opinião
Comentador da CNN Portugal

O Bolshoi da diplomacia

17 out, 10:24

“Cessar-fogo não é aqui pausa para política; é, para Moscovo, ferramenta militar. O que para hoje, congela amanhã, legitima depois. É por isso que a possível fotografia de Trump a apertar a mão de Putin poderá valer muito para ambos — mas valer pouco para a segurança europeia e para a soberania ucraniana.”

Há algo de teatral na política internacional — e poucas peças têm tanto dramatismo como a que se encena, neste momento, entre Donald Trump, Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky. O palco é global, mas o enredo tem lugar num cenário muito russo: lembra o Bolshoi, com o seu luxo dourado, as cortinas pesadas e os gestos estudados. A cortesia de um telefonema, o rumor de uma nova cimeira, a promessa de paz — tudo parece coreografado ao som de uma música antiga: a da diplomacia como espetáculo.

Nas últimas horas, o tabuleiro moveu-se de novo. Trump voltou a falar com Putin antes de receber Zelensky na Casa Branca, e paira a hipótese de uma nova reunião presencial entre os presidentes americano e russo em Budapeste, sem o líder ucraniano presente. Em paralelo, circula a possibilidade de Washington autorizar para a Ucrânia mísseis de cruzeiro de longo alcance — Tomahawk — capazes de atingir locais logísticos, infraestruturas militares e linhas de abastecimento em profundidade no território russo. Ou seja, uma ataque à economia russa. O simples facto de se discutir esse abalo tecnológico e operacional fez regressar Moscovo à mesa, não por súbita boa vontade, mas porque cada arma que encurta a distância entre a guerra e a dissuasão altera a gramática do conflito. Mas também se percebe que tudo isto tem muito de bluff de Trump.

Trump ensaia a sua personagem favorita: o mediador incontornável que fala com todos, promete a todos e, no fim, surge apenas na fotografia. É a continuação de um método que lhe rendeu dividendos políticos noutras geografias. Criar a impressão de que a paz está sempre a um “call” de distância. 

O problema é que a Ucrânia não é o Médio Oriente e a Rússia não se deixa arrumar na gaveta do “business” como os árabes. No xadrez ucraniano, cada gesto que parece abrir uma porta também revela um espelho: o interlocutor fala de paz enquanto compra tempo, e quem vende tempo, nesta guerra, não é Kyiv.

A dança russa é antiga. Sempre que o Ocidente — leia-se os Estados Unidos, não a Europa — acena com um passo de escalada, seja um novo pacote de sanções ou um sistema de armas com alcance superior, Moscovo responde com uma simpatia e abertura calculada: contactos de alto nível, sugestão de encontro, promessa de conversas “produtivas”. O objetivo é simples: deslocar o debate do campo de batalha para o salão de baile da diplomacia, onde a Rússia domina a coreografia do atraso. Enquanto se discute formato, local e fotografia, reorganiza-se a indústria de guerra, consolida-se a defesa aérea e no terreno e redesenham-se as cadeias logísticas. O tempo deixa de ser neutro: passa a ser um activo.

Pelo meio, a Europa continua a chegar tarde. Foi assim na quarta-feira, na reunião dos ministros da Defesa da NATO em Bruxelas: ficou dito, sem rodeios, que a Ucrânia precisa de munições, defesa aérea e produção em escala — e que os europeus têm de comprar agora e entregar agora. Acontece que a indústria europeia ainda não acompanha o ritmo da necessidade, e a resposta prática continua a ser a de sempre: recorrer aos Estados Unidos. Ironia cruel para quem se quer autónomo — cada reforço do arsenal ucraniano é também um lembrete da dependência estratégica do continente e uma ida forçada ao “shopping” americano.

Esta sucessão de gestos tem consequências políticas evidentes. Primeiro, fragiliza Zelensky no momento em que mais precisa de certezas: uma cimeira entre Washington e Moscovo sem o presidente ucraniano presente envia a mensagem de que o destino de Kyiv pode discutir-se sem Kyiv. Segundo, reforça a percepção de que Trump prefere a retórica da transação à da dissuasão: manter aberta a possibilidade de fornecer Tomahawks e, ao mesmo tempo, a de não o fazer, é transformar a ajuda militar num instrumento negocial, não numa decisão estratégica. Terceiro, confirma a leitura de Putin: a guerra pode ser gerida na diplomacia, desde que o custo para Moscovo não suba ao ponto de tornar a continuidade insustentável.

