O novo 5.º mandamento: salvarás sem formalidades (Cracóvia » Przemysl » Lubycza Królewska » Lviv)

Germano Oliveira , Enviado especial da CNN Portugal
27 mar 2022, 08:00
Mateusz Glod (à direita na foto) é um voluntário polaco que usa o seu carro para ir a Lviv, na Ucrânia, buscar refugiados. Faz essa viagem pelo menos duas vezes por dia. Aqui na imagem com uma das famílias que socorreu (créditos: Facebook de Mateusz Glod)

REPORTAGEM. Entre os atos de horror públicos da guerra acontecem atos anónimos de grande bondade, estão em todo o sítio e manifestam-se de todas as maneiras, maneiras ora previsíveis ora nem tanto - às vezes basta guiar um carro para se mudar o curso de um conflito, o deste conflito, a invasão da Ucrânia. Isto é sobre isso, sobre como usar um só carro (ou dois ou três ou quatro) pode fazer tanta diferença na guerra - uma diferença que salva vidas

DIA 1, 19:30 / DIA 2, 11:07
CRACÓVIA, POLÓNIA

"Eu arranjo-te um sítio para escreveres", Mchal Sulinaki trabalha na Cisco em Cracóvia, é um homem de olhos claros-bonitos, "anda comigo", tem gestos como os olhos dele, aquele encontro haverá de se tornar um bilhete de ida para Lviv, na Ucrânia, mas ele ainda não sabe disso, por enquanto é só uma conversa para resolver o problema de um computador sem bateria, Mchal caminha para o hall principal da empresa, arrasta um sofá e uma mesa para junto de uma tomada, "fica à vontade, escreve o teu artigo, ninguém te vai chatear", ninguém o fez, nem o segurança, que quando apareceu estranhou o sofá e a mesa fora do sítio mas prosseguiu caminho, na manhã seguinte Mchal está noutra sala da Cisco, é uma sala onde estão dezenas de ucranianos, vão ser 390 no total, 390 em Cracóvia para depois serem esses mesmos 390 mas em Lisboa, onde entretanto já chegaram depois de terem sido transportados numa missão humanitária portuguesa, Mchal está a tomar café com vários voluntários da sua empresa que ajudam famílias ucranianas que fogem da guerra, "conseguiste escrever tudo ontem?", obrigado Mchal, ele então apresenta o jornalista aos amigos, "ele é da CNN", o jornalista completa, "da CNN Portugal", os amigos respondem, "ah, Portugal, país bonito", aquele café em conjunto vai resultar definitivamente num bilhete de ida para Lviv mas também ainda ninguém sabe disso, "o meu marido vai buscar refugiados a Lviv, sabes?, vai e vem", anuncia uma das amigas de Mchal, é Adriana, "queres falar com o meu marido?", não é preciso responder, ela já lhe está a ligar, "Waldus, tenho aqui um jornalista, ele quer ouvir a tua história", Waldus é Waldek Lisowski, 42 anos, é da Cisco também, Waldus é a maneira como marido e mulher se tratam entre si, respeitemos a intimidade de ambos e assim ele será Waldek neste relato sobre a bondade e a vertigem de uma equipa de polacos que anda a salvar gente na fronteira. 

Adriana pega no jornalista e leva-o para uma sala vazia de 10 metros quadrados, deixa o telefone no chão e sai, "fui para Lviv ontem e anteontem, trouxe alguns refugiados para a Polónia", Waldek começa a explicar o que faz, "eu e um amigo fomos lá buscar refugiados, sobretudo mães com os seus filhos, guiámos a seguir até um dos pontos de receção de refugiados na Polónia, em Lubycza Królewska, depois regressámos a Lviv, fomos e viemos, fomos e viemos, fazemos isto mais do que uma vez ao dia, normalmente duas, queremos trazer o máximo de pessoas possível, há um limite de cinco pessoas no carro mas por vezes vêm sete ou oito, mães com os seus filhos aos joelhos, fazemos isto porque queremos ajudar, fazemos isto por solidariedade", mas como é que Waldek e o amigo vão e vêm mais do que uma vez ao dia por entre as filas enormes de gente a pé mas também de autocarros e camiões que saturam a fronteira?, mas como é que os soldados os deixam ir e vir desta maneira quando os controlos se tornaram tão apertados?, que cuidados é que Waldek e o amigo têm e que riscos correm?, os refugiados não desconfiam deles?, não receiam entrar num carro de gente que nunca viram?, há relatos de taxistas a enganar ucranianos em fuga, 100 euros por sete quilómetros, há histórias de condutores que oferecem boleias supostamente gratuitas que depois de tornam insuportavelmente dispendiosas, há rumores de refugiados que entram em carros e que depois são abandonados - há muitas formas de maldade na guerra -, diz-se também que há casos de raptos, são tantos rumores e tantas perguntas para Waldek, Waldek tenta explicar, "assim que chegamos à estação de comboios em Lviv há um ponto de informação, é então anunciado por um megafone que há voluntários que estão disponíveis para levar famílias de refugiados para a Polónia, há famílias que aparecem e nós então levamos essas famílias para a Polónia, para os pontos de acolhimento mas às vezes até para as nossas casas, eu e a minha mulher temos refugiados em casa, uma mãe e o filho, esta mãe pediu-me para trazer uma colega dela para a Polónia, portanto este lugar eu já tinha reservado, mas o normal é trazermos pessoas à medida que elas vão chegando", Waldek explica que agora tem de regressar a Cracóvia mas sente que haverá de voltar à fronteira, "eu quero continuar a fazê-lo, desde que a minha mulher me deixe fazer isso", ri-se, "se ela deixar", ri-se de novo, "se ela deixar quero regressar por mais uns dias, já trouxe 20 pessoas desde que comecei a fazer isto, o meu colega também cerca de 20".

