"Ninguém acreditava, mas conseguimos”. Como uma órfã da guerra levou a Ucrânia e a Rússia a negociarem o seu regresso até ao avô

CNN , Sandi Sidhu, Roman Tymotsko e Oleksandra Titorova
3 mai 2022, 19:00

Criança está a recuperar das lesões que incluem estilhaços no rosto, pescoço e pernas. Rosto cicatrizado e postura introvertida são sinais do trauma físico e psicológico que sofreu

Quando Kira Obedinsky, de 12 anos, órfã de guerra, foi retirada da sua cidade natal de Mariupol para um hospital numa área controlada pela Rússia no início de março, a menina não tinha a certeza se alguma vez voltaria a reunir-se aos restantes membros da sua família.

Agora, em Kiev, contra todas as probabilidades, Kira senta-se numa cama de hospital com o seu avô Oleksander Obedinsky. Segundo as enfermeiras, a criança ainda está a recuperar das lesões que incluem estilhaços no rosto, pescoço e pernas. O seu rosto cicatrizado e a sua postura introvertida são sinais do trauma físico e psicológico que sofreu. Kira falou pela primeira vez à CNN sobre o seu tormento.

A família Obedinsky foi dilacerada por esta guerra. O pai de Kira, Yevhen Obedinsky, um antigo capitão da equipa nacional de polo aquático da Ucrânia, foi morto a 17 de março, quando as forças russas bombardearam a cidade. Nesse momento, Kira ficou órfã. Já tinha perdido a mãe quando tinha apenas duas semanas de vida.

Kira foi atingida por uma explosão de uma mina terrestre enquanto tentava fugir de Mariupol

Dias após a morte do seu pai, Kira foi levada para um hospital na região de Donetsk por soldados russos, depois de sofrer ferimentos enquanto tentava fugir de Mariupol com a namorada do pai.

“Os militares [russos] vieram a correr, pararam dois carros e levaram-nos para um hospital em Manhush porque estávamos a sangrar. Depois levaram-nos de Manhush para outro hospital em Donetsk”, relatou Kira.

Em Kiev, numa entrevista à CNN no início deste mês, Oleksander contou que temia nunca mais ver a sua neta, pois era quase impossível atravessar o país devastado pela guerra para a recuperar. Quando contactou o hospital onde a Kira estava internada, foi-lhe dito que eventualmente a criança iria ser enviada para um orfanato na Rússia.

O reencontro feliz, mais de um mês depois de se terem visto pela última vez, foi orquestrado por negociadores da Ucrânia e da Rússia, e incluiu uma viagem inesquecível.

O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky já visitou Kira no hospital para comemorar o seu regresso, oferecendo-lhe também um iPad para ela se entreter enquanto recupera. Oleksander disse ter contado a Zelensky que Kira estava “cansada, mas feliz” e agradeceu-lhe o regresso em segurança da sua neta. “Ninguém acreditava [que seria possível]. Mas, graças a Deus, conseguimos”, disse à CNN.

Não foi tarefa fácil resgatar Kira do território controlado por separatistas apoiados por Moscovo. No seguimento da cobertura da sua situação pelos media, o governo ucraniano disse ao avô de Kira que tinham chegado a um acordo que lhe permitiria viajar até Donetsk para ir buscar a neta. No entanto, não ia ser uma missão simples.

Destemido, Oleksander embarcou imediatamente numa viagem de quatro dias. Apanhou um comboio para a Polónia, um voo para a Turquia, um segundo voo para Moscovo, seguido de uma viagem de comboio para a cidade russa do sul de Rostov e uma viagem de carro para Donets, onde finalmente reencontrou uma Kira chorosa, contou.

Após um reencontro emocionante, cheio de abraços apertados, o par partiu para casa, seguindo o mesmo longo percurso de regresso a Kiev.

 

Oleksander Obedinsky com a neta Kira, antes da invasão russa da Ucrânia

“Tinha saudades dele”

No Hospital Okhmatdyt de Kiev, Kira preza o único bem do seu pai que conseguiu guardar após a sua morte: o seu telemóvel. Era a única maneira que tinha para se ligar ao resto da sua família enquanto estava em Donetsk.

Ela contactou Oleksander, o único familiar restante, pelo Instagram, ao enviar mensagens à namorada do seu avô para explicar onde é que tinha ido parar, contou ela.

As suas publicações de fevereiro mostravam uma Kira a posar inocentemente em selfies, não tendo qualquer ideia de como a vida se iria virar de pernas para o ar em poucas semanas. Ter esse vínculo à sua antiga vida foi fundamental para a jovem, uma vez que se encontrava num hospital rodeada de rostos desconhecidos e com saudades do seu avô.