Muito se discute se a entrega de Tomahawks seria um “game-changer”. Tecnicamente, ampliaria o raio de ação ucraniano e elevaria o preço de alvos militares que hoje vivem relativamente longe do alcance de Kyiv. Politicamente, o sinal seria de determinação. Mas há também limites: a Rússia reagiria, no mínimo, com nova retórica nuclear e com reforço da defesa em profundidade; e os aliados teriam de gerir a espiral entre eficácia operacional e risco de escalada. De resto, o essencial não muda: nenhuma arma, por si só, substitui uma estratégia coerente, recursos sustentáveis e vontade política alinhada.

É aqui que a Europa volta a falhar. Não por falta de consciência moral — essa existe e tem sido firme — mas por ausência de capacidade organizada. Faltou tempo para reconstituir stocks, faltou visão para criar uma política industrial de defesa com metas, calendário e garantias de produção, e faltou diplomacia. Pior ainda: faltou linguagem política comum. Entre a Europa que vive a Rússia como ameaça existencial e a Europa que a encara como problema distante, instalou-se uma conversa de meias palavras. Os ministros reúnem-se, os comunicados sucedem-se, as fotografias circulam — e a Ucrânia continua a olhar para isto sem entender a lógica.

Trump, embalado pela narrativa do pacificador, tenta agora replicar o que julga ter sido um êxito recente no Médio Oriente. A comparação é sedutora, mas falsa. No Médio Oriente, negociou-se entre atores cujo espaço de manobra dependia, em grande medida, da proteção e do financiamento americanos. Na Ucrânia, enfrenta-se um agressor que mede o mundo em correlações de força e um defensor que só sobrevive com o fluxo militar e financeiro. Cessar-fogo não é aqui pausa para política; é, para Moscovo, ferramenta militar. O que para hoje, congela amanhã, legitima depois. É por isso que a possível fotografia de Trump a apertar a mão de Putin poderá valer muito para ambos — mas valer pouco para a segurança europeia e para a soberania ucraniana.

Há quem diga que conversar nunca é demais. Concordo: conversar é sempre melhor do que disparar. Mas conversar sem um plano, sem custos para o agressor e sem garantias para o agredido não é diplomacia — é perda de tempo. E o entretenimento é o habitat natural do populismo: substitui meios por gestos, objetivos por slogans, estratégia por encenação. É este, precisamente, o teatro que Moscovo aprecia. Enquanto o Ocidente discute o cenário, a Rússia escolhe o guião.

Se a Europa quer sair do papel de plateia, tem de fazer três coisas ao mesmo tempo. Primeiro, afirmar com clareza que negociar sem Kyiv não é solução, é erro. Segundo, transformar a sua moral em direção política: assumir-se como o pivô diplomático capaz de propor, com ou sem Washington, um verdadeiro plano de paz para a Ucrânia — um plano europeu, que defina condições, garantias e calendário, e que obrigue Donald Trump, se quiser ser mediador, a apoiá-lo e não a substituí-lo. Terceiro, falar com os Estados Unidos de igual para igual: não como cliente de armamento, mas como parceiro estratégico com autonomia e visão. O que se pede à América é previsibilidade; o que a América pede à Europa é dinheiro. As duas coisas não são incompatíveis — apenas exigem vontade de existir como ator e não apenas como aplauso.

No fim do dia, o Bolshoi fecha sempre as cortinas. O público aplaude, os protagonistas inclinam-se e regressa-se à vida. A diferença é que, nesta peça, a vida continua na frente de batalha: cidades bombardeadas, fábricas mobilizadas, famílias partidas. Putin dança porque o tempo lhe pertence; Trump fala porque o palco é dele; e a Europa, que já não escreve o guião, limita-se a pagar pelo show. Enquanto continuar assim, a “paz” será apenas o intervalo de um espetáculo que outros decidiram. E o intervalo, como sabemos, nunca foi o fim da peça.

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