São portanto 40 pessoas, 40 pessoas entre os mais de dois milhões de refugiados que já entraram na Polónia, é tanta gente que a Polónia de 2022 é agora um país com duas bandeiras, há o branco e vermelho polaco hasteado mas o azul e amarelo também, são tantas as bandeiras da Ucrânia em Cracóvia, bandeiras pequenas dentro dos cafés ou bandeiras maiores ao longo das ruas, os edifícios são edifícios-bandeira porque há focos de luz a projetar neles o amarelo que simboliza o trigo das estepes ucranianas e o azul-céu da Ucrânia, "a Polónia é atualmente a maior ONG do mundo", escreveu no Twitter o diplomata norte-americano Daniel Fried, e é uma ONG que transformou os seus postos fronteiriços em postos com cinco mandamentos para facilitar e acelerar o acolhimento de quem foge da guerra, quem entra na Polónia vindo da Ucrânia recebe um folheto com um QR Code e um número de telefone, é um folheto em ucraniano e inglês que diz assim:

1. Se está a fugir da guerra na Ucrânia pode entrar na Polónia
2. Se não tem um sítio onde ficar na Polónia dirija-se ao ponto de receção mais próximo
3. No ponto de receção:
    - vai receber informação mais detalhada sobre a sua permanência na Polónia
    - vamos providenciar-lhe alojamento temporário na Polónia
4. Vai receber uma refeição quente, uma bebida, assistência médica básica e alojamento, assim como transporte gratuito
5. Não se preocupe com formalidades. A sua permanência na Polónia vai ser legal, não tem de submeter qualquer pedido de permanência nos próximos dias.

Este folheto é entregue por soldados polacos que carregam as malas dos refugiados e que os acompanham durante os primeiros minutos de permanência no país, a CNN Portugal fez a pé o percurso Ucrânia » Polónia depois de ter feito Polónia » Ucrânia com a comitiva de Waldek e testemunhou isto mesmo, 20 refugiados numa noite com -2ºC e sensação térmica de -4ºC, entre os 20 havia dois casais com bebés, segundo a ONU uma em cada duas crianças ucranianas tornou-se refugiada desde o início da guerra, metade das crianças ucranianas foram portanto tiradas das suas casas com a invasão russa, duas delas, dois bebés, estavam ali naquela noite de -2ºC / -4ºC, aqueles refugiados foram recebidos por militares que pegaram nas bagagens e responderam às primeiras dúvidas, os mais cínicos dirão que foi uma encenação porque havia jornalistas presentes mas os soldados só mais tarde souberam que havia jornalistas entre o grupo, mandamento quinto: "não se preocupe com formalidades" é o dogma polaco do momento e é com esse dogma que Waldek trabalha, "já estive em Lviv quatro vezes, duas vezes em cada um dos dias, anteontem estive 16 horas ao volante e ontem 19 horas, dormi duas horas pelo meio", Waldek diz que já viu soldados ucranianos e polacos abraçados, "comportam-se como irmãos", Waldek emociona-se, "há muita solidariedade", Waldek emocionou-se com os soldados abraçados tal como se emocionou na estação de Lviv quando uma crianças autista perguntou ao pai "quando é que vens?", o pai não pode ir, filha, o pai tem idade de soldado, mas o pai tem de mentir à filha para que a filha não perca o que o pai não sabe se haverá de manter durante esta guerra, a esperança, "vou em breve, filha", Waldek emocionou-se com aquela mentira, se há algo que esta guerra ensinou a Waldek e a todos os Waldeks é que ver o que se passa naquela estação através de um ecrã de televisão ou de um smartphone é doloroso, certamente que é, mas estar lá e ser parte daquelas separações faz com que se sinta um novo grau de tristeza humana, muito aguda mas tão aguda mesmo, por isso é que os Waldeks se emocionam repetidamente naquela estação com as mesmas histórias, pais que ficam para lutar e mães que partem com os seus filhos para longe, sempre as mesmas histórias mas sempre a mesma emoção, os Waldeks sentem o cheiro daquelas lágrimas enquanto quem assiste a tudo à distância pelos ecrãs das TV e dos smartphones um dia haverá de se saturar porque um ecrã não tem cheiro e a comoção mediática tem os seus prazos de validade, "tudo isto é muito emocional", repete Waldek, "é muito emocional ver todas estas pessoas à espera de transporte, tanta gente ali na estação de Lviv, é algo muito triste, são sobretudo pessoas do leste da Ucrânia, as pessoas que eu trouxe viram bombardeamentos das suas janelas, viram tudo destruído, agarraram numas malas à pressa, só o básico, passaporte e alguns documento e é só isso, fugiram sem nada", sempre as mesmas histórias mas sempre a mesma emoção, é preciso estar lá, diz ele, é preciso ver, reforça ele, "Waldek, vocês podem levar um jornalista convosco numa dessas viagens?", "sim, podemos, mas só para lá, todos os lugares para cá são para refugiados, por isso tens de ficar em Lviv, ok?", ok ok, Waldek tem alguém que pode tratar da viagem, "como te disse tenho de regressar a Cracóvia mas vou pôr-te em contacto com um meu amigo meu, ele está lá e vocês podem combinar isso", Waldek despede-se e desliga, minutos depois Adriana aparece para vir buscar o telefone dela, "tenho um grande marido, não tenho?".

