MIL DIAS DE GUERRA || Durante 80 dias, o mundo assistiu com atenção ao cerco da cidade. O público ainda não sabia, mas a carnificina que se seguiria seria apenas o início de um modelo aplicado pelo exército russo na Ucrânia, que viria a ser replicado cidade atrás de cidade
Os habitantes de Mariupol não eram estranhos à guerra. Antes da invasão russa de 2022, a cidade já tinha estado em risco de cair em mãos do inimigo em 2014, quando o Kremlin decidiu apoiar os grupos separatistas na região de Donetsk e enviar milhares militares com uniformes descaraterizados. A linha da frente era ali bem perto e as explosões que se ouviam no horizonte faziam parte da rotina de quem morava na cidade. Poucos acreditavam que a guerra lá voltasse.
Mas no Kremlin, a ideia era diferente. Assim que o discurso televisionado onde Vladimir Putin justificava a decisão de começar uma “operação militar especial” na Ucrânia foi emitido, o destino da cidade ficou traçado. A máquina de guerra russa entrava em movimento de olhos postos no alvo mais apetecível do Donbass: a cidade portuária de Mariupol. Era ali que estavam “os fascistas” de que Putin falava no seu discurso para justificar a entrada na Ucrânia. Uma referência aos militares da Brigada Azov, uma unidade especial do exército ucraniano, que começou a sua história como uma unidade paramilitar fundada em por Andriy Biletsky, um político de extrema-direita ucraniano. Entretanto, Biletsky foi afastado, o batalhão foi despolitizado e a unidade foi integrada no exército ucraniano.
Ainda não tinha amanhecido e a Rússia começou uma das mais intensas campanhas de bombardeamento da invasão. Mísseis sobrevoavam os céus ucranianos para atingir alvos estratégicos localizados na cidade, como postos de comunicação e defesas antiaéreas da cidade. Mas, no primeiro dia, o principal alvo foi o aeroporto de Mariupol, onde a liderança da unidade militar que defendia a cidade foi severamente atingida, causando confusão numa situação que já era caótica o suficiente.
Anos de guerra no Donbass levaram os ucranianos a construir posições defensivas robustas a este, onde todos aguardavam um ataque russo. Só que as chefias militares ucranianas ignoraram qualquer possibilidade de um ataque a oeste. O cálculo viria a revelar-se fatal, com as Forças Armadas russas a entrarem no sul da Ucrânia vindas da Crimeia, avançando quase sem oposição durante vários dias. Nos últimos dias de fevereiro de 2022, os blindados russos, apoiados pela frota do Mar Negro, já tinham conquistado Berdyansk e encontravam-se com os fuzileiros russos que tinha desembarcado nas imediações de Mariupol.
Ao mesmo tempo, soldados de unidades de Donetsk apoiados pelo exército russo furavam as defesas ucranianas a norte, avançando até Kliuchove nas primeiras horas, parando apenas quando chegaram ao complexo metalúrgico Ilich, a norte de Mariupol. Os defensores ucranianos começavam uma marcha para a retaguarda, trocando terra por tempo, até chegar ao interior da cidade.
A defender o perímetro de Mariupol estão cerca de cinco mil militares ucranianos da 36.ª Brigada de Fuzileiros Navais e do Batalhão Azov. Apesar dos esforços do batalhão em fazer explodir pontes para travar os rápidos avanços russos a oeste, estas medidas não foram suficientes para abrandar as unidades de vanguarda do inimigo, que conseguiu ocupar a vila de Nikolske, nos arredores da cidade. A conquista desta localidade selava o destino de Mariupol para os próximos três meses. Os habitantes da cidade e os soldados que a defendiam estavam por sua conta, cercados pelo exército russo e pelo Mar de Azov.
Dentro da cidade, os militares ucranianos preparavam-se para o combate rua a rua, casa a casa. Percebiam que a situação nos próximos tempos não seria fácil e era preciso ganhar tempo até que os reforços, vindos de norte, conseguissem perfurar as linhas russas para garantir uma rota pela qual retirar. Só que as unidades que combatiam em Zaporizhzhia e em Donetsk estavam ocupadas a não deixar colapsar o resto da linha da frente. Não havia unidades disponíveis para o resgate dos homens que defendiam Mariupol.
Com mais de 430 mil habitantes no seu interior, a cidade portuária que domina o mar de Azov foi oficialmente cercada a 2 de março. Nesse dia começou uma intensa campanha de bombardeamento que viria a tornar-se uma imagem de marca do exército russo durante esta guerra. Os primeiros alvos foram as infraestruturas críticas. Nos primeiros dias, os habitantes de Mariupol ficaram sem acesso a água e a eletricidade. Pouco tempo depois veio a falta de comida. Nada entrava e nada saia.
