O que aconteceu a Victoria, Vlad, Tatiana, Andrii ou Nazar, refugiados ucranianos que escolheram Portugal? Histórias de dificuldades no alojamento, no trabalho, na burocracia e nos apoios

4 mar 2023, 22:00

Não é possível, um ano depois do início da guerra, recuperar muitas das histórias de refugiados que a CNN Portugal foi contando ao longo destes meses. Ou porque as pontes que permitiram esse contacto desapareceram, ou porque as famílias deixaram o país depois de terem tratado da papelada. Mas uma coisa é certa: além dos horrores da guerra, todos passaram pelas mesmas dificuldades ao chegar a Portugal. Encontrar trabalho, encontrar casa, aprender a língua, escapar de quem os queria explorar, ultrapassar a burocracia

Victoria, a atriz, foi tentar o sonho no Reino Unido. “Cada passo com os documentos foi tão complicado”

Victoria Mushtey foi surpreendida pela guerra no meio das férias. E, por isso, acabou por ficar em Lisboa. De atriz que contracenou com o presidente Volodymyr Zelensky na famosa série “O Servo do Povo” a refugiada, encarando um papel que nunca imaginou.

Um ano depois do início da guerra, Victoria está no Reino Unido. Os pais, que tinham encontrado refúgio na Guarda, acabaram por voltar à Ucrânia e seguiram depois para a Alemanha. Mas mantém-se uma ligação com a capital portuguesa: a irmã e a tia de Victoria continuam a viver cá.

Ela decidiu sair de Portugal por causa da profissão, porque a língua era uma barreira. Até chegou a trabalhar como atriz, no Porto, ao abrigo de uma bolsa atribuída pelo Teatro Nacional São João a profissionais da cultura ucranianos refugiados em Portugal. Em julho, apresentou “Ucrânia – Palco Livre/Cinco Estações”.

E o caminho fez-se, depois, fora de Portugal, onde elogia as pessoas, a natureza, a comida, o pôr do sol, o vinho, a arquitetura. Mas não a burocracia. “Não esperava que cada passo com os documentos pudesse ser tão complicado. É também uma das razões pelas quais decidi ir-me embora”, diz à CNN Portugal. E muito menos o acesso a habitação: “Já passou um ano e as minhas familiares ainda não conseguiram encontrar um lugar apropriado.”

Victoria tem regressado várias vezes a Kiev, onde vivia antes do conflito. “É doloroso. Não existe já o país que havia antes da guerra. É outro sítio, com novas regras e outras pessoas. É importante libertar os sentimentos de nostalgia e aceitar a nova realidade. A Ucrânia continua a ser para mim um lugar de poder e a minha casa.”

O desejo é de que a Rússia perca o conflito e pague pelos seus danos. E que a “máfia que está sentada no Kremlin seja presa”.

Vlad, o empresário apaixonado por gastronomia, continua em Lisboa. “Não há nenhum sítio para onde voltar”

Ao fugir da guerra, Vlad Shishko encontrou em Portugal uma nova família. Com Valentina, Natalia e Sofia partilhou as tristezas e as angústias de ver a terra natal em conflito. Mas também os sonhos: como o de abrir um restaurante ucraniano em Lisboa. Esta vontade ainda não se concretizou, porque têm sido muitos os desafios, mais prioritários e urgentes, para resolver.

“Ainda não tomámos a decisão de sair de Portugal. Sentimo-nos em casa. E estamos muito gratos a todos pela proteção e pela ajuda nestes tempos difíceis”, conta à CNN Portugal. Até porque, na Ucrânia, a situação é “muito difícil” e “não há nenhum sítio para onde voltar”. Eram de Kharkiv, uma das cidades mais massacradas pelos russos.

Apesar da boa vontade, a vida em Portugal tem sido repleta de barreiras: Sofia tem paralisia cerebral e não há nenhum centro por perto que possa acolhê-la, permitindo à mãe Natalia ficar mais disponível para trabalhar. Entretanto vieram também para Portugal a mãe e o padrasto de Natalia, tornando ainda mais evidente os problemas para encontrar um espaço que lhes preste apoio.

“A pior coisa de Portugal é a falta de compreensão das leis e, depois, os problemas com a papelada, o apoio social, que impedem que se resolvam questões vitais” como o apoio a pessoas com deficiência ou idosos que acabaram apanhados pela guerra e tiveram de fugir, explica Vlad.

A derradeira vontade é a de voltar para a Ucrânia, em paz, sem que mais sangue inocente seja derramado. “Esperamos mesmo que a comunidade internacional aprenda as lições e as conclusões, para que não repitam o horror, a dor e os destinos destruídos que a guerra traz.”

Tatiana, que fundou uma creche para crianças ucranianas, está a estudar em Jerusalém. “Mas quero voltar a Portugal”

Tatiana Voitseshchuk já não está em Lisboa, a cidade onde, a meio de uma escala de viagem, se transformou em refugiada de guerra. Mas o que ela construiu na capital portuguesa continua de porta aberta: a creche Baby Shark, que acolhe crianças ucranianas, permitindo que as mães possam trabalhar e reorganizar as suas vidas.

Tatiana ganhou uma bolsa para um mestrado em Gestão Sem Fins Lucrativos em Jerusalém, cidade a partir da qual gere remotamente a creche em Lisboa. “Mas quero voltar a Portugal”, garante.