São 11h07, hora local, menos uma em Portugal Continental, 40 minutos depois Waldek envia um vídeo, quatro fotos e o contacto de Mateusz Glod.

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Uma família de refugiados que Waldek Lisowski levou para a Polónia

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Outra das famílias que Waldek Lisowski ajudou

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Um carro da polícia no centro de acolhimento de refugiados em Lubycza Królewska, na Polónia, decorado com brinquedos para as crianças ucranianas

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Waldek Lisowski na estação de comboios de Lviv, na Ucrânia

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12:25 (HORA LOCAL), ÁUDIO DE MATEUSZ GLOD ENVIADO PELO WHATSAPP
Dá-me 15 minutos, estou no posto de receção do lado polaco, estamos a dar de comer a uma família que viajou connosco. Podes vir connosco, claro. A que horas consegues vir ter a Lubycza Królewska, junto à fronteira, depois de amanhã?

14:08, ÁUDIO DE MATEUSZ GLOD
Estou no caminho para Lviv, volto a telefonar-te daqui a três ou quatro horas. Falamos às 20h, ok?

14H08, ÁUDIO DE MATEUSZ GLOD
Ah, só mais uma coisa, chama-me Mat, sim?, é o mais simples para todos, chama-me assim [risos]

10H15 DO DIA SEGUINTE, ÁUDIO DE MAT
Tenta chegar a Zamosc e depois vê se arranjas um carro ou Uber, não é fácil chegar aqui a Lubycza. 

A viagem entre Cracóvia e Lubycza vai ser feita à noite porque durante o dia é preciso fazer reportagem na estação central de transportes de Cracóvia, é por onde passam todos os dias milhares dos dois milhões de refugiados, são sempre as mesmas histórias mas é sempre a mesma emoção, é preciso estar lá, "tudo isto é muito emocional", diria Waldek, e será esse dia em reportagem na estação de Cracóvia que no dia seguinte vai permitir à CNN resolver um problema com a polícia polaca.

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DIA 3, 23:30 / DIA 4, 09:45
CRACÓVIA » PRZEMYSL » LUBYCZA KRÓLEWSKA (A 30 MINUTOS DA FRONTEIRA COM A UCRÂNIA) 

Mat envia um link para o Google Maps, é a localização de um centro de acolhimento de refugiados em Lubycza Królewska, fica a 30 minutos de uma das fronteiras polacas com a Ucrânia, Lubycza é então o ponto de encontro para se sair para Lviv na manhã seguinte, fica marcado para as 09:00, "ou mais cedo se puderes", pede Mat: tanto ele como Waldek sugerem ir de comboio de Cracóvia para Zamosc e depois pedir boleia ou negociar com um taxista para se fazer os 60 minutos de estrada entre Zamosc e Lubycza mas há um problema, na estação central de transportes de Cracóvia não há maneira de se comprar bilhetes de comboio nem para Zamosc nem para Przemysl (a uma hora e 45 minutos de Lubycza), o homem da bilheteira diz que os comboios para aquelas zonas estão suspensos nessa noite, não explica porquê e diz "seguinte", são 23h30, "seguinte", há muitos refugiados ucranianos na estação de Cracóvia, há sempre, o homem da bilheteira não quer gente a empatar aquela fila, "seguinte", trata mal refugiados e não refugiados, há gente a fugir da guerra e ele não consegue fugir da antipatia, enquanto isso os voluntários polacos que estão na estação, há sempre voluntários polacos nos sítios todos, tentam ajudar como podem, há um que fala russo e espanhol e inglês e ucraniano, sabe algum italiano também, "és da CNN?", pergunta ele quando vê a máscara anticovid com o logo da CNN, "da CNN Portugal", "ah, Portugal", Portugal causa sempre um espanto bom, "é um país bonito", diz o voluntário, Portugal é sempre um país bonito nestas conversas rápidas, também é bonito fora delas, "queres ir para Lubycza?, bem, não é fácil, os comboios não estão a funcionar esta noite, tenta um autocarro, deixa ver", o voluntário pega no telefone dele e entre as várias hipóteses aponta para Przemysl, o autocarro para lá parte às 03:30 e chega às 07:30, não vai dar para estar às 09:00 ou mais cedo em Lubycza mas a escolha é entre este autocarro ou esperar pela manhã para apanhar o que houver mas a essa hora Mat já estará a conduzir para Lviv, portanto é arriscar no autocarro e esperar que em Przemysl haja um taxista com as habilidades de Alain Prost para fazer Przemysl-Lubycza numa hora e 30 minutos em vez de uma hora e 45 minutos, Matt é avisado do provável atraso.

04:08, ÁUDIO DE MAT ENVIADO PELO WHATSAPP
Przemysl fica a cerca de 1h45 de onde estou, tenta arranjar alguma maneira de vir ter aqui, deixa-me pensar na melhor solução, deixa-me pensar e eu digo-te qualquer coisa.

