MIL DIAS DE GUERRA || Entrevista: Mário Godinho de Matos chegou a Moscovo para ser embaixador de Portugal quando a Rússia tinha uma relação "normal" com o Ocidente. Um ano depois a Crimeia foi anexada e começou a guerra no Donbass. Desde então tudo mudou
Numa semana em que se assinalam os mil dias de guerra, a Rússia elevou a retórica, nomeadamente pela atualização da doutrina nuclear. Mas temos visto o estabelecimento de muitas linhas vermelhas impostas por Moscovo que são constantemente ultrapassadas. O que diz isto da diplomacia russa?
O que é tradicional no nuclear é que o armamento serve essencialmente para dissuasão. Ou seja, é um tipo de armamento que, em princípio, não é para ser utilizado. É um elemento que durante toda a Guerra Fria foi assim, para equilibrar forças e, sobretudo, para dissuadir, de um lado e do outro, a utilização desse mesmo tipo de armamento, que é extremamente perigoso, como sabemos. É verdade que as autoridades russas, já por diversas vezes, têm referido a questão do nuclear e a eventualidade da sua utilização, mas depois, felizmente, nunca vimos isso na prática. Talvez seja um bocadinho diferente desta vez. Eu quero acreditar que ainda seja um pouco na linha de uma certa dissuasão, mas já muito perigosa. Eu quero acreditar nisso. O que acontece desta vez é que, de facto, como vimos, o presidente Putin fez uma alteração à política, no sentido de que essa utilização seja mais, digamos expedita, em função de uma série de condições que ele lá pôs. Há aqui um elemento novo que é, de facto, a autorização por parte do presidente Biden da utilização destes mísseis de longo alcance. Tanto quanto sabemos, a utilização destes mísseis, que têm um alcance de cerca de 300 quilómetros, estaria limitada à zona de Kursk, ou seja, onde, alegadamente, estarão estacionadas tropas norte-coreanas. Se assim for, e presumindo que sim, há uma limitação na utilização desse armamento especial.
E o que pode significar?
É muito difícil fazer futurologia, mas por todas as razões, por uma razão também lógica, até de calculismo político por parte das autoridades russas, eu diria que, enfim, vamos assistir aqui a um braço de ferro. Vamos assistir aqui a mais tomadas de posição, mais ameaças, mas se a situação se mantiver controlada, sobretudo neste raio ou nesta bolsa de Kursk, quero acreditar que não vai acontecer nada de extraordinário.
Do que conhece da visão russa, este é o ponto mais quente desde a Guerra Fria?
Eu creio que sim. Eu fui embaixador em Moscou de 2013 a 2017. Estava lá quando foi da ocupação da Crimeia. E, enfim, a situação que se via então nada tem que ver com esta imensa tensão política que se vive, que nós infelizmente estamos a viver neste momento. E mesmo no início da guerra… que já vai em mil dias, mesmo com todo aquele aparato, nunca sentimos esta tensão política tão intensa como como estamos a assistir. Vamos ver como é que as coisas evoluem, mas, de facto, a situação não é nada fácil.
Na retórica russa, e daquilo que foi a sua perceção, sempre foi possível ver a presença de uma pretensão de domínio sobre a Ucrânia?
