"Também querem que sejamos mortos muito lentamente?" Como esta pergunta de Zelensky para o Ocidente revela a vantagem (e a chantagem) de Putin

CNN , Stephen Collinson
7 mar 2022, 19:16
"É o vosso dever humanitário proteger-nos", Zelensky volta a dirigir-se à NATO

O mais recente e comovente apelo do presidente ucraniano é toda uma tese para se refletir sobre como Putin está mesmo em vantagem - e, nesta situação em concreto, não é por acaso que vantagem rima com chantagem. Uma análise de Stephen Collinson (CNN)

Putin está a causar uma carnificina na Ucrânia  e ninguém o pode deter

Milhões de vidas podem ser destruídas para saciar a obsessão de Vladimir Putin pela Guerra Fria. Menos de três semanas após a invasão da Ucrânia pela Rússia - um ultraje histórico em preparação há 30 anos - o mundo olha horrorizado para a barbárie, a tragédia a nível humano, a terrível destruição e as repercussões mundiais provocadas pelas ordens de um homem.

O destino da Ucrânia sublinha marcadamente que, mesmo 20 anos após o início do século XXI, e apesar das promessas do mundo de aprender com a História, um autocrata solitário que, de forma implacável, moldou um sistema político para eliminar a dissidência e a própria realidade tem o poder de causar insondáveis perdas e miséria humana.

A aparente vontade de Putin de bombardear a Ucrânia até à submissão e o alvo claramente gratuito de civis inocentes, que insistiu em dizer serem como familiares russos, significa que o desastre humanitário está provavelmente apenas a começar. Mais de um milhão de refugiados já fugiu de suas casas, segundo as Nações Unidas.

É provável que a esses se sigam outros milhões, à medida que as vidas das famílias, os empregos e as comunidades são destruídos. Isso sem contar com os milhares de civis que certamente morrerão numa prolongada blitzkrieg russa.

Embora haja especulações sobre os objetivos e o estado de espírito de Putin, e um grande interesse público na coragem dos ucranianos que prometem resistir à invasão, é fundamental que o mundo entenda de forma adequada a realidade básica dos aparentes crimes de guerra que estão a acontecer agora na Ucrânia.

No domingo, num subúrbio de Kiev, duas crianças pequenas e dois adultos foram obliterados por bombardeamentos russos enquanto tentavam fugir.

“Uma família morreu mesmo à minha frente”, disse Oleksandr Markushyn, presidente da Câmara de Irpin. Enquanto isso, os mortos jazem por sepultar nos destroços em chamas de Kharkiv - uma cidade de 1,5 milhões de habitantes que foi alvo de um bombardeamento prolongado que serviu de aviso ao provável destino de Kiev.

Outros ucranianos viram-se encurralados pelos ataques aéreos chocantes aos corredores humanitários. Fotos e vídeos de homens ucranianos a colocar as famílias em comboios de evacuação e a partir para combater fazem reviver o trauma da história sangrenta de um continente.

Se o vídeo angustiante da Ucrânia fosse a preto e branco, seria fácil confundi-lo com um noticiário histórico da Segunda Guerra Mundial, a última vez que cenas de destruição e crueldade foram infligidas por uma nação soberana a outra na Europa.

E tudo isso flui da mente de um presidente russo aparentemente motivado pelas suas próprias cicatrizes históricas enquanto oficial do KGB na Alemanha de Leste, quando o Muro de Berlim caiu. Putin, ao procurar redesenhar o mapa da Europa pós-Guerra Fria, projetou agora o contraponto dessas cenas alegres, três décadas depois, com os seus implacáveis bombardeamentos destinados a relançar a Rússia como uma superpotência.

Futuro da Ucrânia parece cada vez mais sombrio

Os eventos de um fim de semana sangrento sublinham que, apesar do impressionante aumento das sanções do Ocidente que estrangulam a economia russa, da coragem para resistir dos civis ucranianos e dos apelos do presidente Zelensky, o futuro da Ucrânia é sombrio, com Putin a questionar se deve continuar a existir como um Estado-nação.

As enormes sanções ocidentais podem acabar por provocar oposição suficiente dentro da Rússia, - onde os cidadãos se debatem com uma economia em colapso - para derrubar Putin. Os carregamentos de armas do Ocidente para a Ucrânia certamente aumentarão os custos para as forças russas de invasão e possível ocupação.

Mas a realidade de que o Ocidente não irá intervir diretamente para evitar desencadear um agravamento de tensões com a Rússia e potenciar uma troca nuclear concede a Putin uma vantagem e aprofunda a tragédia da Ucrânia. Mais cedo ou mais tarde, o mundo exterior pode acabar por se ver diante de um massacre que não foi capaz de evitar. Esta terrível possibilidade foi levantada no mais recente e comovente apelo do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, no domingo.

“Somos humanos e é o vosso dever humanitário proteger-nos, proteger os civis - e vocês podem fazê-lo”, disse Zelensky ao mundo. "Se não o fizerem, se pelo menos não nos derem aviões para que nos possamos defender, a única conclusão é que também querem que sejamos mortos muito lentamente.”