Depois, seguiu-se o bombardeamento aos prédios civis, principalmente aqueles que poderia oferecer aos defensores posições defensivas ou servir como postos de observação. Bairros residenciais inteiros foram completamente arrasados. Os milhares de civis recorriam às caves dos edifícios para encontrar alguma segurança, saindo apenas para recolher água do gelo que ia derretendo. Encontrar mantimentos tornava-se cada vez mais difícil. No dia 9 de março chegam imagens que chocam o mundo. O exército russo bombardeou uma maternidade na cidade, matando cinco pessoas, incluindo dois bebés, e ferindo 16 pessoas. As imagens do ataque só chegaram devido à presença de dois repórteres da Associated Press, que tinham chegado à cidade na véspera, e que conseguiram enviar as imagens para fora via satélite. (um trabalho daquela agência intitulado "20 Dias em Mariupol" acabaria por vencer o Óscar de Melhor Documentário em 2024).
Com os combates a intensificarem-se, a situação humanitária torna-se cada vez mais difícil. O número de vítimas dos bombardeamentos começa a aumentar e fica cada vez mais inseguro sair à rua. A população começa a enterrar os corpos das vítimas onde elas estão, nos jardins da cidade. No Hospital Número Um os feridos acumulam-se a uma velocidade aterradora. Civis e militares chegam a toda a hora e as equipas médicas começam a ficar sem equipamentos para os tratar.
Serhiy Mudryi, um médico ucraniano que chegava aos hospital para fazer um turno de dois dias, acabou por ficar 40 dias seguidos na unidade hospitalar. A situação era de tal forma dramática que não havia tempo para operar os feridos. O pós-operatório de uma cirurgia a feridas graves requer um cuidado intensivo para que as feridas não infetem. Não havia tempo nem meios para tal. Então a direção do hospital decidiu que, sempre que alguém chegasse com ferimentos graves num dos membros, a decisão era para amputar.
Com o passar do tempo, as pessoas começam a ficar cada vez mais revoltadas e a possibilidade de acabarem por morrer vítimas dos bombardeamentos, de fome ou do frio torna-se cada vez mais real. Começavam a surgir os relatos de valas comuns, utilizadas para depositar os restos mortais de um número cada vez maior de vítimas. De acordo com a Human Rights Watch, mais de oito mil civis morreram durante o cerco.
A situação dentro da cidade está a tornar-se insustentável e, a 15 de março, os dois lados chegaram a um acordo para a retirada de civis, com dois mil veículos a abandonar a cidade em direção ao território controlado por Kiev. Ao mesmo tempo, na periferia da cidade, os combates eram intensos. Os militares ucranianos utilizavam os enormes complexos de edifícios soviéticos para criar emboscadas para os militares russos. A resposta russa fez-se sentir.
Com o inimigo completamente cercado e sem qualquer defesa antiaérea, o exército russo fez uso da superioridade aérea para bombardear posições ucranianas. No dia 16 de março, um avião russo dispara uma bomba de forma precisa contra o Teatro Regional de Donetsk, onde não estava qualquer militar ucraniano. Na parte de fora do edifício estava um gigantesco aviso com a palavra “CRIANÇAS”. No interior, centenas de pessoas procuravam refúgio. De acordo com os dados fornecidos pela Ucrânia, 300 pessoas morreram, a maior perda de vidas num único ataque desde que começou a guerra.
Os militares ucranianos que defendiam a cidade decidiram utilizar as infraestruturas industriais da cidade a seu favor. A este, no gigantesco complexo metalúrgico Azovstal, e a norte, na região de Kalmius. Só que o comandante russo, o general Andrey Mordvichev, percebeu a estratégia e procurou evitar um confronto direto com os fuzileiros ucranianos, acabando por dividir as forças ucranianas em dois grupos para os eliminar separadamente.
O mês de março foi de intensos combates no interior da cidade, mas a superioridade russa era impossível de deter. Sem qualquer foram de reabastecimento, as munições começavam a ser utilizadas com mais cautela e, a cada dia que passava, os ucranianos eram obrigados a recuar mais um pouco. A situação era extrema e obrigou a decisões radicais. O desespero dos defensores de Maripol fez com que Kyrylo Budanov, líder da Direção Principal de Inteligência do Ministério da Defesa da Ucrânia, ordenasse uma operação arrojada.
O plano de Budanov era fazer chegar à guarnição de Mariupol munições, armas, medicamentos e alimentos e tentar trazer de volta alguns dos feridos mais graves que estavam retidos na cidade. Começava a “Operação Corredor Aéreo”. Dois helicópteros de transporte Mi-8 transportaram duas equipas de forças especiais com mísseis anticarro e antiaéreo, bem como sistemas de Internet por satélite Starlink. A operação era extremamente ariscada. Os pilotos estavam obrigados a voar a altitudes muito baixas para não serem detetados pelos radares russos e abatidos pelos seus sistemas antiaéreos, atravessando centenas de quilómetros de território inimigo. Assim que chegassem a Mariupol, descarregavam o armamento e regressavam carregando os feridos.