06:26, ÁUDIO DE MAT
Estou em Lviv agora, houve um bombardeamento perto do aeroporto, viemos o mais depressa possível para tirar as pessoas daqui, estamos à espera que cheguem as famílias e as crianças que vamos levar. Reconsidera mesmo se queres vir para Lviv, a guerra está a ficar mais próxima. Ninguém pode garantir a tua segurança aqui, o teu seguro não vai funcionar porque é uma zona de guerra, pensa bem, meu.

07:10, ÁUDIO DE MAT
Estou a regressar agora de Lviv, estou a transportar uma mãe com cinco filhos, no outro carro vai uma mãe com quatro crianças, estamos a ir devagar, as viagens de regresso são feitas a velocidade moderada, aviso-te quando chegar à Polónia, é muito rápido passar a fronteira da Polónia para a Ucrânia mas ao contrário já demora mais tempo, quando lá chegar aviso-te. 

07:24, ÁUDIO DE MAT
Hoje não é fácil chegar a Lviv por comboio devido ao bombardeamento, a cidade não está paralisada mas há muita tensão, provavelmente eles vão ter muito cuidado hoje a deixar entrar comboios na Ucrânia. Se conseguires chegar a Lubycza eu levo-te para Lviv, chego lá dentro de uma hora e meia e depois podemos ir juntos. 

07:44, ÁUDIO DE MAT
Vê as minhas mensagens anteriores, tens lá o sítio exato para ires ter connosco. Vê o tempo que demoras porque tenho de ir o mais rapidamente possível para Lviv, quero ajudar pelo menos mais uma família, mais sete ou oito pessoas, é que depois tenho de ir para Cracóvia, estou a lutar contra a minha consciência, eu quero ficar aqui mas tenho mesmo questões pessoais que tenho de resolver em Cracóvia, não sei o que fazer, diz-me se consegues ou não chegar a Lubycza. 

A estação de autocarros de Przemysl tem um banco de pedra e quase nada mais, o pouco comércio à volta está fechado e por isso é preciso sair dali, o Google Maps revela que uma caminhada de oito minutos vai dar à estação de comboios que é a primeira paragem para quem sai de Lviv rumo à Polónia e que por isso mesmo é também a última paragem para quem está a sair de comboio da Polónia para entrar na Ucrânia, o comboio que liga Przemysl a Lviv não tem hora marcada, quem o quiser apanhar tem de ir para a linha 5 e ficar lá à espera até que ele passe, pode nem sequer aparecer, naquela manhã a linha 5 está com barreiras, um bombeiro deixa a CNN passar depois de mostrada a carteira profissional de jornalista, este comboio pode ser a alternativa para ir até Lviv porque não há táxis que se vejam, são 07:45 e Lubycza fica a 1h45m cumpridas as regras de trânsito todas, a boleia de Mat está em risco, portanto o bombeiro deixa a CNN passar aquelas barreiras para ir averiguar se há comboio mas aparecem dois soldados polacos, atrás destes soldados há muitos mais, são tantos, afinal Lviv é ali ao lado e naquela manhã os russos bombardearam a 20 km da fronteira com a Polónia, os soldados começam a falar o polaco deles, gesticulam, ninguém se entende, é preciso o Google Tradutor, funciona, o militar que o está a usar explica que o comboio não vai passar durante a manhã, isso é certo, o outro militar continua a falar o polaco dele e parece exaltado, o militar que está armado com o Google Tradutor pergunta o que estamos ali a fazer, quando recebe a resposta faz um sinal para chamar um grupo de soldados, aparecem e um deles, um soldado enorme com um barba igual à do Father John Misty, diz em inglês que não se pode estar ali, que é um local reservado a militares naquela manhã, que o comboio para Lviv deve passar pelas 14h mas que ele não tem a certeza disso, "pode passar ou não", e muito educadamente pede que a CNN saia, aquela manhã ali não é para jornalista ver, o passo seguinte é ir à entrada da estação, não há táxis, dentro da estação há voluntários a darem bebidas e comida a dezenas de refugiados, lá fora aparece Wojciech Bakun, presidente da Câmara de Przemysl que se tornou popular quando se indignou no dia em que Salvini foi à cidade para supostamente apoiar os refugiados, nesse dia Wojciech Bakun lembrou que Salvini tinha andado por Moscovo vestido com uma t-shirt de apoio a Putin, Wojciech Bakun recusou-se a dialogar com Salvini, Przemysl é uma cidade pequena mas com grandes afirmações:

Entretanto Mat envia mais um áudio.

07:55
Tenho receio de que não chegues a tempo. O que recomendo é que fales com alguém em Lubycza, há muitos condutores a saírem de lá, tenta ver se alguém te dá boleia para Lviv. Se disseres que és da CNN, eles vão definitivamente levar-te.

CNN Portugal, Mat, "ah, Portugal", e pelas 07:59 aparece um táxi na estação, logo a seguir outro, "ah, táxis", um dos taxistas diz que consegue chegar a Lubycza numa hora e meia, "ah, um Alain Prost", faz um preço altíssimo mas é aquilo ou esperar por um comboio que pode nem aparecer, o taxista pede para se inserir o destino no Google Maps dele, cerca de uma hora depois Mat envia novo áudio,

09:06
Se não nos encontrarmos procura carros com cruzes vermelhas e luzes amarelas nos tejadilhos, são condutores que provavelmente vão para Lviv. São as referências essenciais para te orientares, tens é de explicar bem quem és, por que motivo vais para Lviv, que não precisas de uma boleia de volta, e vais ver que tudo se vai resolver. 