Sim, conhecemos todo o passado recente, a negociação dos acordos de Minsk, que depois não se retiraram efeitos… foi um processo que se arrastou durante muito tempo, mas evidentemente que havia ali uma vaga de fundo que nos levava a crer que a situação com a Ucrânia era muito complicada e que não cessou de se complicar. Primeiro com a Crimeia, onde as coisas, apesar de tudo, correram com algum sentido de equilíbrio, mas neste momento as coisas estão muito complicadas. O que está por detrás de toda esta situação, esta conflitualidade entre a Rússia e a Ucrânia, o presidente Putin explanou-a bem logo na Conferência de Segurança de Munique, em 2007, dizendo que o fim da União Soviética foi o maior desastre geopolítico para a Rússia. E, portanto, a partir disso começou a perceber que havia ali uma ideia, uma pretensão de fundo que tem que ver com alguma nostalgia do Império Soviético. De alguma maneira, mantendo relações privilegiadas com os países da ex-União Soviética, [percebeu que havia espaço para] construir ali uma unidade política com a Ucrânia, porque era também o país mais relevante, que mais faz fronteira com a NATO. Os países [da ex-União Soviética] que foram entrando na NATO constituíam um problema que se foi agudizando e, no caso da Ucrânia, não é ainda um país da NATO, mas é um país muito relevante, é um país gigantesco, é um país com o qual a Federação Russa tem relações de todo o tipo, cultural, religioso e até étnico também. Até familiar, porque há ali imensos laços de sangue entre essas duas populações. E, portanto, a situação é ainda mais complicada. Diria que é um movimento que se vinha a formar desde lá de trás, que se percebia que havia ali uma conflitualidade latente com a Ucrânia, que era o grande país que fazia fronteira com a NATO e, portanto, transformou-se, digamos, no alvo, assim, infelizmente.
E terá sido a chegada de um presidente mais pró-Ocidente, como é o caso de Volodymyr Zelensky, a desencadear o que a Rússia classifica de “operação militar especial”?
Lembramo-nos todos das questões da praça Maidan, também do envolvimento ocidental. Antes havia um presidente pró-russo. Lembramo-nos dos acontecimentos que levaram à saída desse presidente e de algum envolvimento ocidental e definitivamente americano nessa sublevação da praça de Maidan. A partir daí é toda uma dinâmica que se cria e, com o presidente Zelensky, obviamente que há uma ligação estreita ao Ocidente, o que veio agravar ainda mais essa conflitualidade.
O senhor embaixador apanhou, já em 2014, essa anexação da Crimeia e a autoproclamação das repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk, em favor de valores pró-russos. Notou uma mudança na postura russa?
Nessa altura não estava ainda muito clara essa mudança de posição, a Crimeia é um caso muito especial por razões de todo o tipo, históricas e outras, e já havia rumores de que nessas províncias do Donbass havia uma população muito significativa de russos étnicos e que a língua russa era usada em termos muito gerais, no dia a dia, e que, portanto, aquela era uma zona de grande conflitualidade e de disputas constantes entre as populações locais, em que partes da população tinham uma certa obediência a Moscovo. Obviamente que as autoridades ucranianas reagiam de alguma maneira, a tentar controlar esse desapego. Diria que se foi notando, de 2014 até o início da invasão, uma situação que deixava antever algum desenvolvimento dramático, como aconteceu.
A futura representante da diplomacia da União Europeia, Kaja Kallas, disse numa entrevista que a Rússia tem um método de negociar que vem da União Soviética, e que passa por exigir sempre o máximo, mesmo quando não se tem nada. Sentiu este tipo de abordagens?
Os russos são tradicionalmente bons negociadores, até no sentido lato, na negociação diplomática. Assistimos a isso em vários momentos da história e, para utilizar uma linguagem assim corriqueira, são useiros e vezeiros em levar a água ao seu moinho, como se costuma dizer. Mas, enfim, essa afirmação da senhora Kallas tem algum fundamento. Ela conhece bem as autoridades russas, mas diria que isso também não é nada de extraordinariamente relevante em qualquer negociação, seja ela diplomática ou não. Sabe-se quais são as linhas vermelhas e onde é que se pode parar, ou onde é que se tem de parar, mas isso também tem que ver com a flexibilidade da outra parte. Esse é o princípio geral da negociação, de qualquer negociação e de uma negociação diplomática. Os russos são conhecidos por serem bons negociadores, são bons jogadores de xadrez, normalmente veem várias jogadas à frente.
Sobre a presença do senhor embaixador na Rússia. Encontrou-se com Sergei Lavrov?
