Na linha da frente dos combates em Mariupol: "Vocês estão malucos da cabeça"

14 abr 2022, 20:30

Jornalista português descreve a viagem por Mariupol em direção ao porto tomado por forças russas e separatistas. Há explosões e disparos o tempo todo, civis que resistem entre escombros e em caves, corpos de soldados e militares de dedo no gatilho de kalashnikovs

Como chegar ao posto mais avançado das tropas russas em Mariupol? Essa deve ser a pergunta na cabeça de todos os soldados que nos vêm ver, como se de um espetáculo se tratasse. Do outro lado do canal, a poucas centenas de metros, estão os militares ucranianos. Mas recapitulemos.

O anúncio da intensificação da ofensiva russa no Donbass pôs mais pressão militar sobre a região. Há alguns dias, no regresso de uma reportagem no teatro de Mariupol rumo a Donetsk, assistimos à passagem, em sentido contrário, de uma coluna com mais de uma centena de carros de combate e camiões carregados de militares. O que à partida parecia estar destinado ao fracasso acabou por nos levar por caminhos até à linha da frente.

O tabaco resolve

Tudo começou com o nosso condutor a sugerir levarmos um militar separatista que tinha uma missão muito concreta. Localizar e resgatar um civil de Mariupol. Depois de ponderarmos, decidimos que aceitaríamos, mas ao chegar à cidade os nossos caminhos iriam separar-se. Com essa condição, arrancámos numa viagem de hora e meia que nos permitiu ver que o caminho que separa Donetsk de Mariupol tinha agora soldados por todo o lado e infindáveis postos de controlo. Em cada um destes, para além de termos um soldado como ás de um complexo baralho militar, tínhamos o trunfo de todos os repórteres de guerra, mesmo daqueles que não fumam: volumes de tabaco. Com Kapuscinski e tantos outros jornalistas, aprendemos que um pacote de cigarros pode resolver muita coisa numa barreira militar. É assim que num ritmo infernal, a cerca de 120 km/h que mais pareciam 200 neste Lada soviético, rasgamos estrada fora passando cerca de uma dezena de postos de controlo. No último desta estrada infinita, um soldado reconhece-nos de dias anteriores e diz "olá".  Acabámos de chegar a Mariupol.

Já no centro da cidade, embrenhamo-nos num bairro e paramos o carro. Sincronizamos os relógios e decidimos hora e ponto de encontro. Às 14:30 no teatro. O condutor e o militar das forças separatistas partem e ficamos entregues à nossa sorte. Partimos à descoberta do quarteirão enquanto se ouvem intensos disparos e explosões. Pouco a pouco, vários habitantes aproximam-se. Não há como passar despercebido com um colete à prova de bala e capacete com a palavra "PRESS" em letras garrafais. Neste dia frio, um casal com quatro crianças que vive numa cave de um albergue destruído convida-nos a tomar chá. Num fogareiro improvisado, aquecem-nos bebidas enquanto conversamos. Contamos-lhes que gostávamos de ver o mar, mesmo que ao longe. Aparece outro morador desta comunidade improvisada que nos leva ao último andar do albergue. Dali não conseguimos ver o mar porque o céu está muito nublado, mas apontam para um edifício e dizem que era dali que disparava o Batalhão Azov. Quando descemos, este morador traz várias tábuas debaixo do braço. É o único recurso das famílias de Mariupol para se aquecerem e cozinharem sem eletricidade nem gás. Insistimos que queremos ver o mar e damos-lhe mais um maço de tabaco. Aceita levar-nos o mais perto possível da costa. À nossa volta, as ruas são um rio de destruição. À medida que vamos avançando, chegamos a um posto de controlo que nos nega a passagem. Dizem que é demasiado perigoso. "Há franco-atiradores", explica este grupo que tem soldados do Daguestão e da Sibéria. É demasiado tarde e temos de regressar ao ponto de encontro. Pelo caminho, as pessoas chamam-nos para mostrarem o grau de destruição em que estão as suas casas. Alguns acusam os russos, outros acusam os ucranianos. A maioria pede-nos para avisarmos familiares que estão no estrangeiro. "Diga-lhe que estou viva. A minha filha vive em Paris", pede Mariana.

Em Mariupol, não há sinal e o desespero por dar sinais de vida a pais e filhos é muito. Em frente a um edifício destruído, que não se distingue de todos os outros, várias pessoas gritam e apontam para a fachada. Aqui era a antiga sede da polícia de Mariupol. Em 2014, as autoridades alinhadas com o novo governo da Ucrânia proibiram um desfile de celebração do dia da vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazi. Numa cidade de maioria russófona, a polícia local recusou-se a cumprir as ordens e aliou-se aos separatistas. Então, o governo mandou os tanques bombardearem o edifício. O então ministro ucraniano da Administração Interna admitiu a morte cerca de 20 pessoas no interior. 