Pelas 09:39 o táxi chega ao destino marcado pelo Google, foi uma hora e quarenta de viagem, tirou cinco minutos à previsão inicial mas não cumpriu a hora e meia prometida, "ah, não é bem um Alain Prost", mas o problema é que aquele destino fica num quase descampado, não se vê ninguém nem sinais de acolhimento de refugiados, é preciso pedir ao taxista se aceita conduzir para a fronteira, ele pega no telefone dele e faz como o soldado em Przemysl, está a usar a app do Google Tradutor, "não", ele recusa-se ir até à fronteira, "não", e começa a tirar as malas da bagageira, "não vou", as malas já estão na rua, "não vou nem aceito mais dinheiro para ir, pague-me", e enquanto isso acontece aparece uma mulher a caminhar, ela de repente também está a usar o Google Tradutor para ajudar a CNN, "anda comigo, eu levo-te ao centro de refugiados, não sou refugiada mas sou ucraniana, anda", o taxista sai logo e sai mais rico, cobrou uma fortuna, na guerra a inflação é brutal, a ucraniana deixa a CNN à porta de algo parecido com uma escola, há polícias e militares à entrada, pedem imediatamente o passaporte e não deixam que se avance mais, "que fazes aqui?", "sou jornalista, tinha uma viagem para Lviv combinada com um voluntário mas não cheguei a tempo de ir com ele", "não avances mais, espera aqui", entretanto aparece um polaco, é alto e tem cabelo comprido, talvez 50 anos, "anda comigo", diz ele, os soldados polacos não entregam o passaporte e dizem que é preciso ir com aquele homem aonde ele disse, o homem entra numa sala, pede a carteira profissional de jornalista e escreve no Google o nome que está na carteira, a cara que aparece é a de um jornalista brasileiro e é uma cara que não tem nada que ver com o jornalista que ele tem ali dentro daquela sala, "este não és tu, quem és tu?", "sou jornalista da CNN Portugal, posso ir aí ao computador para provar?", mas entretanto não é preciso ir ao computador, no dia anterior a CNN Portugal tinha feito um direto durante a tarde na estação de comboios de Cracóvia, o homem viu o vídeo e devolveu a carteira de jornalista, "anda comigo", é um homem que gosta que andem com ele, dirigiu-se para uma sala ampla, é um pavilhão, está cheio de refugiados e de camas e de mesas e de comida e de voluntários, "podes ver mas não podes tirar fotografias, vou chamar alguém para falar contigo sobre o centro", aparece um voluntário, é muito novo e alto, "de que precisas?", "preciso de uma boleia para Lviv, tinha uma combinado com um condutor chamado Mateusz Glod", "não conheço", "porque é que vocês fazem todo este controlo à entrada e têm polícias e militares?", "apareceu aqui gente que queria fazer mal aos refugiados, agora é preciso controlar quem está aqui, quem entra aqui, é preciso ter cuidado, vou ver se arranjo alguém que te leve, vou anunciar nos altifalantes, mas tens de sair daqui agora, ok?, queremos salvaguardar a privacidades dos refugiados", lá fora os militares devolvem o passaporte mas explicam que não se pode sair dali, que é preciso ficar ali até eles terem uma ordem do centro para saberem o que fazer, há um homem que nos está a seguir desde que chegámos, que nos seguiu enquanto entrámos no edifício e que nos seguiu quando saímos dele, está ali agora junto a nós e aos militares, a CNN haverá de descobrir que naquele e noutros centros de acolhimento há polícias à paisana, já houve gente a tentar infilitrar-se neste centros para fazer mal aos refugiados ou para enganá-los com boleias e por isso a segurança apertou, os militares não deixam a CNN mover-se mas de repente alguém começa a berrar, "sou eu, o Mat, sou eu", é ele, o Mat, e o homem que nos está a seguir sinaliza aos militares que nos podem deixar à vontade, o homem que nos está a seguir sinaliza ele próprio que "it's ok, you can go", ele desaparece e Mat chega com um abraço, afinal ele ainda não tinha partido.

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DIA 4, 10:00 (HORA POLACA) - 14:53 (HORA UCRANIANA, MAIS UMA QUE NA POLÓNIA E DUAS QUE EM PORTUGAL)
LUBYCZA KRÓLEWSKA (POLÓNIA) » LVIV (UCRÂNIA)

