve os Stolpakovas como uma família "muito feliz e unida". "Os amigos sempre se reuniram em casa deles, porque nos divertimos muito lá", disse à CNN, da República Checa, onde vive há quatro anos.

Quando se deu a invasão russa da Ucrânia, amigos pediram a Lena que deixasse Izium, mas o pai, Aleksander, recusou-se a deixar a sua casa no número 2 da rua Pershotravneva. Quando os amigos souberam que a casa da Lena tinha colapsado devido ao bombardeamento, decidiram que "até a encontrarmos, ela estaria viva para nós".

Os esforços de resgate começaram no final de março; os primeiros corpos foram retirados pouco menos de um mês após o ataque. "Ficou claro então que as pessoas morreram em família", disse Tetiana Pryvalykhina, outra moradora do número 2 da rua Pershotravneva, que tinha deixado a cidade, mas perdeu a mãe que era "profundamente religiosa", Liubov Petrova, no ataque aéreo.

Liubov Petrova, ao centro, fotografada com a família em 2018, em casa, no número 2 da rua Pershotravneva. Tetiana Pryvalykhina

Em vez da cave que tinham utilizado como abrigo antibomba, havia agora uma cratera. "As pessoas ficaram em bocados, a minha mãe ficou em bocados", disse Pryvalykhina.

Os socorristas locais trabalharam sob as forças ocupantes da Rússia para encontrar e enterrar os corpos. A irmã de Pryvalykhina, Victoria, ia ao local todos os dias na esperança de encontrar a mãe. "As pessoas estavam sem rosto. Eram muito difíceis de reconhecer. Eles levaram os corpos sem cabeça, levaram os braços e as pernas separadamente", Pryvalykhina recorda o que a irmã lhe contou.

A família Stolpakova foi finalmente encontrada em maio. "Toda a família estava na cave: Lena, o marido Dima, as duas filhas [Olesya e Sasha], os pais de Lena, Aleksander (Sasha) e Tania, a irmã mais nova de Lena, Masha, e também lá estava a avó de Lena, Liuda", disse Vodorez. O único membro sobrevivente da família era a outra avó de Lena, Galia, que vivia do outro lado da cidade.

Todas menos 12 das pessoas que morreram naquele prédio foram enterradas numa vala comum, num pinhal perto da cidade, de acordo com Yatsentiuk. Muitas famílias disseram que não podiam enterrar ou visitar as sepulturas dos seus entes queridos enquanto a cidade estivesse sob ocupação russa.

Festa de Ano Novo de 2022 na casa de Elena Stolpakova no número 2 da rua Pershotravneva. Na imagem, da esquerda para a direita, Elena, Dima, Anastasiia Vodorez e a irmã de Anastasiia, Оksana. Esta é a última fotografia que tiraram juntos. Anastasiia Vodorez

Antes de ser destruída por bombardeamentos, o número 2 da rua Pershotravneva era um edifício conhecido na cidade pelo seu sentido de comunidade e canteiros de flores bem conservados. Era um local onde as gerações mais novas organizavam churrascos e as gerações mais velhas se reuniam para conversar.

"A casa estava sempre cheia de risos de crianças, havia sempre muitas crianças no parque", recordou Pryvalykhina sobre a sua antiga casa.

Deixou Izium com a filha no dia 4 de março, apenas cinco dias antes do ataque aéreo que matou a mãe. Petrova não queria sair de casa há mais de 30 anos. Foi uma das últimas a ser retirada dos destroços.

"Fiquei de pé e rezei"

A maioria das sepulturas na vala comum estão marcadas com cruzes de madeira simples; algumas têm flores ou grinaldas por cima.

As sepulturas da família Stolpakova eram algumas das poucas com nomes e datas de nascimento e morte. O túmulo de Liubov Petrova está marcado apenas com o número 283. Outros podem permanecer anónimos para sempre.

Um memorial aos mortos do número 2 da rua Pershotravneva numa imagem do dia 30 de setembro. Mykhailo Yatsentiuk

Yatsentiuk deixou Izium depois de ter enterrado a família em abril, mas voltou desde então numa missão humanitária. Embora os ucranianos estejam novamente no controlo da cidade, ainda não há eletricidade na zona e faltam mantimentos básicos como comida e medicamentos para as pessoas.

Passou pelo número 2 da rua Pershotravneva no dia 30 de setembro. Nessa altura, os escombros já tinham sido limpos. Tudo o que restava eram os esqueletos das duas torres e canteiros de flores com memoriais para as pessoas que ali morreram.

"Visitei a minha casa várias vezes", disse. "Desta vez fiquei parado a rezar."

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