À Ucrânia também já voltou, no início do outono. “Senti-me muito mal porque entendi quão duro era viver sob a constante pressão dos bombardeamentos.” Em Kiev assistiu ao transporte de caixões e experienciou as falhas de eletricidade. “Mas estava muito orgulhosa de ver quão forte é o meu povo.”

De Portugal recorda os jacarandás de Lisboa bem como o apoio e a bondade de quem lhe deu a mão na missão de criar um espaço seguro para crianças ucranianas. Neste momento, a creche acolhe 50 crianças. Em um ano, já ajudou mais de 200 famílias. Na equipa trabalham onze pessoas, todas refugiadas, com direito a salário. A creche vai mudar de instalações em breve e continua a precisar de voluntários e de doações para manter o seu funcionamento.

Uma das histórias que a CNN Portugal encontrou na Baby Shark em maio passado foi a de Ilona Kubenko e da filha Eva. Elas continuam em Lisboa. Já o marido e pai está, como há um ano, a combater no exército ucraniano.

Quando visitou a Ucrânia, Ilona sentiu-se feliz e vazia. Em simultâneo. “Ela sentiu-se feliz por estar em casa com a família e amigos, mas vazia por ver como tudo tinha mudado e não voltaria a ser o mesmo”, conta Tatiana. Ainda assim, Ilona quer voltar. E ficar para sempre na Ucrânia.

Andrii, o fotógrafo, procura casa em Lisboa. “Houve quem tentasse tratar-nos como mão de obra barata”

A paixão pelas ondas da Nazaré trouxe Andrii Afanasiev até Portugal quando a guerra começou. Um ano depois, ele, a mulher e a família continuam no país. “Vivemos em Odivelas, na casa de uma família que nos acolhe, na cave, é uma cave muito boa e renovada. Podemos ficar até encontrarmos uma casa permanente. O proprietário decidiu vender o apartamento e estamos ativamente à procura de um lugar para viver, mas é uma tarefa muito difícil.”

Tem sido assim ao longo dos últimos meses, a saltar de casa em casa, vivendo da ajuda de terceiros. A decisão de sair de Portugal não está ainda tomada, apesar dos múltiplos obstáculos que foram encontrando. “O nosso maior problema é encontrar uma casa a um preço acessível. Se não o conseguirmos fazer, teremos de voltar para a Ucrânia”, conta à CNN Portugal.

A adaptação da filha ao jardim de infância foi dura. A menina “chorava todos os dias” e até recusava comer. As fotografias mostravam uma criança “triste e assustada”. E tudo por causa de uma língua, a portuguesa, que ela não compreendia e a isolava. A solução acabou por ser encontrada numa escola com pedagogia Waldorf – com maior foco, por exemplo, nos trabalhos manuais -, com o mesmo método de ensino que a filha tinha na Ucrânia.

A família deste fotógrafo não voltou à Ucrânia desde que a guerra começou. “Não temos dinheiro suficiente nem razões para ir à Ucrânia agora. Não nos resta nada lá, nem casa nem familiares.”

Quando se pergunta a Andrii qual é a melhor parte de Portugal, ele responde várias vezes com a palavra “oceano”. Afinal, foi o mar português que o trouxe até cá. E a pior parte? Aí já há mais diversidade: “habitação cara”, “burocracia”, “barreiras linguísticas”. Candidatou-se a três cursos de português mas até agora, diz, não teve nenhum.

“Continuamos sem perceber quais são os nossos direitos e responsabilidades. O Governo não nos ajuda, à exceção de um apoio muito pequeno. E, depois, também há pessoas más, que tentaram enganar-nos muitas vezes, inclusive tratar-nos como mão de obra barata”, revela o ucraniano.

Nazar, o especialista em tecnologia, desistiu de lutar. “Parece uma arena sangrenta. E eu não quero fazer parte”

Uma das primeiras famílias ucranianas a chegar a Portugal na condição de refugiada foi a de Nazar. Estavam no Sri Lanka quando a guerra começou. Como não conseguiam voltar a Kiev, acabaram em Lisboa.

Um ano depois, estão nos Estados Unidos da América, onde já viviam alguns familiares. Foi isso que ditou a decisão. “Portugal é um dos meus países favoritos, sobretudo os Açores e a área de Sintra. Penso que irei visitá-lo muitas vezes no futuro. Mas aqueles dois meses depois da guerra ter começado foram um pouco duros para nós. Não sabíamos a língua e era extremamente difícil encontrar um apartamento”, recorda Nazar.

A família nunca regressou à Ucrânia. E o pai, que estava disposto a seguir para a terra natal para combater, repensou muitas coisas sobre esta guerra. “Estava pronto para a batalha. Era claro e óbvio. Mas o que eu vi era que o mundo continuava a comprar recursos da Rússia que financiam esta guerra e, ao mesmo tempo, a dar armas e dinheiro para a Ucrânia. A própria Ucrânia fechou as fronteiras aos homens. A Rússia forçou os seus homens à guerra. Então, parece uma arena sangrenta, com combatentes escravizados pelos seus governos e forçados a morrer no campo de batalha, enquanto o mundo atira dinheiro para esta arena, come pipocas e se diverte. E eu não quero fazer parte disso.”

Em um ano de guerra, o SEF atribuiu mais de 58 mil proteções temporárias a refugiados vindos da Ucrânia. Destes, mais de 1500 acabaram por cancelar estes títulos de forma voluntária. Não é certo que todos o que fizeram esse pedido tenham voltado para a Ucrânia, mas é o cenário mais provável: porque, com a proteção, podem viajar livremente pelo Espaço Schengen – do qual a Ucrânia não faz parte.

 

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