Waldek já tinha enviado uma mensagem a explicar as regras sagradas: quem se voluntaria para ir buscar refugiados a Lviv tem de preparar os carros para fazer o vai e vem segundo as regras dos dois lados da fronteira, portanto é preciso usar fita cola vermelha para fazer cruzes vermelhas no capô e nas portas, é preciso ter uma luz intermitente amarela no tejadilho, colar nos vidros um papel a dizer "voluntário" em ucraniano e em polaco, é recomendado ainda que se colem bandeiras ucranianas e polacas nos carros e quando se circula de noite os médios devem estar ligados, ter luzes ligadas de noite é tornar-se automaticamente um alvo para os russos, daí terem de estar desligadas mas o interior da cabine deve ir iluminado com a luz interior e os passageiros devem ter uma lanterna a iluminar-lhes os rostos, sobretudo o condutor, para que os soldados saibam quem vai no veículo, estas são as regras sagradas, desrespeitá-las é correr o risco de atrasar um missão ou de nem sequer lhes ser permitida a passagem entre fronteiras, o carro de Mat está caracterizado dessa maneira, o de Jakub Czekaj, 37 anos e mentor da equipa, idem e do Krzysztof Kubiak, 30 anos, igualmente, vão ser três carros a fazer esta viagem para Lviv, todos eles levam medicamentos, comida e roupa para deixarem ao longo do caminho e em Lviv, quando regressarem os carros vêm só com refugiados, esta é a missão e é a hora de sair, Mat avisa que para lá vão conduzir rápido, 160 km / hora numa nacional em que eles vão circular entre a faixa da direita e da esquerda, isso mesmo, haverá carros nos dois sentidos e eles vão ao meio numa estrada que supostamente só tem duas faixas mas na qual eles criam uma terceira, "podemos fazer isso sem qualquer problema, os soldados deixam porque toda a gente sabe que a nossa prioridade é chegar o mais rapidamente possível à estação de comboios de Lviv para trazermos o maior número possível de mulheres e crianças que conseguirmos", a viagem de regresso tem de ser sempre feita a velocidade menor, "quando tens crianças no carro tens de ter mais cuidado, não queremos ter acidentes, a segurança dos refugiados é o mais importante, o único problema é que os miúdos por vezes vomitam, é normal, é muito stress, ontem tinha três miúdos e uma mãe e mais uma mãe com um miúdo, depois de sairmos da estação de Lviv os miúdos começaram a vomitar, cinco minutos depois estavam a dormir".

Os carros têm regras de caracterização muito específicas

A viagem até à fronteira demora menos que os 30 minutos anunciados pelo Google Maps, é tudo muito rápido e vertiginoso, "eu nem sabia que tinha esta habilidade para conduzir", Mat ri-se enquanto diz isto, "às vezes é estranho regressar a Cracóvia e ter de respeitar as regras de trânsito todas", Mat ri-se outra vez e acelera, é preciso chegar rapidamente a Lviv, os carros que circulam à direita e à esquerda abrem espaço para Mat, Jakub e Krzysztof passarem, ninguém apita, chegamos à fronteira, Mat pede o passaporte, sai, avisa que há jornalistas no carro, "podem seguir", diz um soldado, antes de seguirmos aparece um americano, "dás-me boleia?, não me deixam passar a pé a fronteira para a Ucrânia", Mat hesita, é um americano muito alto e entroncado, tem a cara seca de um militar de elite e os braços muito abertos de quem tem bíceps de guerra, um carro humanitário não pode correr riscos e dar boleia a um desconhecido, seja militar ou não continua a ser um desconhecido, há muita gente a pedir favores para o exército ucraniano, a própria CNN Portugal foi abordada para levar walkie-talkies militares até Lviv, Mat explica ao americano que não dá mesmo para dar lhe boleia, que é um carro humanitário que tem de cumprir regras e uma delas é saber quem entra dentro daqueles carros, o americano fica irritado, é um homem demasiado alto e demasiado forte para estar irritado e por isso Mat segue em frente, "agora vamos para o lado ucraniano, eles vão verificar os carros, vão fazer a verificação de passaportes", avisa Mat, "vamos receber um papel oficial que entre outras coisas identifica a nossa matrícula e o número de pessoas que estão no carro, este papel é sagrado, meu, se o perderes não vai dar para entrar na Ucrânia, estamos sempre a vigiar este papel, é que a seguir a este controlo há outros e precisamos de mostrar este papel, que vai ser carimbado três vezes". 

Mat tem 33 anos, parece o vocalista de uma banda indie, usa óculos espelhados da Northweek e tem uma bela tatuagem colorida no braço esquerdo, usa uma barba média-longa hipster e é de uma simpatia monumental, "o lado ucraniano é muito rápido, é fácil entrar na Ucrânia se cumprirmos as regras de identificação, já entrar na Polónia demora mais tempo, eles demoram tempo, mas se tudo correr bem conseguimos reentrar mais depressa, hoje conseguimos reentrar na Polónia em 25 minutos, foi a vez mais rápida de todas, a mais longa demorou duas horas e meia", Mat pára o carro, "podes ajudar-me?", tem caixotes cheios de sandes de presunto na mala, há que deixá-las numa tenda que socorre e alimenta os refugiados, aquela mesma tenda alimenta os soldados ucranianos além de quem foge da guerra, a fronteira é um sítio onde todos ajudam todos, "nós vamos buscar as pessoas a Lviv e trazêmo-las de volta sem elas terem de se preocupar seja com o que for, tratamos de tudo, há condutores que as deixam na fronteira e regressam a Lviv para ir buscar mais pessoas e essas pessoas ficam à espera até terem a sua documentação processada e só assim entram na Polónia, pode demorar muito tempo, a nossa abordagem é mais em função da qualidade do que da quantidade de pessoas, garantimos que comem, tratamos do registo delas, se as crianças precisarem de fraldas ou seja do que for nós tratamos disso, garantimos que elas também descansam, o staff do centro de refugiados assegura todos estes cuidados, e a seguir regressamos a Lviv para ir buscar mais pessoas", explica Mat, "depois do bombardeamento desta noite, e quando entrarmos em Lviv, vais perceber que as pessoas estão assustadas, elas estão à espera que o conflito escale, que chegue a Lviv, elas estão a ver o conflito a aproximar-se, já houve dois bombardeamentos, no primeiro morreram mais de 20 pessoas e ficaram feridas mais de 100, atingiram um centro de treino de militares, eu estava a dormir em Lviv nessa noite, ouvi o estrondo, não ouvi o bombardeamento hoje, passei a fronteira da Polónia para a Ucrânia pelas 05:30, foi mais ou menos quando aconteceu, cerca de meia hora depois, mais ou menos, mas não ouvi", conta Mat, "as pessoas que trouxemos hoje antes de vos encontrarmos, uma mãe com quatro filhos, estavam tão assustadas e stressadas que não se queriam separar entre os nossos carros e foram todos para o banco de trás do meu, a senhora não se queria separar dos miúdos e eles dela e por isso ela sentou-se atrás com eles todos, tudo isto aconteceu depois do bombardeamento desta manhã no aeroporto, foi muito stressante".