“Fiquei feliz por lhes poder telefonar. Perdi a noção de quanto tempo tinha passado”, conta Kira, acrescentando: “Esperei imenso tempo para ele me vir buscar. Até mesmo no segundo hospital, eu esperei. Tinha saudades dele”.

A dupla reuniu-se no dia 23 de abril, afirmou Oleksander, tendo-se visto pela última vez no dia 10 de março. Ele reconhece que jamais teria sido capaz de garantir tanto a sua segurança como a de Kira se tivesse tentado recuperá-la sozinho, sem a ajuda do governo ucraniano.

"Não me teria atrevido a fazê-lo sozinho, é claro. Porque esta aventura poderia ter terminado sem a libertação da Kira ou a minha", disse Oleksander.

Kira Obedinsky em Mariupol, antes da guerra

Quando estava em Donetsk, Kira foi entrevistada por um canal estatal russo que transmitiu um vídeo da jovem a falar alegremente sobre como às vezes lhe era permitido telefonar ao seu avô. De acordo com um apresentador de televisão russo, a entrevista tinha sido utilizada como “prova” de que ela não tinha sido raptada. No entanto, Kira conta uma história bastante diferente.

“O hospital de lá é horrível”, contou ela à CNN. “A comida é má, as enfermeiras gritam e o hospital não é bom.”

Semanas mais tarde, Kira recuperou de alguns dos seus ferimentos, mas lembra-se de forma dolorosa do momento em que os estilhaços foram removidos do seu corpo.

“Fui levada para Donetsk de ambulância à noite, tiraram-me os estilhaços durante a noite. Do meu ouvido. Eu gritei e chorei muito porque sentia-os a mexer lá dentro. Havia mais na minha cara, no meu pescoço e nas minhas pernas”, disse ela.

Escondida nas ruínas de Mariupol

Agora que está em segurança em Kiev, Kira é capaz de revelar o que aconteceu exatamente em Mariupol e de que forma é que a sorte da sua família se esgotou quando tentaram fugir da cidade que estava rapidamente a ser cercada pelas forças russas.

Ela recorda viver entre estilhaços e bombardeamentos, escondendo-se com Anya, a namorada do seu pai, e os seus filhos entre as paredes destruídas da sua casa. Os tanques circulavam pelas ruas, conta Kira, lembra-se de ver homens de uniforme militar a aproximarem-se do seu quintal.

Kira diz que, depois de a sua casa ter sido arrasada a 16 de março, eles ficaram presos na cave e foram os vizinhos que ajudaram a retirá-los dos escombros. O seu pai nunca mais apareceu. Durante três dias, Kira, juntamente com a namorada do seu pai e os filhos, procurou abrigo noutra cave antes de tentar a sua fatídica fuga da cidade.

Foi a amiga de Kira que pontapeou uma mina enquanto corria, conta ela. Em seguida, Kira recorda-se de como as suas orelhas estavam a sangrar e como o cão da família da amiga absorveu a maior parte da explosão. O grupo sobreviveu, mas sofreu ferimentos por estilhaços.

Kira referiu que, devido à explosão que provocaram, foi nesse momento que as forças russas alertaram para o paradeiro do grupo. Foram levados para a cidade Manhush para tratamento imediato num hospital e, mais tarde, para outro em Donetsk numa ambulância, onde o grupo foi forçado a separar-se, deixando Kira sozinha, ferida e aterrorizada enquanto os restantes foram levados para outro lugar.

Toda esta situação está num passado longínquo para Kira, que agora joga no seu novo iPad e se abstém ao falar em descarregar mais aplicações para ouvir música, e exprime o seu entusiasmo por se reunir em breve com a namorada do seu avô.

À medida que a família se vai habituando a esta nova normalidade, o facto de estarem juntos novamente é um grande alívio para eles. "Ainda não consigo acreditar que finalmente aconteceu. Porque nós acreditávamos que iria acontecer, mas muitos disseram que era impossível. Foi um processo verdadeiramente difícil", disse Oleksander.

Descrevem ainda o entusiasmo que sentiram pelos esforços do presidente para recuperar Kira, um caso que atraiu a atenção do mundo inteiro. Mas para Zelensky, a Kira é apenas uma das muitas crianças ucranianas que ele alega terem sido deportadas deliberadamente para áreas controladas pela Rússia. Moscovo, por sua vez, denunciou as alegações de deportações forçadas como mentiras, sustentando que a Ucrânia tem dificultado os seus esforços para “evacuar” as pessoas para a Rússia.

“Estamos muito preocupados com as crianças”, disse Zelensky ao visitar Kira. “As crianças são o nosso futuro. Vamos lutar para que cada criança ucraniana regresse a casa”.

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