Sim, sim, sim. Várias vezes. Com o ministro [dos Negócios Estrangeiros] Lavrov encontrei-me várias vezes por ocasião de reuniões. Uma delas foi quando o então ministro dos Engenheiros Augusto Santos Silva se deslocou a Moscovo para contactos com as autoridades russas. Estou a falar sempre desse período. Mas tive outras, cerimónias mais protocolares, receções… mas o momento talvez mais relevante em termos de contactos bilaterais foi a deslocação do ministro português a Moscovo. Também receções de fim de ano. Eles fazem tradicionalmente, não sei se ainda fazem, mas naquela altura faziam, entre o Natal e o fim de ano, ou antes do Natal, uma grande receção em que convidam todo o corpo diplomático, ou convidavam naquela altura, não sei se continuam com esse procedimento, para uma espécie de apresentação de cumprimentos de fim de ano.
E com Vladimir Putin?
Eu apresentei credenciais naquela altura [em 2013], quando as relações com Portugal e com a União Europeia estavam normais. O presidente Putin recebeu-me, junto com outros embaixadores, um grupo de 10 ou 12 embaixadores. Recordo-me que, curiosamente, comigo ia também o embaixador de Moçambique naquela altura. Uma cerimónia protocolar que se organiza no Kremlin e junta-se vários diplomatas.
De Lavrov, que é tido por quem com ele privou como um homem muito inteligente, o que guarda?
Lavrov, dentro daquela tradição russa que vem já dos tempos do ministro [Andrei] Gromiko, é ministro de Jogos Estrangeiros há 20 anos Antes foi representante da Federação Russa em Nova Iorque, nas Nações Unidas. É uma pessoa que tem uma experiência extraordinária. Rússia é um membro permanente do Conselho de Segurança, tem a experiência de um representante de um país do Conselho de Segurança, como pode acontecer com a França, com o Reino Unido, com a própria América ou com a China. É uma experiência absolutamente extraordinária, porque está no centro do mundo. Depois, já como ministro dos Negócios Estrangeiros, Lavrov é, de facto, um peso pesado e um ativo bastante valioso para Putin, porque é um homem que conhece bem a cena internacional. Vimos agora recentemente que, para esta reunião do G20, foi ele que foi representar o presidente Putin no Brasil. Tem todo esse mundo que vem de várias situações em que esteve.
E de Putin, recorda alguma coisa?
Pessoalmente, a única vez que estive com ele foi a apresentação das minhas credenciais. Há países que fazem individualmente, mas eles tentam juntar um grupo de embaixadores que tenham chegado nos últimos meses e fazem uma cerimónia conjunta. As palavras que tive foram provas de circunstância. Tínhamos uma situação muito mais normal do que aquela que existe hoje em dia. Tínhamos cooperação económica, trocas comerciais importantes, reativámos a comissão mista, que é sempre um momento de fazer trocas de experiências e não só na parte comercial, mas também na parte de cooperação científica e política e, portanto, digamos que acontecia naquela altura que estávamos numa situação normalizada. Um momento também mais protocolar em que ele fez o voto para que a cooperação com Portugal se desenvolvesse e para que a minha permanência ali fosse um elemento de alguma maneira dinamizador desse relacionamento. Eram outros tempos, não estávamos nem perto do momento que estamos agora.
O senhor embaixador esteve sempre em países… chamaria de complicados, como Cuba ou Moçambique. Sentiu diferenças nos tratamentos diplomáticos com a Rússia em relação a outros países?
Quando se entra no edifício do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia não se pode deixar de sentir, de facto, o peso da história e o peso do tempo. Aquele edifício, é emblemático. No centro de Moscovo… aquelas paredes, de alguma maneira, encerram ali uma série de situações que não podem deixar de se sentir de algum modo. Mas, enfim, negociámos alguns acordos de cooperação e, ao nível dos funcionários. Senti uma relação normal, uma negociação normal como em qualquer outro país.
Daquilo que conhece do povo russo, como estará o povo a reagir a esta guerra? Haverá um sentimento patriótico? E esse sentimento pode esgotar-se? Há a crença generalizada de que a Ucrânia também é russa?