Ainda assim, o plano arrojado acabou por funcionar e, durante vários dias, as forças especiais ucranianas conseguiram entregar preciosos mantimentos aos defensores de Mariupol. Para quem estava cercado há semanas, a imagem dos helicópteros a pousar na cidade era um autêntico tsunami de esperança e felicidade. Só que os russos perceberam o que estava a acontecer e montaram uma armadilha. No dia 7 de abril, um dos helicópteros foi abatido pelas defesas antiaéreas russas quando regressava de Mariupol. Todos os que iam a bordo morreram. Outro helicóptero, enviado de urgência para procurar sobreviventes, sofreu o mesmo destino e a operação foi cancelada. Era o último apoio de Kiev recebido pelos homens e mulheres que resistiam em Mariupol.
A meio de abril já pouco ou nada havia a fazer. O comandante do Batalhão Azov, Denys Prokobenko, dava ordem de retirada de todas as unidades que ainda permanecessem intactas para recuar para o complexo industrial de Azovstal. Criada em 1933, esta fábrica era uma estrutura industrial gigantesca, com uma enorme rede de túneis profundos capazes de aguentar até mesmo um ataque nuclear. Esses túneis foram remodelados em 2014, com o início dos combates no Donbass, para poder acolher os habitantes da cidade.
Só que, para muitos, já era tarde demais. Os russos avançavam rua a rua e algumas unidades ficaram presas no extremo oposto. Centenas de soldados renderam-se. Outros tiveram de abrir caminho através do combate para tentar perfurar o cerco russo e juntar-se aos restantes militares na Azovstal. Foi o caso dos fuzileiros da 36.ª Brigada, que ocupavam o porto de Mariupol. Decidido a não se entregar aos soldados russo,s o comandante da unidade, Serhii Volynskyi, comandou os seus homens por entre os escombros da cidade, combatendo os russos pelo caminho e sob o fogo pesado da artilharia russa. Um terço dos seus homens morreu, mas conseguiram chegar.
O cenário que encontraram no interior do gigantesco complexo metalúrgico não foi mais animador. Três mil pessoas estão presas no seu interior. Dezenas de feridos graves, idosos, mulheres e crianças acumulavam-se nos túneis da fábrica que era agora o principal alvo da artilharia russa. As bombas caiam quase ininterruptamente e faziam tremer o interior dos abrigos. Havia falta de comida, água, medicamentos... e tanta gente. A alimentação foi racionada para apenas uma refeição por dia.
Apesar do sucesso russo em Mariupol, a Ucrânia estava a conseguir travar os avanços em toda a frente e, nalguns casos, estava a conseguir contra-atacar. No final de março, as forças armadas ucranianas obrigaram Moscovo a recuar em Kiev, centrando todos os seus esforços no Donbass. Mariupol e a fábrica de Avozstal tornam-se um símbolo de resistência ucraniana contra todas as adversidades. O grupo de soldados de Denys Prokopenko é visto pelo mundo como heróis que se prepararam para uma batalha final até às últimas consequências, mesmo sabendo que as suas hipóteses de sobreviver eram quase nulas.
Para a Rússia, o valor da conquista de Mariupol tinha aumentado significativamente desde o desaire a norte. Surgiam as primeiras sementes da dúvida na cabeça do público russo de que o seu exército poderia não estar preparado para combater esta guerra. Era preciso demonstrar o contrário e Mariupol era o alvo perfeito.
Nas sombras dos gabinetes de Moscovo e de Kiev um acordo estava a ser mediado pelo secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, para facilitar a criação de um corredor de segurança que permitisse que os civis no interior da estrutura pudessem sair em segurança. No dia 1 de maio, as Nações Unidas e a Cruz Vermelha Internacional chegaram a acordo com os dois lados para retirar as civis e feridos graves.
No dia 16 de maio chegou à Azovstal uma última ordem de Kiev. O comandante das Forças Armadas ucranianas agradecia o esforço “heróico” dos defensores da cidade, que permitiu à Ucrânia estabilizar a frente de batalha, retendo quase 12 mil soldados russos, e deu ordem para que se entregassem com vida ao inimigo. Os 2.500 soldados ucranianos entregaram-se aos russos, foram interrogados e enviados para campos penitenciários. Era o fim de uma das batalhas urbanas mais violentas da guerra, que, em 80 dias, transformou uma das cidades mais prósperas do Mar Negro num cemitério a céu aberto e que se tornou o símbolo da resistência ucraniana.