Mat está a conduzir a 120/130 km/h, às vezes mais por vezes menos, é uma estrada nacional não muito apertada mas nem por isso propriamente larga, à semelhança do que acontecia do lado polaco também do lado ucraniano todos os carros se afastam para os de Mat, Jakub e Krzysztof seguirem rápido, muito rápido, "há vezes em que há oito pessoas neste carro, quando nós olhamos para um carro não vemos o número de lugares que tem mas quantas pessoas cabem lá dentro, a polícia, tanto do lado ucraniano como do polaco, deixa-nos sempre seguir porque sabem o que estamos a fazer e apreciam isso, toda a gente nos apoia porque sabem que as crianças são o futuro da Ucrânia e que depois da guerra vão voltar e vão reconstruir o país, toda a gente nos apoia e por isso tentamos levar o máximo de pessoas que conseguimos sempre dentro do nosso espírito de que a qualidade do transporte é mais importante que a quantidade de vezes que vamos a Lviv, mas é óbvio que queremos ir lá o máximo de vezes que conseguirmos", o máximo é quanto?, "ir e vir três vezes é o ideal, mais de três vezes e estás morto, o teu cérebro fica a derreter, meu, tive uma situação há dois dias, comecei pelas 06:00 e acabei pelas 05:00 do dia seguinte, depois disso dormi até às 10:00, mas nem conseguia dizer uma frase em condições, é muito stress, stress físico e mental mas o stress emocional é o pior, eu sei que vou quebrar, sei que isto me vai deitar abaixo, vejo tanto sofrimento, é tão difícil de aguentar, mas prometi a mim mesmo que só vou quebrar quando chegar a Cracóvia, sabes?, é que vês tanta coisa a acontecer aqui que é demasiado para uma pessoa saber lidar com isso, há um ponto em que quebras mesmo mas eu só vou quebrar em Cracóvia, se é para quebrar que seja lá, não o vou fazer aqui, há pessoas para transportar", Mat sai do carro, há mais um checkpoint, é preciso mostrar novamente os passaportes. 

Já não é a primeira vez que a equipa de Mat transporta jornalistas, Waldek ainda há dias tinha viajado para Lviv com um jornalista polaco, "quantas mais pessoas lerem o teu artigo tanto melhor, isto precisa de visibilidade", "isto" é a violência que sofre quem foge da guerra, Mat haverá de partilhar adiante casos que não esquece, histórias que o vão fazer quebrar em Cracóvia, mas "isto" é também o que Mat faz, é importante haver mais gente a ir e vir e a ir e vir, há muitos refugiados que não conseguem sair de Lviv porque os comboios estão sempre cheios e há famílias que não podem pagar a taxistas ou seja a quem for para as tirarem de lá, um jornalista a escrever sobre "isto" é a possibilidade de haver pelo menos uma pessoa mais que se sinta inspirada a juntar-se a "isto" que Mat faz, "quanto mais pessoas souberem disto mais novas pessoas aparecem, o único problema é que todas as pessoas estão a fazê-lo com os seus carros, com o seu dinheiro, o seguro do carro e o seguro de saúde não funcionam aqui porque é uma zona de guerra, o seguro da minha empresa também não, se tiver um acidente estou por minha conta, este é o meu carro, pago pela gasolina, pago por tudo, quem quiser apoiar os nossos gastos com combustível pode fazê-lo, nós temos uma conta no Revolut, podem ajudar por aí", Mat envia por WhatsApp o link do Facebook onde tem fotografias das viagens dele mas também da conta Revolut, "ninguém do Governo ou de qualquer outra instituição apoia o que estamos a fazer, fazemos isto porque queremos ajudar as pessoas, eu podia dizer 'que se foda, hoje não vou a Lviv porque houve um bombardeamento' mas não é assim que funcionamos, queremos logo é ir mais depressa precisamente por causa do bombardeamento".

