opinião
Comentador da CNN Portugal

Medvedev e o teatro do apocalipse

30 abr, 14:08

“A Rússia sabe que perdeu a guerra da legitimidade, que já não impõe respeito senão pela via do medo.”

No início de Stalker, de Andrei Tarkovsky, há uma cena em que o silêncio pesa mais do que qualquer explosão: uma paisagem cinzenta, imóvel, onde o medo não precisa de forma — apenas de presença. A Zona, esse espaço interdito e inexplicável, onde tudo pode ser fatal, é uma metáfora pungente da guerra russa: nunca sabemos se o que foi dito é real, se a ameaça se materializa, ou se o verdadeiro objetivo é que vivamos no terror da antecipação.

Hoje, Dmitry Medvedev — ex-presidente, agora vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia e porta-voz oficioso da doutrina mais apocalíptica do Kremlin — declarou que os novos membros da NATO “são agora alvos potenciais” de Moscovo. Acrescentou, com o cinismo glacial de um ator secundário habituado a cenas de tortura em filmes de guerra soviéticos, que “em caso de conflito” há risco de “ataques com armas nucleares”.

Não é a primeira vez que Medvedev veste a farda de incendiário político, mas o seu papel tem vindo a ganhar protagonismo. Desde que a Finlândia e a Suécia optaram por pôr fim à sua histórica neutralidade — uma neutralidade que Moscovo já tratara como capacho — o Kremlin insiste em reescrever o mapa da segurança europeia com as letras do medo. É a diplomacia do abismo: cada nova adesão à NATO é, para a Rússia, mais um pretexto para subir a parada da retórica. E Medvedev, que já foi o rosto afável da modernização russa, transformou-se no ventríloquo de um ressentimento imperial em desespero estratégico.

A ameaça nuclear não é nova, mas o que Medvedev faz agora é ajustá-la a uma nova gramática: a da incerteza permanente. Os novos membros da NATO — onde se incluem os bálticos, os escandinavos, os antigos satélites soviéticos — deixam de ser aliados protegidos e passam a ser, aos olhos de Moscovo, bodes expiatórios numa narrativa paranoica. São, em linguagem militar, “soft targets” — frágeis, expostos, sacrificáveis. O objetivo não é tanto usar a bomba, mas assegurar que todos vivam sob a sua sombra.

Este tipo de linguagem não serve apenas para intimidar adversários: serve também para domesticar o público interno russo, anestesiado pela propaganda e ansioso por símbolos de poder. O Kremlin já percebeu que não ganha a guerra na Ucrânia com tanques, mas pode ainda vencê-la nos corredores do medo, nos noticiários de Bruxelas e nas declarações hesitantes de Berlim. Uma ameaça nuclear, mesmo dita com desdém, tem o poder de paralisar. E uma Europa paralisada é, para Putin, uma vitória tão eficaz quanto qualquer conquista territorial.

Há aqui, contudo, um problema mais fundo — e mais perigoso. Ao ameaçar diretamente países que escolheram a via democrática da adesão a uma aliança defensiva, Moscovo não só viola os princípios básicos da ordem internacional como também assume uma doutrina externa baseada na chantagem e na vitimização ofensiva. A Rússia de hoje é, tragicamente, uma caricatura da Rússia eterna: aquela que se diz sitiada, mas nunca para de cercar os outros.

A NATO, por seu lado, não pode cair na armadilha de responder com a mesma teatralidade. A força da aliança reside justamente na serenidade estratégica e na dissuasão credível, não em bravatas. A melhor resposta a Medvedev não está nas manchetes, mas nas decisões de bastidores: reforço dos flancos orientais, cooperação estreita com os novos membros, modernização dos sistemas de defesa, sobretudo em domínios híbridos e cibernéticos, onde a guerra já é constante.

O que Medvedev disse, no fundo, não é apenas uma ameaça — é uma confissão. A Rússia sabe que perdeu a guerra da legitimidade, que já não impõe respeito senão pela via do medo, e que o seu lugar no concerto das nações se vai reduzindo àquele de um país armado até aos dentes, mas diplomática e economicamente isolado, alimentado agora pela Correia do Norte e por uma América perdida nos valores e na noção. 

Como em Tarkovsky, o verdadeiro horror não é a guerra que começa — é o mundo que continua a viver como se ela já estivesse a acontecer, sempre à margem da explosão, sempre à espera da primeira luz branca no céu. É essa a armadilha de Medvedev: fazer-nos viver na Zona, onde tudo é ameaça e nada é certo.

Mas há uma forma de resistência: chamar as coisas pelo nome, recusar o pânico e construir segurança com mais integração, mais alianças, mais democracia. Porque a guerra, como sabemos, começa sempre na linguagem — mas também pode ser travada com ela.

Comentadores

Mais Comentadores