Putin ainda dita os eventos

Enquanto os EUA conversam com a Polónia sobre um plano para enviar os seus aviões de guerra de fabrico russo para a Ucrânia, e enquanto se discute um embargo total às exportações de petróleo da Rússia, o Ocidente está perto de atingir o limite do que pode ser feito sem desencadear um conflito direto com Putin.

Assim sendo, a mensagem dos EUA começa a enfatizar a magnitude do que já foi feito para ajudar. Isso inclui sanções ocidentais que lançaram a economia russa de volta às trevas da era soviética e os arsenais de rockets antiblindados e antiaéreos enviados para a Ucrânia, na nova guerra por procuração do Ocidente com a Rússia.

Enquanto os americanos amaldiçoavam Putin no fim de semana com a gasolina a subir muito acima dos 1,05 dólares por litro, em alguns estados, por causa de um mercado do petróleo abalado pela invasão, o secretário de Estado Antony Blinken alertava no programa “State of The Union” da CNN que a selvajaria do líder russo continuava a ditar os eventos.

“Infelizmente, Vladimir Putin, com os enormes recursos humanos que tem na Ucrânia e o seu poderio militar, tem a capacidade de continuar a esmagar tudo pelo caminho contra ucranianos incrivelmente resilientes e corajosos”, disse Blinken a Jake Tapper.

Blinken, que falava a partir da Moldova - um aliado norte-americano que não pertence à NATO e que teme ser o próximo na linha de fogo de Putin -, parecia estar a olhar para um futuro pós-invasão, no qual uma resistência ucraniana apoiada pelo Ocidente poderia fazer as tropas de Putin pagarem um preço muito alto.

“Acho que temos de estar preparados para isto durar algum tempo. Mas vencer uma batalha não é vencer a guerra. Tomar uma cidade não significa que ele conquiste os corações e as mentes do povo ucraniano”, disse Blinken. “Pelo contrário, ele está destinado a perder. O povo ucraniano demonstrou que não se subjugará a Vladimir Putin ou ao governo da Rússia.”

Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, também enfatizou a intensidade das sanções ocidentais, mas avisou que dificilmente o pedido de Zelensky para a adesão imediata à UE seria acelerado. “Ninguém duvida de que este corajoso povo ucraniano e a liderança excecional do presidente Zelensky - todos a lutar pelos nossos valores comuns - pertencem à nossa família europeia”, disse Von der Leyen a Tapper. “Com o pedido de adesão, o presidente Zelensky deu início a um processo. Esse processo demorará algum tempo.”

A cruzada pessoal de Putin

A forma como Putin, sozinho, empurrou o seu país para a guerra esmagou a dissidência interna e repreendeu na televisão assessores de segurança nacional aparentemente confusos apenas sublinha o quanto a guerra na Ucrânia é uma cruzada pessoal.

Os seus discursos desequilibrados e anistóricos sobre a guerra - incluindo as falsas alegações de que está a  tentar tirar os nazis da Ucrânia - despertaram preocupação sobre se um líder antes visto como um corretor implacável e frio dos interesses nacionais da Rússia caiu nalgum tipo de realidade mental paralela. Isso, juntamente com as suas ameaças nucleares, causou preocupação sobre até onde poderá ir um líder russo desesperado que efetivamente fez a sua própria sobrevivência política depender de uma guerra que se está a transformar numa situação difícil.

“Ele está agora envolvido num conflito no qual terá uma vitória militar cara, seguida de uma ocupação cara que ele não pode pagar, ou então ver-se-á apanhado num pântano militar a longo prazo, ao mesmo tempo em que enfrenta uma segunda frente, ou seja, uma economia em queda livre no seu próprio país”, disse o senador republicano Marco Rubio, da Florida, no “State of The Union”. “Portanto, a combinação dessas duas coisas, acho eu, coloca-nos numa posição muito perigosa. Ele terá de fazer alguma coisa, algum agravamento, alguma amplificação desta crise, de forma a recuperar o equilíbrio estratégico com o Ocidente, na perspetiva dele. E o que ele irá fazer preocupa-me.”

Até agora, e desde que a invasão começou, Putin tem vindo a aumentar de intensidade, apesar de uma calma reação do Ocidente às suas provocações nucleares. Ainda não se sabe bem como ele reagiria à possibilidade de a Polónia ou a Roménia fornecerem caças à Ucrânia - um passo que parece arrastar duas antigas nações do Pacto de Varsóvia para mais perto de um conflito indireto com a Rússia.

Os registos da invasão, no entanto, mostram que, independentemente dos danos que novas medidas do Ocidente possam infligir, é improvável que impeçam Putin de levar adiante a sua obsessão de que a Ucrânia nunca deve poder juntar-se ao Ocidente, mesmo que isso signifique destruir o país e o seu povo.

Como disse Zelensky no domingo à noite, “a audácia do agressor é um sinal claro para o Ocidente de que as sanções impostas contra a Rússia não são suficientes”.

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