Da esquerda para a direita: Jakub "Kuba" Czekaj, Mateusz "Mat" Glod, Krzysztof Kubiak [fotografados pela CNN Portugal na estação de comboios de Lviv]

Mat não sabe quantas pessoas já trouxe de Lviv, "eu não conto, isto não é sobre os números, é sobre ir e vir o mais depressa que conseguir e trazer o maior número de pessoas, é por isso que não queremos saber de quantos lugares é que o carro tem, queremos é ver quantos cabem e quantos podem vir connosco, avisamos sempre os refugiados que vai ser uma viagem apertada pelos próximos 60 quilómetros mas que numa hora e meia vão estar seguros na Polónia e que não precisam de se preocupar com nada, nós tratamos de tudo", ainda assim o primeiro contacto com as famílias nem sempre é simples, "alguns ficam simplesmente tão felizes porque vão sair da lá, imaginem pessoas que chegam de Kiev, de Donetsk, de Mariupol, eles estão simplesmente felizes porque estão a sair e vão ficar em segurança por um momento, mas os que têm crianças pequenas pedem-nos para mostrar a identificação, nós mostramos todos os carimbos nos nossos passaportes, eles enviam essas fotografias para familiares, é uma forma de se sentirem mais seguros, por isso deixamos que eles tirem essas fotografias da nossa documentação, queremos que eles sintam que não estamos aqui para fazer mal mas para ajudá-los a sair da Ucrânia o mais rapidamente possível", mas nem sempre as pessoas que Mat leva conseguem sair, "tivemos uma situação com cinco miúdos, um deles tinha feito 18 anos há um ou dois meses, estava a tomar conta de quatro irmãos dele menores mas não tinha o papel que o tornava oficialmente o tutor da família, não conseguimos estabelecer contacto nem com a mãe nem com o pai, por isso eles os cinco estavam sozinhos, mas sem esse papel que lhe conferia o estatuto de tutor ele foi travado na fronteira porque está na idade militar, não o deixaram partir, e todos os cinco decidiram que iam ficar na Ucrânia, crianças entre os 18 e os 12 decidiram que iam ficar na Ucrânia, nesse mesmo dia eu e o Kuba", Kuba é  diminutivo do mentor do grupo, Jakub Czekaj, que está a guiar o carro da frente, "nesse mesmo dia eu e o Kuba encontrámos um sítio para eles ficarem com o apoio de algumas organizações da Ucrânia e, pelo que sei, essas mesmas organizações estão a tratar da documentação para que o miúdo de 18 anos seja oficialmente o tutor da família e para que possam sair daqui", Mat está quase a quebrar enquanto conta isto mas não pode, quebrar é só quando chegar a Cracóvia, Mat contém-se, abranda as palavras, é um homem que sabe acelerar para chegar a Lviv no tempo certo mas que também domina a velocidade a que deve falar para não se quebrar em lágrimas, "este miúdo que vai conseguir sair daqui com toda esta ajuda é um dos pequenos milagres que nos mostram que nem tudo tem um final infeliz", Mat não quebrou, "mas há três dias trouxemos uma família que viajou de Donestsk para Lviv, uma mulher com dois filhos, um de um ano e três meses e outro de três anos, a única coisa que eles tinham era um saco de plástico", Mat está quase a quebrar de novo, "a merda de um saco de plástico, sabes?", Mat pára de falar, é a primeira vez naquela viagem que há um silêncio longo, "mas enquanto eu estiver aqui, enquanto eu estiver aqui não vou quebrar, isto é muito difícil, especialmente quando se reúne crianças com as suas famílias que já estão na Polónia, quando vemos homens enormes a chorar na estação de comboios porque têm de ficar para combater, por vezes é mesmo demasiado, toda a gente tem os seus limites", sempre as mesmas histórias mas sempre a mesma emoção, e de repente Mat interrompe o diálogo para falar com os outros dois carros, usam walkie-talkies, "são a melhor maneira de comunicar durante as viagens", Kuba avisa que lhes estão a oferecer dormida em Lviv, "e agora sabes também porque te estava sempre a enviar mensagens de voz", a esta velocidade a que eles conduzem e da maneira que o fazem não dá para escrever, só para falar e ouvir, no rádio começa a dar Eminem, "esta música não é a melhor para se conduzir aqui", estamos quase a chegar a Lviv, Mat tem lá um avô, um bebé, menores e mães à espera, mas entretanto Mat regressa à história daquele saco de plástico, "a merda de um saco de plástico, sabes?", ninguém sabe o que é isso, Mat, só mesmo aquela família, "ela veio de Donetsk só com aquele saco de plástico, nada mais, nada para as crianças, nada para ela própria, nem sequer uma muda de roupa, nada, eu liguei ao meu patrão na Cisco, eu sabia que ele queria acolher uma família pelo menos por um mês, eu disse-lhe que tinha esta família, que esta era a situação dela, dois bebés e um saco de plástico, disse ao meu patrão que podia levar esta família para a casa dele, vão comigo para Cracóvia e vou deixá-los na casa dele, enquanto esta mulher e as suas crianças ficarem lá eu vou procurar um sítio permanente para eles, vamos dar-lhes tudo o que eles precisem", mandamento quinto, salvarás sem formalidades.

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21:35 (HORA PORTUGUESA), ÁUDIO DA CNN PORTUGAL ENVIADO PARA MAT UMA SEMANA DEPOIS - 26/03/2022
Mat, os russos atacaram Lviv este sábado, queria só saber se estás bem, se vocês estão bem, se andam por Lviv ou não. 

21:50, MAT
Estávamos em Lviv quando tudo aconteceu mas conseguimos sair, já não estou a conduzir, passámos a fronteira, estamos todos bem. Este domingo regresso a Lviv, vou buscar uma refugiada ucraniana e o marido dela, ela tem uma doença terminal, vou levá-los para Rzeszow, na Polónia, é lá que eles vão passar os últimos meses de vida que ela tem. 

 

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