Isso é um grande mistério porque, de facto, é conhecido o grande nacionalismo do povo russo, o que também tem com certeza razões históricas. Todos nós conhecemos aquelas histórias dramáticas da Segunda Guerra Mundial, portanto há ali um nacionalismo muito arraigado na população que assumiu, que adotou esse posicionamento, seja ele por razões de doutrinação ou de propaganda, mas é verdade que existe esse sentimento, é visível. A falta de informação para nós, aqui no Ocidente, isso é uma coisa um pouco difícil de justificar, até estranha, mas a verdade é que, com essa filtragem, podemos dizer que evidentemente será mais fácil manter esse sentimento de pertença, de nacionalismo, de um grande país… é o maior país do mundo em área geográfica, tem toda aquela história por detrás que conhecemos, enfim. A verdade é que esse sentimento existe na população.
Voltando a Portugal, alguma vez sentiu que pudesse haver algum tipo de ingerência ou influência russa na política internacional?
Em relação à política europeia, nós presumíamos já naquele tempo que as autoridades russas tinham interesse, no plano da disputa política, de encontrar contradições e tentar espicaçar contradições entre países. Era conhecido que o Reino Unido não estava cómodo dentro da União Europeia, o que deu origem ao Brexit; são conhecidos os altos e baixos naquela relação sempre complicada entre Berlim e Paris; é conhecido também o posicionamento da Polónia, já mais perto do território russo, como um país potencialmente muito relevante dentro da União Europeia e no plano da segurança e da defesa. E, obviamente, as autoridades russas não deixariam seguramente de tentar explorar um pouco essas contradições e ver se de alguma maneira podiam influenciar um ou outro país.
E na política portuguesa?
Em relação ao nosso país, não. Tínhamos uma relação muito normal. Nunca, nos meus anos, notei algum tipo de interferência.
E em relação ao papel de Portugal na guerra, como o vê? Apesar da nossa dimensão, temos uma das maiores costas europeias e, entre outras coisas, alojamos uma base norte-americana. Somos um alvo?
Nós somos um caso sui generis. Temos uma imensa Zona Económica Exclusiva, evidentemente que os barcos e os submarinos russos navegam em águas internacionais, mas temos um grande potencial marítimo (e provavelmente algumas limitações no controlo dessa área), que tem que ver com a nossa história.
E em relação ao papel de Portugal na NATO? Somos um dos poucos países que não cumprem com o mínimo de 2% do PIB para a Defesa.
Somos um país da NATO, fundador da NATO, temos obrigações que temos de cumprir, neste caso de vigilância e controlo de costa. Somos um caso curioso de pequena extensão territorial mas de grande extensão marítima. Portugal não deixará de estar sob observação das autoridades russas, uma vez que temos esta particularidade de ter uma costa e uma imensa zona marítima que pode ser explorada e cobiçada, não só pela Rússia, mas por todos os países que têm movimentações de caráter militar. Sobre os 2%, é uma questão que já vem de trás, têm sido feitos esforços nesse sentido, mas acabei de ver que há países a sugerir que numa próxima reuinão os 2% pudessem ser aumentados para 2,5%. Há aqui uma necessidade de dotar os países europeus de instrumentos e de ativos de Defesa que não têm. A indústria de Defesa europeia está num estado muito atrasado, temos vindo, desde a Segunda Guerra Mundial, a estar debaixo do guarda-chuva americano. As coisas podem mudar, o senhor Trump já disse o que pensa da NATO, e provavelmente não mudou de ideias.
Na linha da frente estão os países que mais investem. Têm medo de ser o próximo alvo? Existirá mesmo a ideia de restituir a União Soviética?
Eu sou normalmente otimista, um otimista realista. Creio que a Ucrânia é um caso especial. Para já, está longe de se admitir uma vitória clara da parte russa, toda aquela intervenção inicial foi um fiasco militar. A Rússia está a fazer avanços no terreno, mas não muito significativos, o que quer dizer que o potencial militar não é o que se temia inicialmente. Sou levado a crer que tudo acabará na mesa das negociações. Vamos ver como vai acabar.