O Mar de Azov

Quando chegamos ao teatro esperam por nós. O nosso soldado conseguiu resgatar uma mulher que traz dois gatos e chora de forma desesperada. Não acredita que vai conseguir abandonar esta cidade com cheiro a morte por todas as partes. Vai ser preciso esperar mais um pouco, o oficial pede-nos umas horas para tratar de burocracias. Em troca, pedimos-lhe que nos acompanhe de carro até perto do mar. Não entende esta nossa obsessão com o mar mas aceita o desafio. O nosso velho Lada atravessa ruas destruídas com cabos elétricos e semáforos atravessados e de maço de tabaco em maço de tabaco conseguimos ver, finalmente, o mar.

De novo entregues à nossa sorte, conversamos longamente com dois velhos soldados que mostram orgulhosos o escudo soviético nos cintos. É a única coisa que nos deixam filmar. Nesse momento, aparece um jovem militar numa vespa que gosta das câmaras. Acena e parte rumo ao mar. Nós também. O repetitivo som das rajadas de metralhadora já se torna familiar. As explosões não param. Ali ao lado, vemos um mural com o símbolo neonazi do Batalhão Azov, uma adaptação da grafia das SS alemãs. É um vestígio da presença deste corpo do exército ucraniano, que teve nesta cidade um dos seus bastiões e que está agora confinado ao complexo industrial Azovstal. Com todo o cuidado e em campo aberto, temos o mar à nossa frente. Se a Rússia tomar esta cidade, todo o Mar de Azov estará sob controlo de Moscovo. A poucos metros, um casal não quer falar para as câmaras. Parecem surpreendidos com a nossa presença. Ouvimos artilharia pesada para os lados do porto e concluímos que as tropas russas devem estar a ultimar o controlo total desta estrutura portuária.

"Vocês estão malucos da cabeça"

Cumprido o nosso objetivo inicial, ainda temos hora e meia antes de regressarmos ao teatro. Decidimos caminhar até um ponto que nos permita recolher melhores imagens do lugar onde se trava a última batalha de Mariupol, o Azovstal, um gigante complexo metalúrgico onde se crê estarem milhares de tropas ucranianas. Descemos uma rua e ao fundo vemos um apeadeiro ferroviário. Parece-nos o lugar ideal. "Até dá para subirmos àquela carrinha de caixa aberta", dizemos, enquanto trocamos impressões. Nisto aparece um carro com um enorme "Z" conduzido por um soldado. Mete o dedo na cabeça e grita em russo: "Vocês estão malucos da cabeça. Há franco-atiradores do outro lado. Vocês vão morrer aí". Ao mesmo tempo, do outro lado da linha de comboio, um soldado assobia e diz para corrermos para ali. É o que fazemos. Conversamos com este oficial. Chega uma dezena de soldados separatistas e não querem acreditar que chegámos ali. Estamos no posto mais avançado das tropas russas e separatistas em Mariupol. Depois de ralharem brevemente connosco, riem-se e convidam-nos a ver alguns RPG-7 que os ucranianos deixaram para trás. Aceitamos a proposta e esvaziamos uma vez mais o nosso volume de cigarros. Caminhamos junto ao canal. Pedem-nos todo o cuidado. No dia anterior houve um ataque ucraniano com Grad. Seguimos pé ante pé, filmamos os barcos no canal e o Azovstal. Do outro lado deste estreito curso de água, qualquer bala ou granada nos pode atingir com facilidade. Os soldados carregam kalashnikovs de dedo no gatilho. Vemos uma carrinha com o escudo da Ucrânia e levam-nos a uma casa. No chão estão dois militares ucranianos mortos. Um soldado mostra-nos a identificação de um deles.

Pertence à Guarda Nacional da Ucrânia que, nesta região, integra os combatentes do Batalhão Azov e de outros grupos de extrema-direita. Fazemos algumas imagens do canal e de repente ouvimos vários disparos e explosões. Aparece um grupo de soldados que quer saber o que raio estamos ali a fazer. Estes são russos. O controlo da área é feito de forma separada. Os separatistas decidem que é hora de abandonarmos a área. Avançamos apressadamente e apontam para a carrinha onde queríamos subir para recolher imagens e para outra viatura. "Estão armadilhadas. Tenham cuidado".

Europa

Mais Europa

Patrocinados